Boneca para menino e carrinho para menina: pais estimulam o brincar sem estereótipo de gênero
Psicóloga avalia que esta ruptura possibilita novos arranjos sociais
Se você tem criança em casa, é bem possível que ela já tenha te pedido um irmãozinho ou irmãzinha, né? Aconteceu com a cearense Vanessa Queiroga, em dezembro passado. Filho único, o pequeno Raul estava prestes a completar 5 anos e queria uma companhia para “ajudar a cuidar”. Aproveitando o interesse do garoto, a mãe o presenteou como uma boneca no aniversário.
“Pensei que seria uma forma de ampliar as possibilidades de brincadeiras e barrar os preconceitos de gênero. A boneca é daquelas que comem, fazem cocô, xixi… No início ele recuou, achou engraçado, mas depois começou a ficar curioso, se aproximou, chamou-a de Bianca e iniciou a brincadeira de forma espontânea”, relata Vanessa.
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Ainda que alguns familiares tenham questionado a atitude e até mesmo demonstrado receio de que Raul sofresse algum tipo de violência por conta do novo brinquedo, a mãe não hesitou em nenhum momento.
“Acho que brincar ensina muito sobre viver. Acredito que uma criança com liberdade para brincar, sem distinção, amarras e preconceitos, possa se tornar uma cidadã muito melhor e encarar o mundo com mais respeito, contribuindo com um futuro mais igualitário e livre de tabus e discriminação. É isso que almejo para o Raul”, projeta.
Diversidade de papéis sociais
Na casa de Cinara Gomes Eufrásio, a lógica é parecida. Mãe de André, 4 anos, Davi, 2 anos, Luís, 3 meses, e madrinha da Lia, 3 anos, ela investe em brinquedos e brincadeiras que não contribuam para uma ideia estereotipada dos papéis sociais.
“Cozinhar, limpar, ir ao supermercado são atividades do homem e da mulher. É importante trazer isso para as atividades deles, para que cresçam com um olhar tranquilo, de que é isso mesmo, e quando eles forem encarar lá na frente, vão se dispor a fazer”, acredita.
Aliás, foi de olho na rotina de casa dos pais que os pequenos manifestaram o desejo de brincar com elementos de cozinha e limpeza. Começaram pegando uma vassoura maior do que eles mesmos, até que a família se sensibilizou, presenteando a turminha com brinquedos domésticos em miniatura na pandemia.
“Percebemos que eles passavam muito tempo nisso, querendo estar nessa atividade, e a coisa se concretizou. São brincadeiras que ficam longas, que a gente vê que realmente é interessante. Eles criam, se imaginam em situações de vida real e vão traçando possibilidades diversas”, observa a mãe.
Tal como o Raul, os filhos e a afilhada de Cinara cuidam de bonecos e ursinhos como se fossem gente. “No caso da Lia, se tiver que montar no trator, ela monta pra fazer ‘entrega de pizza’, e se tiver que fazer comidinha para boneca, ela faz também”, conta orgulhosa a madrinha.
Rupturas e rearranjos
Na visão de Marília Albuquerque de Sousa, especialista em Psicologia Educacional e professora substituta do curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará – campus Sobral, essa é uma daquelas rupturas produtivas.
“Isto é, dentro dos processos formativos das crianças, a oportunidade de brincadeiras e brinquedos que não sejam regulados por papéis de gênero pré-estabelecidos possibilita novas realidades e novos caminhos, que não podemos necessariamente prever”, explica.
Segundo ela, o corte na reprodução de estereótipos que dividem a sociedade de forma binária e hierárquica possibilita novos arranjos sociais, mesmo que, inicialmente, a partir das brincadeiras.
“Para brincar, é preciso negociar; as crianças estabelecem regras e acordos, mesmo que estas pareçam sem lógica para os adultos arrazoados em demasia. Assim, talvez – reforço, talvez, pois não há garantias nessa aposta – com a ‘liberdade’ do brincar, podemos imaginar e inventar novas formas de existir consigo mesmo e com os outros, onde as crianças possam, não apenas brincar, mas também falar e serem escutadas”, analisa.
Ao dizer isso, Marília está também criticando o que chama de "adultocentrismo", que – dentro das relações de poder – localiza as crianças como sujeitos sem voz, vontade ou escolhas - quando, na verdade, elas estão o tempo inteiro nos comunicando seus pensamentos, fantasias e dilemas.
“Nosso ponto de partida deveria ser apostar nas brincadeiras como um campo de experimentação, em que as crianças podem fazer uma leitura da realidade e se posicionar como sujeito”, orienta.
De pais para filhos
Quem passa por isso, geralmente tem mais facilidade de transmitir às novas gerações. Vanessa Queiroga, a mãe do Raul, teve uma infância muito livre em relação ao brincar. Como tinha um irmão um pouco mais novo, os brinquedos acabavam se misturando.
“Tive a oportunidade de brincar de carrinho, boneco, luta, futebol, videogame e tudo o que eu tivesse vontade. Isso ampliou muito o meu leque de brincadeiras e ajudou a desenvolver bastante o meu imaginário”, admite.
Da mesma forma, Cinara acredita que essa liberdade na infância tenha influenciado a adulta que ela é hoje.
“Minha mãe tinha uma estante cheia de livros e ela deixava eu com minhas primas e amigas simular uma casa de boneca inteira com muros construídos com esses livros capa dura em pé. Tal hora, a boneca ficava lá, mas a ideia era construir”, lembra. “A vantagem é normalizar as atividades como permitidas, independentemente do gênero”, entende.
Ainda no contexto parental, a professora Marília Albuquerque salienta que podemos falar também de uma certa transmissão das normas, dos ideais e expectativas familiares que são depositadas nas crianças e que, por meio da brincadeira, podem ou não serem compatíveis.
.“As crianças podem tanto reproduzir aquilo que lhes foi transmitido, quanto elaborar pequenas transgressões da norma. Nas brincadeiras, o corpo é experiência e experimento, os brinquedos são instrumentos que tornam possível invenções e criações. Nesses novos mundos criados nas e pelas brincadeiras, a criatividade e a diversão rompem, ou tentam romper, as amarras da regulação”, reforça.
Contribuição da escola
No que diz respeito ao ambiente escolar, Marília acredita que ele representa um lugar privilegiado para provocar mudanças e debates em torno dos papéis de gênero, pois ocupa um papel fundamental como instituição que insere a disciplina do corpo.
Conforme a professora, lá as pessoas aprendem a se comportar a partir de parâmetros muito específicos que correspondem à divisão binária de gênero, e as brincadeiras também são estruturadas a partir dessa divisão.
“Meninos brincam com meninos e meninas brincam com meninas, a mistura é preocupante; meninos brincam de futebol, meninas de amarelinha; meninas gostam de literatura, meninos de matemática; as regulações das supostas feminilidade e masculinidade são inseridas desde os primeiros anos da educação infantil”, exemplifica.
Neste cenário, a profissional defende que antes mesmo de termos a escola e os educadores como aliados na construção de novos possíveis no campo das políticas de gênero, devemos interrogar as práticas e o papel da escola na manutenção da divisão das brincadeiras por estereótipos de gênero, entendendo que ela pode servir como um território oportuno para rupturas e transformações.
Fiquemos, por fim, com um texto, sugestão de Marília, para ilustrar a liberdade da invenção:
Exercícios de ser criança, Manoel de Barros
No aeroporto o menino perguntou:
-E se o avião tropicar num passarinho?
O pai ficou torto e não respondeu.
O menino perguntou de novo:
-E se o avião tropicar num passarinho triste?
A mãe teve ternuras e pensou:
Será que os absurdos não são as maiores virtudes da poesia?
Será que os despropósitos não são mais carregados de poesia do que o bom senso?
Ao sair do sufoco o pai refletiu:
Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças.
E ficou sendo.