Envelheceram mal? 'Tom e Jerry' e o lugar dos desenhos considerados politicamente incorretos hoje
Investimento em versões educativas de clássicos infantis acende discussão sobre o alcance dos conteúdos e tramas antigos entre a nova geração
Esqueça as trapaças e conflitos intermináveis apresentados em “Tom e Jerry”, sensação entre as crianças no fim do século passado e início deste. Desde a última quarta-feira (1º), chegou ao Cartoonito – nova extensão do Cartoon Network, na HBO Max – uma versão educativa do clássico desenho, agregando um distinto componente à famosa dupla de gato e rato.
Intitulada “Tom and Jerry Time”, a nova série substituirá as falcatruas e desavenças entre os dois personagens e investirá em lições que tragam outras perspectivas para o público infantil. A intenção é sintonizar o programa com lições enriquecedoras sobre convivência, aprendizados escolares, laços familiares e fraternos, entre outras temáticas.
Além do novo “Tom e Jerry”, na lista de desenhos da plataforma também está presente uma outra versão dos Looney Tunes; conteúdos locais, a exemplo de Mundo Bita e Turma da Mônica; e programas com parceiros como Pocoyo, Lucas The Spider, Thomas e seus amigos, Mush-Mush & the Mushables, Masha e o Urso, Cocomelon, Blippi e Little Ellen.
Mãe dos pequenos João Lucas, 4, e Maria Cecília, 2, a auxiliar financeira Damila Vieira afirma que poderá estimular os filhos a assistir à edição repaginada de “Tom e Jerry” – desenho que marcou positivamente a infância dela, nos anos 1990. “Não acredito que a versão educativa vai tirar a graça do desenho. São tempos diferentes. Quando assistir, tirarei minhas conclusões sobre o que mudou. Mas acho que será bom”, opina.
A reflexão da cearense sobre a diferença entre a antiga e a nova versão do programa – hoje considerado politicamente incorreto para muitos, dado o excesso de tramoias, mentiras, sugestão de violência e outras situações questionáveis em cena – é oportuna. Segundo ela, quando o assunto é crescimento dos filhos, há um outro olhar sobre as coisas porque surge a seguinte pergunta: será que o conteúdo apresentado é bom e não vai interferir no desenvolvimento saudável deles?
“Esse tipo de questionamento vem à tona porque nos preocupamos com eles e só queremos o bem-estar. Algumas cenas – como trapacear, pegar o que é dos outros sem permissão e mentir – são situações que alguns desenhos antigos apresentavam e que não quero que meus filhos tenham como exemplo para a vida”.
Por outro lado, Damila ressalta que assistir a esses programas quando criança não mudou a própria personalidade e bom caráter. A bem da verdade, as tramas exibidas serviam para apontar o que é certo e o que é errado. “Aí entra o diálogo, mostrando para os pequenos o que é cada sentimento e as consequências de cada lado”, completa, citando “A Corrida Maluca”, “Clube da Luluzinha”, “Capitão Caverna”, “Papa-Léguas” e “Piu Piu e Frajola” como algumas das muitas atrações das quais lembra com saudosismo.
Influência no comportamento
Sob outro espectro, considerando o cotidiano da nova geração de crianças, João Lucas e Maria Cecília assistem a “Caillou”, “Monica Toy”, “Simon, O Coelhinho”, “Mundo Bita”, “Wolfoo”, “Small and Learn”, “Tainá e os Guardiões da Amazônia”, entre outros.
A mãe dos dois diz que as animações são voltadas para o potencial criativo das crianças, explorando componentes como amizade, partilha e empatia – elementos que os desenhos antigos, em maior ou menor grau, também apresentavam.
“Enquanto mães, fazemos o possível para sempre mostrar o lado do bem, logo não acho que existe um modelo ideal de programa para as crianças. São tempos diferentes os que vivi na minha infância para o deles hoje. E é nesse instante distinto que eu posso apresentar as situações que cada desenho aborda – pesando os dois lados, investindo no diálogo e mostrando para eles as consequências das escolhas”, considera.
Professora do departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará e coordenadora docente do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança (Nucepec), Andrea Cordeiro pensa de forma semelhante. De acordo com ela, falar em modelo ideal, único para todas as crianças, é impraticável.
“Penso que o ideal é que se abram múltiplas representações de diversas referências culturais em personagens de desenho, a fim de auxiliar as crianças a perceberem quão rica a manifestação do humano pode ser. Tal diversificação amplia as possibilidades de uma normalização da tolerância e do respeito à diferença, ao invés da imposição de uma maneira específica de ser humano como aquela que aparece como a mais valorizada nas estórias”, diz.
Realidade da programação infantil
Mergulhando no contexto histórico-social, ela explica que, para uma discussão satisfatória sobre a diferença dos conteúdos exibidos pelos desenhos antigos e os contemporâneos, é necessário primeiro considerar a realidade da programação infantil disponível em cada época.
Há algum tempo, por exemplo, a maioria dos telespectadores só dispunha de uma modalidade de transmissão televisiva, a chamada TV aberta – fator limitador do espectro de escolha disponível aos pais. Atualmente, porém, a situação é bem diversa.
A programação infantil na TV aberta foi consideravelmente reduzida em função da restrição de publicidade voltada para crianças – regulação, inclusive, bem recente no Brasil. Assim, a transmissão dos desenhos animados se deteve quase exclusivamente na TV por assinatura ou nos canais públicos, a exemplo da TV Cultura ou similares.
“Na modalidade de transmissão paga, há uma certa elitização dos assinantes, devido ao custo envolvido. Mas há uma maior variedade de oferta, o que permite aos pais a tentativa de exercer um certo controle sobre os conteúdos”, analisa a professora.
“Já nas TVs públicas, a própria programação ofertada possui de antemão um viés mais pedagógico, com fins educativos. Por outro lado, as crianças de hoje muito cedo já dominam os meandros da internet e frequentemente fazem sua própria seleção de conteúdo, o que torna essa intenção dos pais em controlar o acesso quase que ilusória”.
Basta pensar no sucesso alcançado por canais no YouTube voltados para a criançada, a exemplo dos irmãos Felipe e Luccas Neto. Nesse caso, fica o questionamento: essas plataformas ofertam conteúdo de valor pedagógico?
“Não vou entrar nessa polêmica, mas é inegável que tais influenciadores possuem um público infantil cativo e que é preciso levá-los em consideração se quisermos debater sobre a oferta de entretenimento para crianças”, sublinha Andrea Cordeiro.
Desenhos antigos são danosos?
Artigo publicado em 2012 por Larissa Rogério Bezerra, da Faculdade de Educação da UFC, aborda a história do desenho infantil e a influência dele na formação das crianças. Conforme o estudo, a questão da empatia com os personagens é um dos aspectos que mais predomina na intervenção do desenho animado na formação dos pequenos. Ao assistir a uma historinha e simpatizar com os personagens, a criança logo vai buscar agir feito ele ou até procurar ser igual.
Assim, o infante se vê e se projeta nos personagens, ainda não compreendendo bem os limites entre ele mesmo e a ficção. É algo que, de acordo com o artigo, se torna muito perigoso quando a animação passa a ser apenas um produto da indústria de entretenimento, e os personagens se resumem a “garotos de propaganda” de mercadorias no supermercado.
“Já que o contato com esses meios é inevitável e não podemos controlar os conteúdos trabalhados nessa nova forma de vender animações, o que podemos fazer para contribuir minimamente para a formação infantil é assegurar que as crianças tenham a oportunidade de dialogar, debater, compreender e refletir sobre essa ‘fantasia artificial’ criada principalmente para transformá-los em consumidores de ideais e valores controlados por uma cultura de massa. Formar indivíduos críticos e íntegros é dever e direito de todos que compõem uma sociedade comprometida antes de tudo com o crescimento e o desenvolvimento da coletividade”, conclui o texto.
Na visão da professora Andrea Cordeiro – pertencente a uma geração que cresceu assistindo aos agora clássicos desenhos animados – o conteúdo desses programas não é necessariamente danoso para o desenvolvimento moral das crianças. “Senão, toda a minha geração hoje seria ‘degenerada’”, aponta.
“Óbvio que há um descaso em relação a temáticas muito graves, como racismo, xenofobia ou mesmo sexismo. Mas deve-se lembrar que se trata de um conteúdo que reflete as perspectivas sócio-culturais da época, quando a discussão sobre os direitos das minorias sociais ou a hiper exposição de conteúdos violentos ou mesmo de cunho sexual ainda não era problematizada”.
Conforme pondera, sem dúvida a sociedade desenvolveu novos valores e balizas para a educação infanto-juvenil com o passar do tempo. No entanto, falar em evolução é complicado, uma vez ainda existirem determinadas características comuns aos desenhos que evocam possíveis discussões. Um exemplo são os próprios Minions e o personagem Gru, de “Meu Malvado Favorito”, claramente anti- heróis, cujas histórias são marcadas por atitudes, no mínimo, moralmente questionáveis.
“Vale destacar que uma preocupação parental mais ativa é uma marca – lembrando, porém, que tal controle possui seus limites de alcance”, pontua a educadora. Ela também orienta que, dado ser muito difícil impedir completamente que as crianças entrem em contato com tais personagens, uma saída possível para o problema é transformá-los em tópico de discussão junto aos pequenos, procurando fazê-los entender que as ações ali demonstradas são questionáveis e o porquê disso.
“Claro que tal debate não é fácil em função da pouca idade na primeira infância, mas esse tipo de exercício paracentral me parece mais potente do que uma tentativa de controle absoluto dos conteúdos”.
Reflexão dos valores dominantes
Compreendendo que os desenhos animados não são entidades autônomas criadoras dos próprios conteúdos, mas agentes de reflexão dos valores dominantes na época em que foram idealizados, a professora Andrea Cordeiro ainda contextualiza uma questão bastante pertinente.
Na ótica dela, o problema reside no fato de os desenhos divulgarem esses valores de cada época entre as novas gerações, algo que tem um certo alcance e poder – não de definir novas formas de conduta, mas de reproduzir e naturalizar condutas problemáticas.
“É nessa perspectiva que usar os tópicos apresentados nos desenhos como mote para uma boa conversa com as crianças pode ser uma forma bem bacana de lidar com isso. Outro ponto a se considerar diz respeito à possibilidade concreta de os pequenos que fazem parte de minorias sociais se verem representados de um modo mais positivamente valorado nos desenhos – como por exemplo a princesa Tiana, de ‘A Princesa e O Sapo’, ou a Moana, para citar trabalhos da Disney”.
Essa, inclusive, é uma dimensão importantíssima dos conteúdos infantis mais recentes: uma maior diversidade étnica e de gênero entre os personagens protagonistas. Dessa forma, trabalhar valores como respeito e tolerância com a criançada torna-se mais fácil diante de um maior espectro de representações e referências disponíveis nos desenhos, algo fundamental para as pessoas de outrora, de agora e do porvir.