Corrupção, abuso sexual, manipulação da fé: como ‘Bom dia, Verônica’ expõe as crueldades sociais
Criador da série, Raphael Montes comenta sobre os desafios da segunda temporada e torce por continuação
É um mundo novo em “Bom dia, Verônica”. Novo no sentido de repaginado. Sai a trama da primeira temporada – com destaque para Camila Morgado e Eduardo Moscovis – e entra a história envolvendo os personagens de Reynaldo Gianecchini, Camila Márdila e Klara Castanho. Entre as duas, ainda está uma Tainá Müller em busca de justiça e dignidade. E uma onda de barbáries que segue incontrolável, ditando a atmosfera cruel da série.
“Infelizmente, esses casos acontecem no Brasil, sempre aconteceram. Mas, felizmente, cada vez mais estamos falando deles, mostrando como existem e precisam ser combatidos por todos nós enquanto sociedade”, introduz Raphael Montes, um dos criadores da atração da Netflix, cuja segunda temporada foi lançada no mês passado. Junto a Ilana Casoy, ele também assina o livro homônimo, no qual a série é baseada. Sucesso editorial e audiovisual.
Veja também
Mas, afinal, como o programa expõe brutalidades sociais de forma a não sairmos ilesos do enredo que, embora ficcional, bebe da violência do cotidiano? Para Raphael, isso se deve à natureza do trabalho dos autores à frente do projeto, envolvidos desde sempre com a escrita policial. Mesmo com a expertise de ambos, o equilíbrio entre ficção e realidade é difícil.
“É o que eu venho fazendo desde os meus livros, passando pelos filmes do caso Richthofen – ‘A menina que matou os pais’ e ‘O menino que matou meus pais’ – e também por ‘Bom dia, Verônica’”, diz.
“Acredito que, no caso de um trabalho de ficção, as possibilidades são muito amplas. Mesmo que a gente se inspire em personagens, situações e dramas reais, temos liberdade para criar acontecimentos que eventualmente não existem na realidade”.
Vamos aos detalhes. No primeiro ano, Verônica Torres (Tainá Müller) trabalha como escrivã na Delegacia de Homicídios de São Paulo. Após presenciar um suicídio, ela precisa lutar contra os traumas do passado e acaba tomando uma decisão: usar a habilidade investigativa para ajudar duas mulheres desconhecidas. A primeira é uma jovem enganada por um golpista na internet. Já a segunda, Janete (Camila Morgado), é a esposa submissa de Brandão (Eduardo Moscovis), policial de alta patente que a maltrata e leva uma vida dupla.
Na mais recente temporada, o caminho de Verônica cruza com o de Matias Carneiro (Reynaldo Gianecchini), um líder religioso que usa do próprio poder para abusar sexualmente de mulheres. Ao se aprofundar na investigação, a protagonista descobre toda uma máfia liderada por Matias, assim como crimes cometidos por ele contra a própria filha (Klara Castanho) e esposa (Camila Márdila). Temas como corrupção, abuso sexual e manipulação da fé enchem a tela de ainda mais suspense e mistério.
Entretenimento e pertinência
Dada a bem-sucedida recepção de crítica e público na temporada de estreia, o desafio para os criadores foi encontrar uma narrativa em que fosse mantida a simbiose perfeita entre entretenimento e pertinência. Logo, não poderiam faltar reviravoltas, personagens complexos e cenas que propusessem discussões e reflexões sobre o Brasil contemporâneo.
“Nessa medida, começamos a discutir qual seria primeiro a jornada da Verônica, o que ela investigaria e como essa investigação a transformaria. Ao longo da primeira temporada, a personagem se transforma muito. Se você perceber, a Verônica do início da série e do final da primeira temporada são bem diferentes. Queríamos que, no segundo ano, o caso que ela investigasse também a transformasse, como acaba acontecendo”.
É assim que a protagonista se volta para a própria família, mapeando a sede de justiça aprendida com o pai. Na outra face da moeda, Verônica passa a investigar uma narrativa que também envolve pai e filha – Matias e Ângela – desconstruindo, assim, a imagem do pai herói. Mais um ponto para o programa.
Na visão de Raphael, o tema da violência contra a mulher e o despertar delas sobre essa violência estão presentes desde o início da empreitada – tanto da série quanto do livro. Vem daí, inclusive, o título “Bom dia, Verônica”. Ele representa o despertar da investigadora, incansável de modo a fazer com que outras mulheres amanheçam para a liberdade.
“Sempre acreditei que a dramaturgia é uma das formas mais potentes de levantar reflexões, provocações e, eventualmente, mudar o mundo. Então, minha vontade, ao trabalhar com literatura e audiovisual, é contar histórias que levantem perspectivas. Eu poderia só contar uma história, mas é muito mais potente contar uma história e trazer visibilidade para discussões que a gente precisa ter como sociedade”.
Acompanhar crimes
Há outro componente importante quando falamos da atração em questão. Ela se soma a outras tantas cujo apelo reside na força do audiovisual brasileiro ao falar de crimes, mistérios, atrocidades.
Uma das mais recentes é a série documental “Pacto Brutal: O Assassinato de Daniella Perez”, produção da HBO sobre o assassinato da atriz e modelo, em 1992. Feito “Bom dia, Verônica”, o projeto também alavancou a audiência do streaming, sinalizando o gosto nacional pela temática.
Segundo Raphael, “o público brasileiro gosta de boas histórias, que tratam de emoção, de dramas. Vivemos em um país de violência, de desigualdades sociais, de racismo e misoginia, então assistir a narrativas que tratam desses temas – seja de maneira ficcional ou que documentam casos reais – sem dúvida é atraente porque faz parte da nossa realidade”.
Dessa forma, quando acompanhamos projetos com essa envergadura, a gente se entende e se conhece um pouco mais – e, na torcida dele, se aprimora também. Não à toa, o escritor atualmente festeja a publicação da nova edição do livro que originou a série, pela Companhia das Letras; está desenvolvendo uma novela para a HBO; e adianta ter muita vontade de escrever mais uma temporada de “Bom dia, Verônica”.
“Temos planos para isso, mas a confirmação demora. Só virá após um mês do lançamento da nova temporada e a depender, claro, da repercussão. Então, é muito importante que as pessoas continuem maratonando, recomendando e fazendo barulho nas redes sociais para que a Netflix renove a série. Terei a maior alegria em escrevê-la”.
Nesse convite ao público, um modo de multiplicar o que, na visão dele, é um dos destaques do próprio trabalho. “Minha maneira de enxergar as narrativas é chamando as pessoas para uma montanha-russa, uma viagem cheia de loopings, quedas radicais, viradas surpreendentes, além de, claro, trazendo reflexões. Uma viagem em que você sai provocado”. Ainda bem.