Adolescentes cearenses promovem mediação de leitura em Libras e criação de HQs
João Carlos Caetano, Elenilda Costa e João Victor Arcanjo, personagens da terceira reportagem da série "Pequenos protagonistas", realizam projetos literários de acessibilidade e promoção da fruição artística em Fortaleza
As paredes têm azulejos azuis, amarelos e brancos. São estreitas e emolduram um recanto especial, uma sala com várias estantes de livros. Diante de uma delas, um adolescente de 17 anos se posiciona e começa a falar para a câmera do celular: “Olá, meu nome é João Carlos, sou mediador de leitura da Biblioteca Comunitária Sorriso da Criança e hoje estou aqui para ler uma poesia em cordel do livro ‘Poesia com rapadura’, do autor Bráulio Bessa. Espero que gostem!”.
Veja também
A partir dali, através da tela, dezenas de crianças e jovens ligados à biblioteca – e talvez outros tantos espalhados pelo mundo – adentram num distinto contexto, onde a realidade não oprime nem entristece: amplia as possibilidades de contato com a parte mais sensível de nós. “Para mim, essa atividade é muito importante porque incentiva as pessoas a ler mais”, afirma João Carlos Caetano, estudante que atua como voluntário na referida entidade, localizada no bairro Presidente Kennedy, em Fortaleza.
Segundo ele, as páginas dos livros não são todas percorridas durante a mediação; apenas alguns trechos são selecionados e, na sequência, comentados. “Isso é bom porque o público vai ver, se interessar e querer o empréstimo das obras”, diz.
Com a pandemia do novo coronavírus, porém, essa ação tão tradicional da biblioteca precisou ser reinventada. Há alguns meses, João Carlos passou a mediar as leituras por meio de vídeos. As gravações são disponibilizadas no perfil do instagram da Sorriso da Criança (@bibliotecasorriso) e no do grupo Grito Jovem (@_gritojvm), também atuante no Presidente Kennedy.
Elenilda Costa, 19 anos, também integra a iniciativa. Ela atua como tradutora e intérprete de Libras (Língua Brasileira de Sinais). Conforme conta, a ideia da mediação de leitura acessível surgiu a partir da necessidade de fazer com que o conteúdo pudesse ser aproveitado por todos os tipos de público, contemplando também a comunidade surda.
“Tem pessoas surdas e representantes de pessoas surdas que seguem nosso instagram e sempre dão um feedback para mim após as postagens das mediações. Então, é muito importante a gente saber que eles acompanham. A acessibilidade é um direito de todos. E cada uma dessas experiências muda a minha vida, pessoal e profissional. O resultado é lindo”, festeja a jovem.
Inclusão pela palavra
A vida de João Carlos Caetano foi transformada de igual maneira a partir do projeto. Ele percebe uma melhoria nos estudos, na forma como lida com o mundo e com as pessoas ao redor. Crescimento integral por meio da palavra e do contato com o outro. Nem que agora essa conexão esteja acontecendo somente assim, entre telas.
“Meu maior sonho é que aconteça o desenvolvimento dessas ações, que a Prefeitura de Fortaleza veja isso e crie novas bibliotecas, capacitando também novas pessoas para as mediações. Se vissem o quanto isso é importante para muitos, tudo ia mudar completamente”.
Cursando o terceiro ano do Ensino Médio, o estudante, às portas de ingressar no ambiente universitário, enxerga no curso de Letras a oportunidade de abraçar ainda mais leituras e fazeres literários, tocando outros projetos que rompam o lugar comum. “Enquanto mediador de leitura, minha maior motivação é o bem-estar e o sorriso das crianças que nos acompanham. Quero levar isso pra sempre comigo”.
Elenilda Costa, por sua vez, não pretende parar de exercer o protagonismo em movimentos sociais, incluindo ainda mais pessoas nessa seara de cuidado, luta e inspiração. “A gente tem várias comunidades que não são vistas pela sociedade, então por que não incluir? Num projeto social comunitário onde nenhum surdo participou, por que não levá-los para os eventos?”, questiona.
“Já tive oportunidade de participar de conferências de juventude onde pude levar uma comunidade surda. Fui intérprete durante todo o momento, e foi lindo. Por que não fazer com que isso se multiplique? Sou uma pessoa que sempre gosta de ser desafiada. Mas, sozinha, não posso fazer um movimento social. Preciso de pessoas para estar junto comigo”, completa.
Tantas histórias
Em outra biblioteca comunitária de Fortaleza – a Sabiá, localizada no bairro Sabiaguaba –, há outro adolescente cujo enlace com a literatura e a vontade de ir além promove expressivas mudanças no meio em que vive. Aos 13 anos, João Victor Arcanjo cria e ilustra as próprias histórias em quadrinhos e, de quebra, estimula outras crianças e jovens a fazerem o mesmo.
“Acho divertido fazer essas histórias, pois gosto de desenhar e pintar. Invento tramas que são um pouco engraçadas, e elas se diferenciam das demais porque não se passam no mundo real, mas no mundo da fantasia, da imaginação”, explica o estudante.
Ele recorda da primeira vez em que se visualizou como artista. Ainda pequeno, recebeu da mãe um caderninho, objeto que se tornaria um fértil solo para rabiscar os primeiros traços. Criar aqueles que seriam os seus personagens, o próprio universo.
“Mostrei pra todo mundo o que tinha feito, todos gostaram e eu fui fazendo. Continuo até hoje. Crio histórias com personagens animais e gosto de fazer umas piadinhas, pra ficar mais legal. A Biblioteca Comunitária Sabiá me influencia porque, de vez em quando, eu vou lá para pegar algumas ideias e, depois, tentar colocar o que é meu”, explica.
Ao ser questionado sobre o porquê de compartilhar as historinhas com outros visitantes da biblioteca, João Victor é enfático: “Gosto de fazer os outros rirem com o que eu crio. Então, quero ser reconhecido assim, que as pessoas lembrem de mim como alguém que faz história em quadrinhos para alegrar o mundo. Afinal, quando crescer, meu sonho é ser cartunista”.
Atuação além-barreiras
Mediadora de leitura na Biblioteca Comunitária Sabiá, Gleiciany Queiroz relata que, de fato, João Victor é um devorador de histórias em quadrinhos e se destaca dos outros visitantes do espaço exatamente por enxergar, na arte que realiza, um motivo para alterar a realidade das pessoas ao redor. “Ele incentiva que os outros coleguinhas também levem histórias em quadrinhos, aí tem sempre uma troca”, conta.
“O interessante desse processo é o fato de que, pela arte, ele se torna um protagonista, fazendo todas as etapas das histórias e espalhando cada um delas na comunidade. Os alunos da escola do bairro gostam de comprar os quadrinhos dele, e ele estimula todos a ler e a desenhar”, complementa.
Não à toa, uma das lições que Gleiciany repassa às crianças e adolescentes frequentadores do ambiente sob sua tutela é que o fazer cultural e artístico não é restrito apenas às áreas nobres da cidade.
“A gente que tá na periferia também produz cultura, e com muita qualidade. E se tiver sendo produzido algo nos bairros nobres, aquele espaço também é nosso, a gente também pode chegar lá para consumir essa arte. Assim como ela não pode ficar restrita a apenas um público, também não se pode desvalorizar o que fazemos aqui”.
A profissional encara seu ofício, portanto, como uma ferramenta de empoderamento infantil e, por que não dizer, de todos aqueles envolvidos nessa teia de aprendizados, seja de menor idade ou não. Não à toa, a comunidade inteira é convidada a participar de uma poderosa ciranda de evoluções e metamorfoses.
“Acho muito importante ter essas meninas e meninos como protagonistas. Quando acreditam nos sonhos deles, percebem-se como capazes. Isso influencia até na modificação do próprio território da comunidade porque as próximas gerações são eles, que estão aí seguindo para que mudanças aconteçam e continuem. Eles estarem à frente desses movimentos é o que me dá a certeza que as coisas vão continuar a mudar, a evoluir”, celebra.
Serviço
Atividades virtuais das bibliotecas comunitárias Sorriso da Criança, no Presidente Kennedy, e Sabiá, na Sabiaguaba
Disponíveis em @bibliotecasorriso (instagram - Biblioteca Comunitária Sorriso da Criança), @_grupojvm (instagram - grupo Grito Jovem) e @bibliotecacomunitaria.sabia (instagram - Biblioteca Comunitária Sabiá)
> Nesta segunda-feira (31), confira a última reportagem da série "Pequenos protagonistas", sobre Maria Flor Caminha, menina de 10 anos que teve projeto aprovado na Lei Aldir Blanc para difusão da música entre outras crianças e o público em geral.