Cultura de avós para netos: a mestra cearense que transmite saberes da medicina tradicional popular

Mãe Zimá herdou dos antepassados a sabedoria de lidar com o poder curativo da natureza; hoje, transforma os netos em protagonistas nessa arte milenar

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Da esquerda para a direita, Greice Rocha, Pedro França e Mãe Zimá: conhecimentos passados de geração em geração
Foto: Kid Júnior

Se você perguntar a Zimá Ferreira da Silva qual a melhor lembrança da infância, ela falará dos avós. Foi com eles – sobretudo ao lado do avô, Gastão – que aprendeu a lidar com a natureza. Observava o manuseio das ervas, a forma como transformava simples plantas em instrumentos de cura, e se sentia conhecedora das coisas. “Ele rezava e dava às pessoas um chá quando tinham problemas de saúde e outras questões”, recorda.

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Mais de 70 anos depois, é ela quem transmite esse saber aos próprios netos. Mãe Zimá – primeira Mãe de Santo brasileira a receber o título de Mestra da Cultura, pelo Estado do Ceará – é toda satisfação ao difundir a medicina tradicional de terreiro.

Chás, garrafadas, lambedores e banhos de ervas são sinais visíveis da herança deixada pelos antepassados e abraçada no cotidiano das novas gerações.

Pedro França e Greice Rocha que o digam. Ambos são netos da matriarca – ele, de sangue, ela, de Santo. Atuam junto à avó todas as quartas, sextas e sábados no Ogum Megê, terreiro localizado no bairro Siqueira, em Fortaleza.

Ali testemunham a mudança na vida de muitos frequentadores, tendo em vista a força com que a mestra traduz conhecimentos em práticas tão arcaicas quanto atemporais. Em cada passo, há o componente natural dando o tom.

Legenda: Às quartas, sextas e sábados, Pedro fica ainda mais junto da avó trabalhando em preparos de ervas
Foto: Kid Júnior

“Isso me dá um senso de responsabilidade muito grande, principalmente quando ela pede para eu fazer o ensinamento que aprendi com ela. É muito gratificante”, diz Pedro.

“Ao longo de todos esses anos, fomos crescendo e acompanhando Mãe Zimá nesse caminho e todo dia é um novo aprendizado repassado para as pessoas que estão chegando”, complementa Greice. É parte do todo, porém.

Mãe Zimá também é descrita pelos netos como alguém extremamente carinhosa e dedicada. Já perdeu a conta do número de vezes em que precisou atender ao chamado de um filho – seja legítimo ou de Santo – em horários inimagináveis, às vezes no meio da madrugada.

Para ela, isso é amor e compromisso. “Acho isso muito importante, ter uma vida espiritual para ajudar uns aos outros. Tô aqui para auxiliar todos, inclusive você”.

Medicina e fé

Esse apoio se utiliza tanto do credo quanto da ciência para surtir efeitos. Tudo aquilo produzido e praticado por Mãe Zimá une fé e medicina de forma muito harmônica. De um lado, o poder da terra, das raízes e das folhas; do outro, a crença de que a espiritualidade é primordial para as estradas se abrirem e o mal ir embora.

“A fé move montanhas, e a garrafada feita com ervas naturais – além do lambedor e do banho de ervas – são coisas que fazem bem à saúde porque vêm da própria natureza. Se nós, seres humanos, preservássemos a biodiversidade, seria bem melhor para o futuro dos nossos filhos, netos e bisnetos”, defende Mãe Zimá, genitora de três, avó de seis e bisavó de uma. 

Legenda: Mãe Zimá é a primeira Mãe de Santo brasileira a receber o título de Mestra da Cultura, pelo Estado do Ceará
Foto: Kid Júnior

A linhagem dedicada à Umbanda vem de longe. Aos sete anos, na casa do avô Gastão – de quem a mestra herdou a corrente de guias espirituais – Mãe Zimá recebeu pela primeira vez o próprio Orixá.

O fato causou enorme desconforto na família católica, mas, anos depois, ela começou a frequentar o terreiro Rei do Cangaço, de Zé Alberto, considerado um dos maiores umbandistas do Brasil e quem se tornou seu Pai de Santo. 

Apesar da pouca experiência, a umbandista aceitou a responsabilidade de preservar a cultura dos ancestrais após a morte do tutor espiritual. Quando olha para Pedro, Greice e os demais netos, fica feliz.

“Pra mim, cada um deles é o renascer de uma vida. Agora mesmo nasceu a Alice – que é tudo de bom que eu tenho, não deixa ninguém chegar perto de mim. Quando alguém fala que me quer, diz: ‘Ela é minha’. Isso fortifica a minha pessoa e o meu espírito”.

Eternizar a tradição

Agora é não deixar a tradição ir embora e investir cada vez mais na difusão de habilidades. Greice, por exemplo, acompanha os gestos da avó desde os três anos de idade. Curiosa, ajudava a plantar, colher e preparar as ervas que, em horas muito breves, se tornariam antibiótico natural.

Pedro, por sua vez, iniciou esse maior contato aos 10 anos. Hoje, com 18, festeja as lições de vida e autocuidado que passou a cultivar com esse movimento.

“Minha sensação ao ter contato com esse universo pela primeira vez foi muito legal. Comecei a pensar que as coisas artificiais compradas nos supermercados não valem a pena. É muito melhor você pegar o que tem na natureza e fazer chá, banho, lambedor. Isso vai te ajudar de forma muito mais rápida”, avalia. “Todos os dias minha avó sai de casa cedinho para comprar materiais para isso. É muito bonito ver isso”.

Legenda: Linhagem dedicada à Umbanda vem de longe na família, iniciando com o próprio avô de Mãe Zimá
Foto: Kid Júnior

Não à toa, ele enfatiza que a consideração por Mãe Zimá não é apenas devido à importância dela no cenário cultural cearense e nacional – a umbandista percorreu inclusive outras partes do mundo para aperfeiçoar conhecimentos na área; mas porque todos os avós merecem respeito.

“Pessoas que são netos – não importa se os avós são artistas ou não, de uma religião ou de outra – devem manifestar o amor sempre. Minha avó é minha segunda mãe, eu cresci com ela. Ela me ensinou muitas coisas, então espero que, quem ainda tem avós, aproveite ao máximo o momento com eles. Você pode amá-los o quanto for, mas nada é pra sempre”.

Greice não fica atrás. “Mãe Zimá é a única avó que eu tenho – não tenho mais avós de sangue há muito tempo. Então tudo o que aprendi, tanto no terreiro quanto na vida, foi ela que me ensinou. É aquela vó que acompanha, dá conselho, está perto”.

No terreiro do bairro Siqueira, a ternura faz escola. Certamente, quando um dia perguntarem a alguém dali qual a melhor memória de infância, Mãe Zimá virá à mente em voz e presença.

“Foi a coisa melhor que Deus me deu: meus filhos de santo, os filhos que eu pari e os netos dos dois lados. Sou muito feliz. Agora que também tenho você, vou ficar mais feliz. Axé”.

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