Desce a dose e o tira-gosto, pois a tradição do bar segue viva na Embaixada da Cachaça

Loja especializada com aguardentes de todo o Brasil, casa mantida por Altino e Gorete Farias também recebe a clientela com um bar que é puro brinde ao espírito boêmio

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@svm.com.br
Loja com mais de 400 rótulos e um bar de portas abertas
Legenda: Loja com mais de 400 rótulos e um bar repleto de atividades culturais
Foto: Kid Junior

A cachaça é paixão genuinamente brasileira. Tanto, que os cearenses podem se orgulhar de frequentar uma casa especializada na iguaria etílica. A Embaixada da Cachaça é este território de encontro para os apreciadores de uma boa caninha. É também salvaguarda ao espírito dos bares antigos de Fortaleza. 

A partir do sonho, dedicação e amor do casal Altino e Gorete Farias, a Embaixada aproxima os devotos da boêmia. Entre uma bicada ou outra, preserva-se a cultura das confrarias e amizades decantadas nos pés de um balcão. Inúmeros rótulos, qualidades, preços e sabores de vários cantos do País são encontrados na loja.  

São mais de 400 marcas para venda e 60 opções de cachaças para degustação. Em meio à variedade de aguardentes, todas carregadas com as histórias de onde e por quem foram produzidas, um acolhedor balcão nos avisa. Aqui também é bar, da cerva gelada ao rabo de galo. Daqueles com clientes fiéis em diferentes horas da semana.  

Conversamos com o casal de embaixadores para desbravar os segredos da cachaça e entender a paixão pela instituição bar. “É como se fosse uma confraria de amigos. Mesmo quem não é se torna. Tem quem chegue às vezes sozinho, só para tomar uma cerveja. De repente forma aquela amizade. Então, é um bar de amigos. Isso é a Embaixada da Cachaça”, apresenta Gorete Almeida Farias

Cachaça e Copa, tudo a ver 

O Joaquim Távora se caracteriza por um bairro onde a vizinhança ainda é dada a residências e vilas, com poucos prédios. Vindo pela Rua João Brígido no sentido Centro, fim de tarde, uma casa desperta atenção pelas mesas organizadas na calçada.  

Um dia antes da Canarinho estrear diante na Copa, a Embaixada da Cachaça cuida dos últimos detalhes para o evento esportivo. Detalhes de manutenção, como uma telha ali, uma lâmpada aqui. Nos últimos meses, durante visitas a outros bares da Capital para construir essa série de reportagens, era comum ouvir de frequentadores e proprietários: “Já foi na Embaixada?”.  

A pergunta em forma de pedido reflete o carinho dessa turma por Altino Farias. Engenheiro Civil de formação, escritor e sócio da Embaixada da Cachaça ao lado da esposa Gorete, é ele também um árduo defensor da preservação histórica dos bares. 

Legenda: "Percebemos qual é o tipo de bebida que o cliente gosta e vamos orientando", divide Gorete Almeida Farias
Foto: Kid Junior

Nos primeiros minutos da visita, o comerciante familiariza o estabelecimento e o colorido cativante de cada garrafa nas paredes. A entrevista só começa quando a companheira Gorete conclui um atendimento e também puxa uma cadeira. 

É jogo do Brasil e a correria para organizar e receber os torcedores faz parte do negócio. A expectativa de receber as amizades é alta no mês de aniversário da casa. “Sempre falamos, inclusive tem no cardápio. ‘Mais do que uma loja ou um bar, aqui é um espaço de convivência’. As pessoas vêm pra cá para conviver”, anuncia Altino Farias.  

A Embaixada tem cardápio que atende do paladar regional ao tira-gosto. Para aquecer ainda mais o coração, a agenda musical inclui ritmos do samba ao chorinho. Os encontros literários brindam a poesia com lançamentos e leituras de obras. Estas, e outras espontâneas manifestações artísticas no lugar, explicam os oito anos de estrada e carinho do público.

Alma de bar

O cotidiano da Embaixada da Cachaça funciona assim. Das 10h30 às 17h, a loja recebe os clientes em busca de uma aguardente única em sabor. Com o encerramento do horário dito “comercial”, o ponto se transforma em bar, pronto a atender o pessoal que anda com sede. É assim entre segunda e sábado. 

Toda essa atmosfera receptiva traduz as experiências do Altino cliente assíduo de bar. A Embaixada herda, assim, as características dos bares de corriola, escondidos em recantos periféricos da capital. Lugares onde ainda podemos jogar conversa fora. Muitos, às vezes, nem cozinha tem e os frequentadores levam de casa o tira-gosto para dividir no balcão.

O violão de plantão para uma boa cantoria, literatura, espaço de ideias
Legenda: O violão sempre de plantão para uma boa cantoria, a marca da literatura e um espaço para o nascimento das ideias
Foto: Kid Junior

A partir da vivência por bares de Messejana, Montese, Mondubim e Centro, Altino criou uma plataforma dedicada a catalogar estes comércios cada vez mais raros no perímetro urbano. Com o poético nome, “Pelos Bares da Vida”, o guia apresenta estes pontos comerciais com informações, curiosidades, fotos... Trabalho de fôlego.

A Embaixada da Cachaça perpetua o espírito destas casas. Contudo, defende Altino, inexiste uma forma preconcebida de se criar um bar. “Não posso chegar e dizer ‘esse bar será assim’, porque ele pode ter a forma que tiver, mas essa parte do relacionamento, vamos dizer essa parte espiritual, ela vai acontecendo e é consequência das vivências da gente. E não de chegar e rotular esse aqui vai ser um bar não sei o que, esse aqui".

Um exemplo é que hoje, os sócios atendem a turma que andava pelo Bar do seu Airton. O lugar até já fechou, seu Airton segue firme, acima dos 90 anos, mas a clientela fez questão de preservar essa memória nas mesas da Embaixada. “O bar que tem alma não morre. Ele se perpetua. Esse povo continua e o bar não precisa ter um lugar físico para existir", completa Altino.

Chico Litro de olho

Às segundas-feiras, a Embaixada instituiu o chamado “Dia do Profissional”. Altino adverte que beber de quinta a domingo todo mundo bebe. Agora, segunda-feira, só quem é profissional. Nesse dia, os amigos que gostam de cozinhar trazem os petiscos. Uma celebração coletiva e enraizada dos botecões de Fortaleza.

Ainda no campo das guloseimas, a cozinha do bar marca presença com simplicidade e sabor, abraçando delícias regionais e petiscos clássicos de bar. São pratos simples, nada "gourmetizado" e de produção própria. Tem frutas, torresmo, linguiça com farofinha. Para acompanhar o papo tem panelada, sarrabulho, vatapá, língua. O baião de dois aos sábados é maravilha. Desce bolinho de bacalhau, moela, arroz de carneiro.  

Desde 2018, as terças-feiras sediam os Momentos Literários. Uma forma de divulgar poesias e crônicas autorais, reunindo os devotos da escrita. A proximidade da Embaixada da Cachaça com a literatura fez surgir a mascote da casa, o simpático Chico Litro.

Conta-se que o boneco chegou pela Embaixada para fazer um bico de Judas, mas foi criando amizade com todo mundo e acabou ficando. As desventuras de Chico Litro nascem de crônicas escritas por Altino Farias. Trata-se do ingênuo "bebim", envolvido nos causos que a vida etílica permite.

Legenda: "Quando o cara está no bar e perde a noção do tempo, é porque a casa cumpriu sua função social", arremata Altino Farias
Foto: Kid Junior

Muitas das histórias de Litro, garante o autor, acontecem também das longas conversas e até indicações dos clientes. Todas creditadas, claro. O personagem é testemunha do vai e vem da casa e sempre tem uma dose pronta no Bar do Toinho (outro personagem fictício que garante a alegria da Embaixada). 

E a quarta-feira é dedicada especialmente à degustação da "bebida chefe". É quando a Embaixada integra a "Rota da Cachaça", iniciativa que agrega um total cinco estabelecimentos da cidade. O projeto aproxima turistas,  admiradores do "mé" e envolve Secretaria de Turismo de Fortaleza e Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel).

E quem deseja conhecer este universo tão brasileiro que é o da caninha, terá atendimento personalizado. Gorete Almeida Farias é especialista e sempre atenta à melhor indicação. A escuta é importante e a comerciante avalia cuidadosamente as informações da clientela. 

“O bom atendimento é tudo. Tenho clientes que chegam já direcionados. ‘Quero a cachaça tal’, diz o barril, se é carvalho, imburana, entre outros. E tem quem não entende nada de cachaça, mas quer dar um presente. Percebemos qual é o tipo de bebida que ela gosta e vamos orientando. Pela conversa vemos a necessidade. E olha, vou te dizer uma coisa. Eu não erro não, viu? Sempre dá certo. É tanto que o presenteado geralmente vem aqui comprar outra”, sorri Gorete. 

Autoridades da nação cachaça 

As andanças de Altino e Gorete foram primordiais na criação do comércio. Inicialmente, a dupla se inspirou nos empórios de Paraty. Lá, descreve Altino, é um polo produtor de pinga dos mais antigos do Brasil. “Aliamos a venda de cachaça, algo que há oito anos era uma coisa inusitada, não tinha ou se ouvia falar muito pouco aqui”, resgata. 

Começaram com um núcleo básico de rótulos e foram expandindo à medida que conheciam, recebiam indicações e pesquisavam sobre a origem dos produtos. Outra exigente marca ao trabalho dos sócios é o envolvimento pessoal com produtores e entidades representativas ao universo da cachaça brasileira.  

Além de membro efetivo da Cúpula da Cachaça, Altino faz parte, desde a fundação, da Academia Brasileira da Cachaça de Alambique. A entidade reúne nomes da cadeia produtiva e atua na defesa de políticas públicas para o setor. Gorete integra Confraria Mulheres da Cachaça, a Convida-Ce. De atuação nacional (tendo a célula principal em Minas Gerais), estas apreciadoras estudam e discutem o processo de produção de uma boa caninha.  

Na presença do querido Chico Litro, Altino Farias e Gorete Almeida Farias brindam às alegrias dos oito anos de Embaixada da Cachaça
Legenda: Na presença do querido Chico Litro, Altino Farias e Gorete Almeida Farias brindam às alegrias dos oito anos de Embaixada da Cachaça
Foto: Kid Junior

Respirar ativamente esse cenário, da história à legislação da cachaça, se mostram um diferencial ao acervo etílico da Embaixada.“É um trabalho, vamos dizer, meio subjetivo, de garimpagem. Não podemos ter todos os rótulos que existem, cachaças que são desconhecidas, que não tem qualidade ou que ficarão paradas na prateleira. Compramos realmente o que vamos trabalhar”, aponta Altino farias. 

Quando se falar em bar e cachaça, predomina uma realidade masculina. Estar detrás de um balcão, para Gorete, é também romper paradigmas. “Todos têm carinho, respeito pela minha presença. Num é porque eu estou ali, não. Eles tem as conversas deles. Mas, com respeito a minha presença. Saio nas mesas, gosto de receber, de conversar, de interagir. Acho importante essa integração", explica a proprietária. 

Administrar um empreendimento dessa natureza exige imensa dedicação do casal. Além da parte operacional, tem a responsabilidade de tocar um negócio onde o público busca por desopilar das demandas do cotidiano."Quando o cara está no bar e perde a noção do tempo, é porque a casa cumpriu sua função social", assevera Altino Farias

Para a dupla, excetuando o cansaço e o desgaste, existe a gratificante criação das amizades. Garantem os sócios: “O dono de um bar com essa característica, ele é um pouco ladrão de alma, todo mundo que chega aprendemos algo com aquela pessoa, fica um pouco dela em você. Então, você ficou com um pouco da alma dela, né?". 

Conversa de Bar 

O encontro com a Embaixada da Cachaça demarca o último capítulo da série Conversa de Bar. Desde setembro, circulamos por mesas e balcões tradicionais de Fortaleza. Recuperamos histórias de quem vive o cotidiano de um bar em sua plenitude, entrelaçando aspectos da memória cotidiana destes recantos escondidos da cidade.

Bar Vitória, Flórida Bar, Bar do Seu Nonato, Clube dos Gatos, O Camocim, guardam a essência e artesania da cultura boêmia. São exemplos de uma forma de comércio e sociabilização que ainda resiste nos bairros periféricos, ou centros que lidam com a especulação imobiliária. Além de trabalho e fonte de subsistência para famílias cearenses, os antigos botecos respiram como referência à boêmia de hoje e amanhã.    

 

 

 

 

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