Da literatura ao bordado, cursos online otimizam profissionalização de artistas e modos de criação

Mais de um ano após a eclosão da pandemia, formações artísticas continuam sendo instrumento de resistência em meio a limitações

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: O bordado é uma das artes que ganharam expressivo número de adeptos durante a pandemia devido aos cursos remotos na área
Foto: Kid Júnior

Quando a pandemia de Covid-19 assolou o planeta em meados de março do ano passado, pouco se sabia das proporções que o acontecimento geraria. Chegado agosto de 2021, uma série de limitações ainda delineia a rotina – sobretudo dos profissionais que lidam com os segmentos cultural e artístico, alguns dos mais abalados pelo nebuloso instante.

Veja também

A realização de cursos contemplando temáticas e fazeres pertinentes ao campo da arte, contudo, age no contrafluxo dos isolamentos. Ganhando as ferramentas e especificidades do ciberespaço, tentam driblar as impossibilidades do panorama, tanto para os artistas à frente das formações quanto para os estudantes participantes dos processos.

No que toca aos primeiros, não deixa de ser mais uma forma de profissionalizar o ofício e, na condução do trajeto, também multiplicar modos de expressão da arte a qual se dedicam. É o caso, por exemplo, da escritora e professora Vanessa Passos, à frente do curso 321 Escreva, voltado para o desenvolvimento de narrativas literárias. 

O projeto foi iniciado em 2019 de maneira a ampliar o alcance do Pintura das Palavras, iniciativa idealizada e executada pela cearense. Com a pandemia, o que era presencial migrou para o online, perfazendo um total de seis cursos em um, distribuído em 120 videoaulas gravadas, com exercícios e materiais complementares.

Legenda: Encontro do curso 3,2,1 Escreva, ministrado pela escritora e professora cearense Vanessa Passos
Foto: Arquivo pessoal

“As dúvidas e o acompanhamento contínuo acontecem por meio da plataforma em que eu diariamente respondo às dúvidas. Além disso, o curso oferece aula mensal e aulão tira-dúvidas, ambos ao vivo, sendo este último semanalmente. A missão é fornecer um passo a passo nessa jornada da escrita à publicação, levando cada aluno a terminar, publicar e vender seu livro”, detalha Vanessa Passos.

Segundo ela, quanto mais auxilia pessoas a mergulharem na arte literária, mais se profissionaliza como escritora. Não à toa, tudo o que ensina a partir da formação aplica na própria trajetória, algo que funciona como inspiração para os alunos. Para se ter uma ideia, no ano passado Vanessa lançou o livro de contos “A mulher mais amada do mundo” e, neste ano, o romance “A filha primitiva”, que está concorrendo ao Prêmio Kindle de Literatura.

Com ela, dezenas de estudantes do 321 Escreva igualmente deram passos consolidados nas letras, lançando ou realizando campanhas, com sucesso, para financiar a publicação de suas obras. “Escrever dá um novo sentido para as alunas e os alunos, ajudando-os neste período turbulento que estamos vivendo”, destaca a professora.

Exercício de dedicação

A experiência de disponibilizar conteúdos sobre escrita, publicação e divulgação, mediante um método descomplicado e com uma linguagem acessível, foi muito enriquecedora para Vanessa Passos. Acompanhar pessoas e orientá-las nesse trajeto permitiu à escritora fazer um laboratório de pesquisa, com dados sobre as principais dificuldades dos estudantes, sobretudo a respeito do que os impede de terminar seus livros. 

“Quanto mais estudo e ajudo pessoas, mais me sinto conectada com o lema do Pintura das Palavras: ‘Uma vida dedicada à leitura e à escrita’. A experiência mais forte de todas é ver os alunos e alunas superando suas dificuldades, terminando seus livros e os colocando no mundo. É uma alegria sem fim. Eles me chamam de doula de livros”.
Vanessa Passos
Escritora, professora e Doutoranda em Literatura

“Acho fundamental os artistas ofertarem cursos no campo virtual. Os benefícios são vários: flexibilidade de horários, economia com alimentação, transportes e possíveis despesas. Com as aulas gravadas, caso ocorra um imprevisto, o aluno não perde o conteúdo. E é possível ter um acompanhamento de perto, mesmo na experiência EAD. Sou uma professora e orientadora muito presente na jornada de escrita dos alunos. Por outro lado, acredito que o maior desafio para o estudo EAD é a disciplina do aluno. É importante separar um momento para o estudo, exercícios e dúvidas”, percebe a formadora.

Ela não está sozinha nessa seara. Feito Vanessa Passos, a artista e comunicadora Camila Aguiar também percebe que, principalmente considerando uma pessoa que ainda está iniciando no ramo das artes, como ela própria, ofertar um curso permite certa sistematização de conhecimentos, técnicas, abordagens e poéticas, algo importante para o reconhecimento e afirmação dos elementos que constroem o fazer. 

“Além disso, acho que as dificuldades no contexto de pandemia pediram uma diversificação na atuação profissional, nos serviços e produtos ofertados”, situa Camila. Aguiar, por exemplo, disponibilizou para o público o curso “Vivência de Mandalas - A criação de si através dos círculos sagrados”. A formação é voltada para o ensino do desenho e da pintura de mandalas, especificamente com tinta acrílica em madeira. Além disso, é proposta uma jornada artístico-terapêutica de expressão, criação e autoconhecimento inspirada na natureza.

A primeira turma aconteceu virtualmente durante quatro sábados nos meses de maio e junho últimos, de maneira que cada encontro contemplava tanto aspectos teóricos e técnicos a respeito das mandalas quanto exercícios de autoinvestigação, expressão e criação orientados pelos quatro elementos – terra, água, fogo e ar.

“A experiência foi importante para reconhecer o que há de específico, original e genuíno no meu trabalho. As mandalas são, por si só, ferramentas artístico-terapêuticas, mas com a experiência desse curso/vivência, eu pude partilhar e fortalecer a minha forma de trabalhar esses aspectos”, contextualiza Camila Aguiar.

Legenda: No curso ofertado pela artista e comunicadora Camila Aguiar, a criação de mandalas ganha força
Foto: Arquivo pessoal

Retornos possíveis

Esse reconhecimento sublinhado pela artista e comunicadora se apresentou ainda mais a partir de uma situação em que, durante um exercício de meditação guiada, com o objetivo de trazer à tona certas imagens e símbolos, uma das participantes se emocionou com a lembrança do pai e dos ensinamentos que ele a deixou. “Assim como o feedback de outra participante, que relatou a seguinte percepção: ‘A gente vem aprender a pintar mandala e ganha uma sessão de terapia’”, conta Camila. 

Quanto aos desafios na realização do curso, ela diz que o formato online é o maior deles, uma vez que transcende as formas de interação presenciais às quais estamos acostumados, e que possuem um potencial diferente.

“Acredito que o formato virtual lança desafios tanto para o estabelecimento de uma real conexão entre as pessoas quanto para as instruções das técnicas de desenho e pintura, por exemplo”.
Camila Aguiar
Artista e comunicadora

Por não se tratar de um curso contínuo, não há turmas abertas no momento. Contudo, provavelmente aconteça mais uma edição das vivências neste segundo semestre – com inicial desejo de que seja presencial, mas possivelmente ainda mantendo tudo de forma online. As inscrições serão divulgadas no perfil de Camila Aguiar, no instagram. O valor gira em torno de R$150. 

Ainda na seara de feitura manual, quem também promoveu momentos de compartilhamento de saberes artísticos durante a pandemia foi Levi Santos, com ênfase no bordado. Estudante do curso de Design de Moda do Centro Universitário Ateneu, em Fortaleza, ele esteve à frente de uma formação gratuita realizada em parceria com o Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ), resultado do projeto de extensão “Teias”, da UniAteneu

Legenda: Algumas das criações realizadas a partir do curso de bordado ofertado pelos estudantes da faculdade UniAteneu em parceria com CCBJ
Foto: Arquivo pessoal

A ação teve como foco resgatar as práticas artesanais cearenses, e foi realizada no início do ano letivo da faculdade. Os encontros reuniram dezenas de pessoas durante as sextas-feiras, de forma remota, das 15h às 17h. De acordo com Levi, o projeto lhe auxiliou a expandir horizontes como designer – visto que o bordado, além de carregar uma carga cultural muito forte, também deixa os artistas livres para criarem as formas e os desenhos imaginados por meio de uma variedade imensa de pontos.

“É uma arte que nos possibilita realizar nossas ideias de maneira muito criativa devido à sua infinidade de técnicas e pontos. Podemos desenvolver formas e texturas diferentes usando apenas um pedaço de tecido, fios e agulhas”, exemplifica o artista. Ele também situa que a troca de experiências durante o curso foi bastante proveitosa, sobretudo devido à multiplicidade de criações mediante os distintos olhares e experiências dos participantes.

“Inclusive, durante os encontros, alguns dos alunos chegaram a comentar conosco que já haviam recebido encomendas de alguns dos produtos ensinados durante o curso. Percebo, assim, que a oferta de cursos virtuais no campo das artes durante a pandemia tem otimizado que os artistas, de um modo geral, profissionalizem seu ofício, pois, nesse momento tão difícil, as pessoas encontram na arte uma forma de refúgio para todo esse caos”.
Levi Santos
Estudante do curso de Design de Moda da UniAteneu

De forma específica, o bordado, conforme Levi, igualmente traz consigo uma forma de terapia e uma fonte de renda, visto ser uma técnica com potencialidade de ser empregada em diversos produtos. “Sem dúvida, por outro lado, a maior dificuldade de tudo isso é a falta de apoio público para a promoção de mais ações como essas”, lamenta o estudante.

Legenda: O estudante de Design de Moda Levi Santos durante curso de bordado, atuando como facilitador das práticas
Foto: Arquivo pessoal

Atuações e reflexões

Esse componente reflexivo acerca do próprio ofício durante este denso momento também é do expediente de Pedra Silva. A macumbeira, artista multilingue, arte-educadora e pesquisadora das encruzilhadas já vinha há quatro anos realizando a docência em instituições educacionais e artísticas cearenses. Com a pandemia, tudo foi reajustado – inclusive as formas e relações de trabalho. Nesse sentido, ela enxergou, nos convites recebidos, um modo de continuar a exercer pesquisas no campo artístico e educacional. 

“Porém, nem tudo são flores. Percebi que, cada vez mais, a classe artística vai sendo empurrada para um mundo onde há uma maior valoração para o trabalho individualista, para um lugar meritocrático, ou melhor, tecnocrático. Fora o não apoio e financiamento pela Secretaria de Cultura – pois, se estamos trabalhando de home-office, precisamos de bons computadores e excelente acesso à rede de internet, e isso não é uma realidade para todas as artistas”, compara.

Na pandemia, Pedra já ministrou, pelo CCBJ, o curso básico “Corpa e Audiovisualidades: encruzilhadas criativas de cura, cuidados e memória”; a formação Percurso Básico de Teatro Negro, organizado pelo Grupo Griotes de Teatro, em parceria com o Theatro José de Alencar; e a Residência Memórias Negres-Natives, organizada pelo Ateliê Casamata e ministrada por ela e Amandyra – artista na cena/integrante da Coletiva NEGRADA. Cada encontrou primou por uma forma específica de lidar com diferentes temáticas no campo da arte.

Legenda: Registro de um dos encontros da Residência Artística Memórias Negres Natives, organizada pelo Ateliê Casamata e ministrada por Pedra Silva e Amandyra
Foto: Montagem das fotografias por Clebson Oscar

Há outros dois projetos que recentemente ela foi convidada para ministrar. O primeiro é o Curso Básico de Teatro, ofertado pela Escola Porto Iracema das Artes. Intitulado “Jogo, corpo e criação”, quem participa dele é convidada (o) a expandir o repertório de criação por meio da memória, do território e da ancestralidade. 

O segundo é o Curso Extensivo de Música organizado pelo Centro Cultural Bom Jardim, que se chamará “Técnica Corporal e Dramaturgia Sonora”. Nele, dará o tom a investigação do corpo como elemento criativo e sua habilidade dramatúrgica, musical e sonora pelos elementos do “spoken word”.

“Existe algo bastante peculiar em todos esses processos, sejam nos que já foram ministrados ou nos que ainda serão. Valorizo bastante, antes mesmo desses tempos pandêmicos, o lugar de acolhida antes de começarmos as aulas. Digo de quem acolhe para harmonizar as energias, os Oris, as presenças. Costumo começar minhas aulas convidando quem participa para uma limpeza pessoal. Reavivando as práticas de cura e cuidado que transbordam dos terreiros, passamos, individualmente, água de cheiro na corpa. Pedimos permissão a quem veio antes de continuar a caminhada de aprendizado e troca”, divide Pedra.

Legenda: “Gosto de entender que a presença não é só feita do existir, mas também do ato de se relacionar. Presença é relação", diz Pedra Silva sobre o valor das trocas formativas
Foto: Divulgação

O poder da palavra

Questionada se, para além do caráter profissional, ofertar e realizar os cursos também se tornaram um modo de se expressar artisticamente, Pedra Silva é direta: “Sim. Algo bastante importante e caro para as comunidades diaspóricas e indígenas é o poder da palavra. Voz é corpo, voz é movimento, voz é corpo em expansão, em dilatação. E a voz, por vezes, era o único canal de acesso entre eu e a outra pessoa que estava no outro lado da tela”, descreve.

Como exemplos de feitos realizados durante este instante pandêmico pela arte-educadora, estão a já citada residência artística Memórias Negres-Natives – uma vez, segundo ela, ter sido um divisor de águas também na descobertas de outras metodologias de encontro; a criação do “game ancestral” intitulado “Para a Terra volta toda Corpa em Matéria”, em parceria com Garu e Rodrigo Lopes, no qual o quintal da casa dos pais da artista foi digitalizado em realidade virtual; e um projeto que cada vez mais amplia espaços em torno da ritualística, da estética macumbeira e da arte-educação, chamado “Você é a Encruzilhada de suas Memórias”.

“Gosto de entender que a presença não é só feita do existir, mas também do ato de se relacionar. Presença é relação. Com isso, penso que todos os momentos de encontro que tive até agora são como presentes, já que estar vivo nesse país para a comunidade T é um ato de vingança”, destaca Pedra. Nesse movimento de trocas, ela também recorda de um dia especial, que vigorou seu fazer artístico.

Legenda: Pedra Silva defende que, apesar das benesses advindas das dinâmicas fortalecedoras em um momento tão intrincado para o planeta, é necessário mais
Foto: Montagem das fotografias por Clebson Oscar

“Laís Machado (BA) foi tutora do projeto “Afrografias da Corpa Jabuti” (Coletiva NEGRADA), dentro do Lab. de Teatro da Escola Porto Iracema das Artes. Laís um dia nos pegou de surpresa, disse que ia começar a fazer alguns testes de treinamento energético pelo Meet. Ela conduziu um momento onde eu não ministrava, eu era conduzida. Já fazia um ano e meio que estávamos dentro de casa, e pela palavra, pela voz, Laís me abriu espaço pra dançar algo que estava morno dentro de mim. Dancei, suei, gritei, girei, tudo ali, dentro do meu quarto. Dentro de mim mesma”, partilha.

Por isso mesmo, ao quantificar e qualificar essas experiências, Pedra Silva defende que, apesar das benesses advindas das dinâmicas fortalecedoras em um momento tão intrincado para o planeta, é necessário mais. “É bastante importante o apoio e financiamento da Secretaria de Cultura, que ela chegue mais junto aos artistas independentes com auxílios, bolsas e material de escritório”, observa.

“Penso que a internet nos possibilita estar em contato com pessoas de outros territórios pelo ciberespaço dinâmico. Conheci muitas outras artistas, pesquisadoras, arte-educadoras e pude trocar ‘figurinhas’ com elas, coisas que não aconteceriam tão rápido no espaço da presença física, pois estamos falando de pessoas de outros territórios. Os desafios sempre são os mesmos ou são os velhos desafios atualizados. Artistas pobres, perifériques, negres, indígenas, trans sofrem há bastante tempo um processo de sucateamento construído pela colonização. Então, mais uma vez reitero: para que possamos trabalhar de forma justa no ciberespaço é preciso ter recursos e aparelhos tecnológicos”, conclui.   

Serviço

Curso 321 Escreva, da professora e escritora Vanessa Passos
Inscrições do dia 9 a 13 de agosto, por meio deste link. Interessados também podem se inscrever na Jornada Da Escrita à Publicação, evento virtual e gratuito, cujas inscrições vão até esta quinta-feira (5), neste link. Mais informações, pelas redes sociais do Pintura das Palavras (facebook e instagram)

Vivência de Mandalas - A criação de si através dos círculos sagrados, com a artista e comunicadora Camila Aguiar
Possível edição neste segundo semestre, no valor em torno de R$150. Mais informações pelo perfil de Camila Aguiar, no instagram

Programa de Formação Básica da Escola Porto Iracema das Artes, com participação da arte-educadora e pesquisadora Pedra Silva, à frente de um dos módulos do percurso de Teatro
De 9 de agosto a 3 de novembro, às segundas, quartas e sextas-feiras, das 14h às 17h, de forma virtual. Inscrições encerradas. Mais informações no site do Porto Iracema das Artes

Assuntos Relacionados