Legislativo Judiciário Executivo

Fernandes Neto: 'Os partidos políticos continuam oligárquicos, sem democracia interna'

Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-CE lança livro em que discute a democracia interna de partidos políticos

Escrito por Luana Barros , luana.barros@svm.com.br
Fernandes Neto
Legenda: Especialista em Direito e Processo Eleitoral, Fernandes Neto lança livro em que discute a democracia interna dos partidos brasileiros
Foto: Reprodução/Fernandes Neto

Os partidos políticos são a base do sistema eleitoral brasileiro. Apenas por meio deles, homens e mulheres podem ser candidatos a um cargo, seja no comando de um Poder Executivo como nas casas legislativas. No cenário político brasileiro, no entanto, esse fato também carrega uma contradição. "É contraditório, paradoxal dizer que aquele caminho escolhido constitucionalmente para efetivar a democracia social não tem democracia interna", defende o especialista em Direito e Processo Eleitoral, Fernandes Neto

Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil — Secção Ceará (OAB-CE), ele tece críticas aos partidos políticos brasileiros e reforça que são poucos os que têm democracia interna. Esse é o tema central do livro "Democracia Intrapartidária: Autonomia e limites dos partidos políticos no Brasil", que será lançado nesta quarta-feira (3), em Fortaleza, por Fernandes Neto.

"Apesar de números grandes de filiados, a grande massa dos filiados não tem uma identificação pessoal com partido. E mais: eles pouco participam das deliberações importantes dos partidos políticos", argumenta. 

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Uma ausência que se agrava no cenário em que partidos políticos recebem recursos públicos do Fundo Eleitoral e do Fundo Partidário, por exemplo, e em que o controle sobre esse dinheiro e sobre as principais decisões dos partidos ainda são tomadas por poucas pessoas, acrescenta. 

"Nós temos um sistema oligárquico ainda", afirma. "A grande maioria dos partidos políticos no Brasil, hoje, são dominados por coligações dominantes ou por um líder. No Brasil, você pode identificar, por exemplo, quem é o dono do ‘partido tal’", exemplifica. 

Em entrevista ao Diário do Nordeste, Fernandes Neto discute os principais temas da obra — que aborda assuntos de grande impacto para o sistema político brasileiro. 

Eu quero começar perguntando sobre o termo que nomeia o livro, “Democracia Intrapartidária”. O que isso significa?  

Democracia intrapartidária significa democracia interna nos partidos políticos. Ou seja, os partidos políticos usarem a democracia nas suas deliberações, nas suas manifestações internas, dando oportunidade aos filiados de participar de todos os processos que importam nos partidos políticos. Desde as eleições, o destino dos financiamentos públicos, do dinheiro público recebido pelos partidos, a seleção das candidaturas e, principalmente, a formação dos órgãos diretivos de partidos políticos. 

Democracia Intrapartidária
Legenda: Livro será lançado nesta quarta-feira (3) em Fortaleza
Foto: Divulgação

E qual a importância disso para todo o sistema político brasileiro? 

Se você analisar todo o sistema, os partidos políticos são o caminho escolhido constitucionalmente — porque só se pode postular candidaturas por filiação partidária, mediante partidos políticos — para que se estabeleça a democracia no Brasil ou em qualquer em qualquer democracia, em qualquer país, qualquer nação democrática. É contraditório, paradoxal dizer que aquele caminho escolhido constitucionalmente para efetivar a democracia social não tem democracia interna. 

Uma constatação que nós temos é que poucos partidos no Brasil têm uma democracia interna. (...) Apesar de números grandes de filiados, a grande massa dos filiados não tem uma identificação pessoal com partido, sequer uma identificação com os partidos. E mais: eles pouco participam das deliberações importantes dos partidos políticos.  

Assim, nós temos um sistema oligárquico ainda que deve, que provém, desde a Primeira República, que sempre acompanhou, os partidos, (desde) a República dos Coroneis, onde líderes políticos tomam o partido como seu — líderes ou colisões dominantes.  Essa realidade é um pouco do patrimonialismo brasileiro que nós temos, da história do Brasil, onde uma entidade, que tem natureza pública, apesar de privada, tem natureza e funções públicas, é dominada por oligarquias.  

Há, de fato, partidos que não têm essa mesma estrutura, que são mais abertos. Eu cito o caso do PT, porque o PT foi criado em outro momento e mediante uma estrutura sindical, uma estrutura já de deliberações. Então, é um partido organizado. O Rede também.  

Mas a grande maioria dos partidos políticos no Brasil, hoje, são dominados por coligações dominantes ou por um líder. No Brasil, você pode identificar, por exemplo, quem é o 'dono do partido tal’. (...) E essas pessoas são longínquas nessa função. Os partidos são utilizados como praticamente entidades privadas. (...) O nosso grande problema, na sociedade partidária brasileira, dos partidos políticos brasileiros, é que esses partidos não têm raízes sociais. Eles vivem como instituição, mas eles não têm base social.  

Por exemplo, ele (o partido) vive num município do estado do Ceará, mas ele não tem reuniões, não tem discussão, debate sobre ideias, sobre temas, sobre a sua ideologia. E eles têm pouco contacto com a própria Executiva Nacional do partido. Os partidos não são ideológicos, eles são partidos que se mudam e se transmitem a partir dos interesses políticos locais ou dos chefes políticos. Quando um líder político muda de partido, a maioria daqueles que o seguem vão mudar de partido também por isso. Por isso, a infidelidade partidária é tão grande no Brasil. 

Tivemos, na última década, marcos importantes na política brasileira, como as manifestações de junho de 2013, que ressaltaram um sentimento antipolítica e rechaçaram os partidos; e o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Como esses e outros eventos modificaram a organização dos partidos? 

Nós tivemos uma abolição política no Brasil a contar dos movimentos de junho de 2013, que, de fato, significou muita coisa, mas não significou nada ao mesmo tempo. Não tem uma cara específica, algo que foi criado em razão dos movimentos de junho. Mas, antes de tudo, eles demonstraram uma insatisfação popular muito grande, gerando inclusive consequências patrimoniais, violência da polícia.  

Isso despertou, assim como no passado, uma preocupação muito grande da política tradicional em se fortalecer. Criou novos grupos políticos, movimentos suprapartidários, que se dizem suprapartidários.  Então esse movimento (Junho de 2013), eu considero que ele cria um incômodo na política tradicional, na política dos partidos políticos. 

Depois desse movimento, houve a eleição da Dilma em 2014, com o Aécio (Neves, do PSDB), que foi a eleição disputada e que o Aécio, inclusive, reclamou, representou contra o resultado das urnas, colocou em xeque a questão do estado das urnas. Depois, tivemos a ruptura da coalizão existente entre o PMDB e o PT — que levou Dilma ao segundo mandato — e o impeachment da Dilma. E teve a questão da prisão do Lula também. Então, são elementos, são crises (que formam) a tempestade perfeita, como diz o Oscar Vilela. Depois a eleição do Bolsonaro, então a derrota do Bolsonaro, a reclamação do resultado das urnas (...) e após. O livro vai até a questão do 8 de janeiro 2023, da insatisfação e da tentativa de golpe que falhou em decorrência de uma democracia militante que nós temos no Brasil.  

Mais do que analisar as características dos nossos partidos no passado, eu, principalmente, ambiento o livro em todas as modificações legislativas e eleitorais, na própria estrutura das emendas impositivas, individuais e de bancada, emendas de comissão, que alteraram a relação entre o Executivo e o Legislativo e o Judiciário. E que, de certa forma, começou como uma autodefesa dos partidos, uma preservação de suas eleições, mas criou uma estrutura partidária, hoje, muito centralizada. 

Os partidos estão diminuindo, em razão da cláusula de barreira, mas o poder dos partidos, (não). E eles têm recebido muito poder, tanto de verbas públicas como também de estrutura, mas os partidos políticos continuam oligárquicos, ou seja, continuam sem democracia interna. Então, nós estamos criando um partido super ricos, com superestruturas, mas que essas estruturas não são democráticas, não têm uma vida democrática, não existe uma vida partidária com participação de todos aqueles seus filiados. Os filiados são praticamente números estatísticos, nada deliberam, nada fazem. 

Então, a minha inquietação é exatamente nessa parte, nesse fluxo da criação de partidos e mandatários tão poderosos. Hoje com verba muito grande, (de Poder) Executivo praticamente, de cada deputado federal, que tem quase R$ 40 milhões por ano. Senador, R$ 50 mi, R$ 59 mi. Ao todo, são R$ 50 bilhões destinado às emendas parlamentares, o que alterou essa relação de poder entre o Legislativo e o Executivo, aquilo que chamava de coalizão partidária, mas, ao mesmo tempo, engessou as direções dos partidos e não abriu chance para que todos participem desses grandes partidos que são hoje, sem exceção. Não tem exceção com relação à formação, não, todos os partidos votaram, com exceção do Psol, votaram para a mudança dessas regras.  

Enquanto se falava de fake news, de golpe de estado, de inteligência artificial, de outras coisas, houve uma alteração contínua das regras do sistema político e eleitoral no Brasil, que preservaram tanto os mandatários que têm mandato como também os grandes partidos políticos. Grandes partidos políticos se preservaram no poder, tornando quase impossível as minorias hoje se apresentarem, porque quem vai disputar? 

O princípio da igualdade de chances foi realmente maculado ao meu sentir, porque quem é que vai disputar contra deputados federais que tenham base política tão grande, dinheiro para manter suas bases políticas, contra partidos políticos que têm muito dinheiro para as suas campanhas? Esse sistema protegeu os partidos políticos, no Senado e na Câmara dos Deputados e, principalmente, criou praticamente uma eleição paralela.  

A eleição presidencial é descolada politicamente da eleição do Congresso Nacional. Você vê que muitos deputados estaduais e muitos deputados federais não ligam, não trabalham para a eleição presidencial. Eles preferem, inclusive, se calar com relação a isso porque pode atrapalhar seus votos. A preocupação desses partidos é criar uma boa base de representação para que tenha acesso a esses fundos públicos, tanto partidários como de parlamentares. 

Você disse que houve mudanças na legislação que deixaram esses partidos mais fortes. Que mudanças você elencaria como as mais importantes? 

A criação e aumento dos fundos públicos. Foi criado o FEFC (Fundo Especial de Financiamento de Campanha) durante esse período, o Fundo de Campanha, que hoje está R$ 5 bilhões e em cada eleição esse número aumenta. Nós não tínhamos esse fundo político e esse fundo é muito mal distribuído, com somente 2% sendo distribuído para todos os partidos que participam do pleito. 98% são distribuídos para os grandes partidos, a maior parte para aqueles partidos que têm maiores bancadas. Então, você vai formando com isso, com dinheiro público, instituições muito ricas. Se você ver a lista de quanto é o fundo partidário para cada partido, você vê partidos muito ricos e partidos quase minguando, muito pobres ou que não recebem praticamente nada. 

E, por outro lado, houve uma série de alterações visando impossibilitar que os partidos pequenos tenham acesso também às cadeiras no parlamento. Por exemplo, a estipulação de percentual mínimo de 10% para um candidato se eleger — são regras majoritárias incorporadas dentro do sistema proporcional. Agora, a  vinculação de 80-20, ou seja, só participarão da sobra os partidos que tiverem 80% do coeficiente eleitoral, mas exigindo que seus candidatos tenham 20% (do coeficiente). Todas essas regras restringem a participação das minorias e privilegiam os maiores partidos, que têm maior representação política e mais votos.  

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Mas uma coisa importante também é que, enquanto tudo isso ocorria legislativamente, havia uma disputa muito grande jurídica a respeito da democracia interna nos partidos, feita com o TSE e com o Supremo. Por exemplo, o TSE exigia que as comissões provisórias — que são comissões criadas somente para criar um diretório definitivo dos partidos nos municípios, nos estados —, que tinham vivência prolongada, o que levava a dizer que apenas 5, 6 ou 7 pessoas tinham poder de decidir tudo dos partidos políticos do interior. E uma lei foi criada pelo Congresso que estabeleceu 8 anos para a existência das comissões provisórias, enquanto o TSE estabeleceu 6 meses. E aí essa lei foi julgada, em 2022, inconstitucional. 

Há uma série de elementos de uma disputa institucional entre Poder Legislativo e Poder Judiciário, especialmente no TSE e no Supremo Tribunal Federal, de regras que que possibilita ainda mais autonomia aos partidos políticos nas suas deliberações, enquanto a própria Constituição exige que essas regras estatutárias, que também são aprovadas pelo Tribunal Superior Eleitoral, sejam direcionadas ao regime democrático e aos direitos fundamentais da pessoa humana. 

Todas essas regras visam garantir mais autonomia para os partidos, inclusive de impor suas próprias regras, seus próprios prazos, sua própria forma de trabalhar, mas que essas regras são oligarcas, essas regras impedem que haja uma democracia nos partidos, que haja uma participação de todos, plena, nos partidos. 

É um cenário, então, em que a autonomia partidária, que é importante, acaba servindo para criar menos democracia nos partidos? 

Exatamente. A autonomia não pode ser vista como um fim, ela tem que ser vista como um meio para se atingir o regime democrático. A democracia que não é só eleitoral, a democracia que é comportamental e participativa. A democracia não é mais só a eleição, são os direitos das minorias, são os direitos fundamentais da pessoa humana, o direito de participação. Partido político, antes de tudo, é uma associação de pessoas buscando um ideal comum. E como é que eu analiso uma associação onde os associados não têm vez nem voz, sequer são consultados? 

É nesse sentido que eu fundamento a minha pesquisa na análise contemporânea da política brasileira, para demonstrar esse cenário de centralização do poder e de criação de super partidos, partidos que são super incrementados com verbas públicas e com o poder eleitoral hoje cada vez maior, de influenciar na sociedade, mas com poder interno cada vez mais centralizado em pessoas, líderes, donos de partidos ou então de colisões dominantes. 

Fernandes Neto
Legenda: Fernandes Neto discute os problemas na democracia intrapartidária a partir da história política recente brasileira, indo das manifestações de Junho de 2013 a tentativa de golpe no dia 8 de janeiro de 2023
Foto: Reprodução/Instagram Fernandes Neto

Qual caminho é possível apontar para modificar esse cenário e para que se possa ter mais democracia partidária?  

É um caminho de muita resistência, antes de tudo. Mas é um caminho que tem que se apegar no realismo brasileiro, na realidade da política brasileira. Fórmulas importadas às vezes não servem muito, porque nós temos que nos basear no realismo da política, do que ocorreu no Brasil. O que eu proponho nesse livro são três modificações básicas que os partidos devem atender. 

Primeiro, a participação de todos os filiados nas deliberações acerca das decisões dos órgãos diretivos, (que devem ter) um mandato com renovação periódica. Segundo, eu proponho que todos os filiados de cada unidade partidária, ou seja, dos municipais e dos estaduais, todos deliberem acerca da escolha das candidaturas, quer majoritária quer proporcional. Ou seja, que se faça realmente a coletividade. E, por fim, eu defendo que não só a Executiva nacional do partido delibere acerca dos fundos públicos de campanha utilizada, mas que as diretrizes dessa utilização sejam fixadas em eleição por todos os representantes do País. Por todos os órgãos, quer municipais, quer estaduais e federais. O primeiro caminho, o caminho inicial é esse que eu proponho. 

Ele pode ser feito por várias formas. Ou alteração dos próprios estatutos de partido, que não consigo enxergar nesse primeiro momento (ser possível) ou alterações legislativas, que também em razão de como o Congresso está, ele também não faria, ou mediante uma interpretação constitucional das regras pelo Supremo Tribunal Federal e pelo TSE. Essa que tem sido a mais plausível. Ou seja, a própria intervenção demonstrando... Como o TSE tem o poder de, condicionalmente, analisar as regras estatutárias (dos partidos) e aprová-las, tem uma maior incursão do TSE nas regras, dentro dos estatutos partidários, que são antidemocráticas, exigindo essa maior participação. 

E, por fim, inclusive determinando, julgando inconstitucionais as regras, que o Congresso tem criado normalmente para responder essas intervenções jurídicas. 

Lançamento do livro "Democracia Intrapartidária: Autonomia e limites dos partidos políticos no Brasil"

Quando: 3 de julho, às 18 horas
Onde: Auditório da OAB-CE (rua Valdetário Monteiro Chave, 01) 
Gratuito.

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