Com Cinemateca Brasileira fechada, profissionais denunciam “situação trágica” do acervo
Governo Federal nega alegações e defende que “o equipamento está preservado”
Uma “tragédia anunciada”. É assim que os profissionais de preservação audiovisual que acompanham a situação da Cinemateca Brasileira definem o atual momento. “A gente sente o cheiro no ar, inclusive passando perto, você literalmente sente o vinagre no ar”, denuncia uma ex-funcionária do equipamento cultural, que prefere manter o anonimato.
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Localizado em São Paulo, o lugar está de portas fechadas para o público há mais de um ano e vem sendo gerido diretamente pelo Governo Federal desde julho de 2020. Antes, era a Associação Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), uma Organização Social (OS), que estava tomando conta do acervo de 250 mil rolos de filmes.
Com o contrato encerrado em 31 de dezembro de 2019, a OS ainda manteve pelos sete meses seguintes uma equipe técnica improvisada, sem recursos e salários, a fim de não abandonar o equipamento. Na época, funcionários e entidades realizaram diversos protestos afirmando que a instituição passava pela maior crise desde a sua fundação, em 1946.
Ao assumir a Secretário Especial da Cultura do Governo Federal, Mário Frias pegou as chaves do equipamento com a Acerp, mas pouca coisa teria mudado desde então. No último dia 12 de maio de 2021, o Ministério Público Federal em São Paulo (MPF-SP), que ainda em julho passado havia entrado com uma ação contra a União por abandono da Cinemateca, concedeu 45 dias para a pasta comprovar as ações implementadas pela preservação do patrimônio.
Memória em risco
A situação do equipamento vem oscilando ao longo do tempo. “O acervo já havia sofrido impasse pela descontinuidade dos trabalhos e já tinha muitas marcas de toda sua trajetória como instituição, que sempre esteve aquém das condições ideais. Neste ano, a Cinemateca completa 75 anos e somente no início deste século passou a ter de fato boas condições de armazenamento”, conta a ex-funcionária.
Problemas como o incêndio de 2016, a proliferação de mofo pela umidade, a presença de roedores, as fezes de pombos e, mais recentemente, uma enchente, no começo de 2020, comprometeram parte significativa desse acervo, segundo a fonte anônima ouvida pelo Diário do Nordeste.
Hoje, o que mais preocupa, de acordo com a ex-funcionária, é a ausência de uma equipe técnica monitorando diariamente o material, o que potencializa os estágios de deterioração.
“Eu acho que é muito arriscado lançar números, porque a gente não tem nem condições de checar, mas o que a gente tem são depósitos que, pela ausência de atuação da equipe técnica, com certeza tiveram uma piora nos materiais ali depositados”, afirma.
A falta de uma base de dados consistente, segundo ela, prejudica ainda mais o processo de identificação do que pode ou não ter se perdido. Mesmo a faixa de 250 mil rolos publicizada como acervo total, conforme a fonte, é apenas uma estimativa a partir do espaço existente.
Falta de estabilidade
Para Débora Butruce, preservadora audiovisual e presidenta da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA), a estabilidade é um dos pilares mais importantes de uma instituição de memória como a Cinemateca. “E é justamente o que está em risco, a estabilidade de todos os processos”, alerta.
Segundo ela, um dos fatores para que essa crise possa ser considerada uma das maiores que o equipamento cultural em questão já enfrentou é a falta de servidores.
Nas outras crises, apesar de a instituição não contar com o número de servidores adequado, ainda contava com alguns funcionários públicos que podiam dar conta minimamente do monitoramento e da manutenção dos fluxos de trabalho. Com a mudança da administração para o terceiro setor, através de uma Organização Social (OS), os poucos funcionários públicos remanescentes foram realocados para outros órgãos", critica.
Segundo a presidenta da ABPA, esta situação acaba por acelerar os processos de deterioramento do acervo original e, mesmo que parte dele esteja digitalizado, se perde uma dimensão constitutiva do que somos enquanto sociedade brasileira.
“O que a gente tem que entender é que digitalizar serve, sobretudo, para dar acesso num outro suporte, mas essa transformação implica em perdas, porque a gente está falando de materiais com uma natureza específica, de artefatos audiovisuais que possuem características próprias, históricas e estéticas, que vão estar presentes naquele material original”, ressalta Débora.
Neste sentido, uma das ações emergenciais apontadas pela presidenta da ABPA é exatamente a recontratação de equipe técnica especializada, enquanto se elabora o novo chamamento para a OS que administrará a instituição.
O que diz o Governo
Em nota, a assessoria da Secretaria Especial de Cultura do Governo Federal afirmou que a situação relatada pelos profissionais “não procede”.
Desde o recebimento das chaves da cinemateca foram empenhados contratos emergenciais e licitados para assegurar a manutenção das condições de preservação do acervo. Isto ficou claro na visita realizada nas dependências da cinemateca por parte do Ministério Público ocorrida há 14 dias”, introduz.
A nota adianta ainda que o estudo de publicização da Cinemateca foi encerrado e que a pasta aguarda agora a assinatura da portaria que autoriza a deflagração do processo de chamamento público. “Esta etapa prévia é necessária e foi finalizada em tempo recorde. Processo similar havido quando da primeira publicização levou cerca de 2 anos, este processo foi encerrado em menos de 6 meses”, diz.
Por fim, a pasta afirma que “os contratos estão em vigência e o equipamento está preservado, não sendo verossímil as alegações citadas”.
Questionada sobre a quantidade de profissionais com contratos vigentes, suas respectivas áreas de atuação e ainda sobre um cronograma para a recontratação de antigos funcionários técnicos, contratação de novo gestor e recomposição de um conselho, com representantes da sociedade civil e da categoria audiovisual, a assessoria não se pronunciou até o fechamento desta reportagem.
Documento de prestação de contas da Secretaria Nacional do Audiovisual afirma que o acervo segue protegido pelos contratos emergenciais (energia elétrica, água, vigilância, brigada de incêndio, limpeza, manutenção predial e controle de pragas).
Mas o que os profissionais entrevistados para esta matéria questionam vai além disso.
Toda e qualquer ação emergencial que não dê conta de garantir recursos para uma equipe grande, de garantir recurso para película virgem, e que não abarque a manutenção técnica dos laboratórios, não vai ser uma resposta à altura do problema”, conclui a ex-funcionária da Cinemateca.