Legislativo Judiciário Executivo

Qual o histórico do debate sobre anistia no Congresso Nacional

Com a urgência aprovada na Câmara, oposição pressiona pela votação enquanto o governo articula para barrar a anistia ampla

Escrito por
Beatriz Matos, de Brasília producaodiario@svm.com.br
Plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília
Legenda: Deputados federais irão analisar projeto que prevê anistia a golpistas
Foto: Kayo Magalhães / Câmara dos Deputados

Logo nos primeiros dias após o recesso parlamentar, em agosto, oposição e base do governo travavam no Congresso Nacional uma queda de braço que paralisou a pauta da Câmara dos deputados. Durante cerca de 30 horas ininterruptas, deputados e senadores ocuparam a Mesa Diretora das duas casas, sequestraram o funcionamento do plenário e forçaram o cancelamento de sessões por decisão dos presidentes.

A obstrução marcou o início de um movimento calculado: pressionar pela inclusão da anistia na pauta. O gesto, muito bem arquitetado e simbólico, abriu caminho para o avanço das negociações que culminariam semanas depois na aprovação da urgência do projeto de anistia.

Naquele momento, quase ninguém acreditava que a pauta teria força suficiente para prosperar. De um lado, parlamentares da base afirmavam categoricamente que não passaria; de outro, a oposição garantia que passaria. O que parecia apenas mais uma disputa de forças revelou-se o início de um processo que ganharia energia nas semanas seguintes.

Foi nesse ambiente que o tema, até então restrito a bastidores, voltou à cena central. O movimento ganhou corpo conforme avançava o julgamento de Jair Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF). Cada condenação, cada voto lido, reforçava nos corredores do Congresso Nacional a articulação de uma proposta que pudesse reverter a inelegibilidade do ex-presidente e aliviar as penas dos seus apoiadores.

Lei da Anistia de 1979 e seu legado

O Brasil conhece de perto a força política da anistia. A mobilização ganhou fôlego a partir de 1975, com o Movimento Feminino pela Anistia, liderado por Terezinha Zerbini, que se espalhou pelo País por meio de comitês e atos públicos. Lideranças como o senador Teotônio Vilela chegaram a percorrer presídios para ouvir presos políticos e dar voz às reivindicações.

O auge veio em 1979, ainda sob a ditadura militar, quando a pressão popular obrigou o regime a ceder. Foi sancionada a Lei nº 6.683, fruto da campanha pela chamada “anistia ampla, geral e irrestrita”. O texto aprovado, entretanto, não atendeu integralmente às demandas da sociedade. Presos políticos fizeram greve de fome contra a exclusão de parte dos condenados, e a polêmica inclusão dos chamados “crimes conexos” permitiu que agentes da repressão também fossem beneficiados.

Para o especialista Bruno Konder Comparato, professor da Unifesp, a lei representou um avanço, mas deixou uma contradição grave. “Com a manobra de introduzir o termo crimes conexos, foi feita uma interpretação de que os crimes dos militares, os crimes dos torturadores, seriam anistiados. O que aconteceu foi uma autoanistia. Os torturadores se autoanistiaram, se autoperdoaram. Isso não existe em lugar nenhum”, afirmou.

Atos de 8 de janeiro recolocam a pauta em debate

O debate voltou ao centro da cena política após a derrota de Bolsonaro em 2022 e ganhou corpo com os ataques de 8 de janeiro de 2023, quando as sedes dos Três Poderes foram invadidas. Desde então, aliados do ex-presidente iniciaram articulações para transformar em lei uma anistia que pudesse blindá-lo.

Quando o STF condenou Bolsonaro a 27 anos e 3 meses de prisão por tentativa de golpe de Estado, o movimento se intensificou. Cada voto lido pelo tribunal ecoava nos corredores da Câmara como argumento a mais para apressar a votação.

Câmara aprova urgência para projeto de anistia

O ápice veio na noite de 17 de setembro. Em uma sessão marcada por embates, a Câmara aprovou por 311 votos a favor e 163 contrários o regime de urgência para o projeto de anistia. A decisão acelera a tramitação e permite levar o texto diretamente ao plenário.

O projeto usado como base foi o PL 2162 de 2023, apresentado por Marcelo Crivella, que prevê perdão para crimes de motivação política e eleitoral cometidos desde outubro de 2022. O presidente da Câmara, Hugo Motta, já definiu o relator: Paulinho da Força (Solidariedade-SP), escolhido por sua boa relação com ministros do Supremo, numa tentativa de evitar que a proposta seja barrada na Justiça. Segundo ele, a ideia de uma “anistia ampla” ficou para trás, e o foco agora será elaborar um texto voltado para a dosimetria das penas, em vez de um perdão irrestrito.

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Divisão da bancada do Ceará na votação

A bancada do Ceará também se dividiu na análise da urgência. Dos 22 deputados federais, 7 votaram a favor, 12 foram contra e 3 estavam ausentes.

Votaram a favor (7):

  •  André Fernandes (PL)
  •  Danilo Forte (União Brasil)
  •  Dayany Bittencourt (União Brasil)
  •  Dr. Jaziel (PL)
  •  Luiz Gastão (PSD)
  •  Matheus Noronha (PL)
  •  AJ Albuquerque (PP)

Votaram contra (12):

  •  André Figueiredo (PDT)
  •  Célio Studart (PSD)
  •  Enfermeira Ana Paula (Podemos)
  •  José Guimarães (PT)
  •  Júnior Mano (PSB)
  •  Leônidas Cristino (PDT)
  •  Luizianne Lins (PT)
  •  Mauro Benevides Filho (PDT)
  •  Nelinho Freitas (MDB)
  •  Robério Monteiro (PDT)
  •  Fernanda Pessoa (União Brasil)
  •  Yury do Paredão (MDB)

Ausentes (3):

  •  Domingos Neto (PSD)
  •  José Airton Félix Cirilo (PT)
  •  Moses Rodrigues (União Brasil)

Dias antes de a urgência ser aprovada, o deputado José Guimarães (PT), líder do Governo na Câmara, já havia alertado para os riscos da proposta. Para ele, a pressão da oposição em pautar a anistia representa um desgaste institucional. "Essa pauta é indigesta para o país e para a democracia", afirmou.

Comparações entre 1979 e 2025

Quase meio século separa a anistia da ditadura militar e o debate atual. Para o especialista Bruno Konder, apesar de carregarem o mesmo nome, os dois momentos não podem ser comparados. “Ao meu ver não há nenhum ponto de semelhança entre a anistia de 1979 e esse movimento que está se criando no Congresso para anistiar Bolsonaro e sua turma”, afirmou.

Ele lembra que a anistia de 1979 surgiu em meio a uma forte mobilização social, que reuniu familiares de presos e desaparecidos, artistas, estudantes e até setores do MDB, com o objetivo de abrir caminho para a redemocratização. “Na ditadura, presos políticos eram torturados e julgados sem defesa. Agora, os envolvidos no 8 de janeiro foram processados dentro da legalidade. O que querem é não cumprir a pena. É de muito mau gosto chamar isso de anistia”, disse.

Na avaliação do especialista, enquanto a lei de 1979 foi resultado de pressão popular, ainda que marcada por contradições como a inclusão dos crimes conexos, a proposta atual nasce de uma articulação política que busca blindar aliados. “A cada vez que golpistas foram anistiados no Brasil, eles retornaram depois com novos ataques às instituições. A anistia de hoje pode abrir caminho para novos episódios semelhantes”, avaliou.

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