Família restaura antiguidades em metal há mais de 60 anos no Centro de Fortaleza
O Espanhol - Arte em Metais une diferentes gerações esmeradas em resguardar memórias concretas e simbólicas
Na esquina da rua Pereira Filgueiras com a Dona Leopoldina, no Centro de Fortaleza, resiste há mais de seis décadas “uma casa velha que recupera coisa antiga” — quem define é dona Leny Santis, 86 anos, matriarca do negócio familiar.
O Espanhol — Arte em Metais dedica apuro e apreço não só à memória material — fato comprovado pelo esmero com que diferentes antiguidades são restauradas —, mas também ao simbolismo do artesanal e manual.
No endereço — visitado pelo Verso na última quarta-feira (5) —, é possível restaurar diferentes peças em metal, seja em latão, bronze, ferro ou mais. Entre os itens que podem passar pelos serviços, há de castiçais e bandejas a objetos litúrgicos e teodolitos, um tipo de ferramenta antiga de topografia.
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Quem foi "O Espanhol"?
O nome do negócio referencia a memória de António Santis Romero, que veio de Málaga a Fortaleza em busca de emprego em meados do século passado.
“Lá, a família dele tinha duas casas como a nossa, de oficina de metais; como eles chamam, metalisterías”, contextualiza Diego Santis Teixeira, neto de Leny e António que, nos últimos anos, assumiu a maioria dos trabalhos de restauro mais delicado.
Além do emprego buscado, o espanhol conheceu Leny e conseguiu também constituir família. O casal, a partir dos anos 1960, já se estabeleceu no Centro.
“A gente morava aqui e ele trabalhava fora, mas começou a ajeitar coisas da vizinha — uma bandeja que quebrava a alça, um jarrinho que quebrava o pé. Depois de outro, e de outro. O pessoal trazia as coisinhas, ele ajeitava e nem cobrava”, lembra a proprietária.
“Um dia, vi que estava precisando cobrar, porque era muita coisa. Com o tempo, ele resolveu sair do emprego que tinha conseguido pra dar conta dos trabalhos da vizinhança”, segue.
A prática manual ficava com o espanhol, enquanto o atendimento ao público era com a cearense. Com o falecimento de António, nos anos 1980, o negócio seguiu pelas mãos de Leny e da família.
Ofício familiar passa por gerações
“Quando a mãe ficou só, vim pra ajudar e estou até agora”, compartilha Branca, filha da matriarca e mãe de Diego. “Querendo, a pessoa aprende. Taí meu neto. Ele, tudo bem, nasceu dentro do trabalho — quer dizer, tem quase obrigação de saber, mas teve muita boa vontade e aprendeu tudo”, atesta Leny.
Diego reforça que a proximidade do ofício facilitou o aprendizado. "Nasci aqui dentro, desde pequenininho brincava nessa casa, então acaba que vem esse dom”, concorda. A família não mora mais no endereço do negócio, mas segue na vizinhança.
Hoje aos 42 anos, ele deixou outra carreira para seguir no negócio familiar. “Fiz administração e logística, trabalhava fora e, de repente, senti a necessidade de voltar para casa para fazer o que gosto, o que amamos”, ressalta, no plural.
"Os trabalhos mais delicados quem faz sou eu, exatamente aqui. Minha avó antes fazia um pouco, mas deixou. Um trabalho desse de pintura, delicado desse jeito, sai daqui das minhas mãos. Se tiver algum problema, foi comigo (risos)", brinca.
Além do endereço no Centro e do envolvimento familiar, O Espanhol também conta com um galpão no Conjunto Esperança, onde mais oito pessoas trabalham. O local recebe a maioria dos banhos químicos e efetua serviços pesados como cromagem de para-choques de carros.
Processos, itens e públicos são diversos no negócio
Questionado sobre o processo geral de uma restauração, Diego atesta: “Cada item é um serviço ímpar. Não existe receita de bolo. Dependendo da qualidade e do material, a gente segue em caminhos diferentes”.
O restaurador exemplifica que, para um rechaud — item usado para manter a temperatura de comidas em buffets — de latão, o processo inclui diferentes banhos, como desengordurante, de cobre, níquel, prata e, enfim, verniz. Se o mesmo item for de ferro, a necessidade é de polimento.
A diversidade de processos se reflete em outras multiplicidades, seja de itens ou de perfis de clientes.
“Recebemos de tudo. Pra você ter uma ideia, recebi uma pecinha de uma cuscuzeira, para colocar um parafuso. Eu faço, não tem problema, isso não tira a nobreza do serviço. O cliente que hoje traz essa pecinha simples amanhã vai trazer algo de maior importância para ele”, ressalta Diego.
“A gente consegue atender desde o pessoal mais novo, que tem uma peça que quer ver bonitinha em casa, ao pessoal colecionador ou o pessoal mais antigo que gosta de recuperar peças”, destaca.
Por conta dessas variações, os serviços têm, também, diferentes prazos e valores. “Quando é o serviço de um banho, é mais rápido. Às vezes, para um item como um sacrário, pode demorar uns 40 dias”, aponta.
O que guia são as necessidades de cada um. “Às vezes, a gente tem que fabricar uma peça, o que faz com que o tempo aumente”, ilustra. Para o orçamento, é necessário que a pessoa interessada no serviço leve o item para avaliação presencial.
“A gente tenta orçar o mais aproximado possível, mas acontece de passar do previsto e aí a gente absorve os custos. Se cobrar muito caro, você não faz o serviço e não volta. Muito barato, não cubro nem meus custos operacionais”, equilibra.
“Qual máquina faz isso?”
A informação sobre a necessidade de avaliação física do item a ser restaurado se revela relevante porque, como compartilha Diego, “o mundo atual é muito imediatista”. “Às vezes a pessoa manda foto e quer um orçamento por ela, mas a gente tem que entender o material”, reforça.
Leny indica um troféu feito em latão por Diego e atesta: “Essa peça aí que você está vendo é feita toda à mão. Pergunta ‘qual máquina faz isso?’. Aí o menino mostra a mão”.
“Cada trabalho tem a sua dinâmica, às vezes uns são um pouco mais rápidos, outros são mais delicados. Nunca vou me comparar a uma fábrica porque ela produz um molde e faz 100 peças num dia. Eu vou fazer um quarto de uma peça em um dia”, relaciona Diego.
“Temos nossos equipamentos, nossas linhas de trabalho, que são simples e humildes. A arte realmente, como minha avó falou, está nas mãos. A gente reúne o amor pela profissão, os materiais, o que cada serviço precisa e executa com maestria, amor”, aponta.
“Amor”, inclusive, arrisca Diego, pode ser considerado a tal "receita do bolo” no ofício. “Quem trabalha com amor, trabalha fazendo o seu melhor todo dia”, ensina. Ele, hoje, é da geração mais nova a seguir no ofício.
“Estamos aqui e pretendemos estar durante muito tempo. A intenção é essa, que a gente continue executando esse trabalho com maestria e amor”, ecoa.
O Espanhol - Arte em metais
- Quando: funcionamento de segunda a sexta, de 8h30 às 17h30, e aos sábados, de 8h30 às 12 horas
- Onde: rua Pereira Filgueiras, 485 - Centro
- Mais informações: (85) 98816-2479