Como as prefeituras no Ceará têm se mobilizado para acabar com 300 lixões a céu aberto até 2024
Com foco em consórcios, ações de reciclagem e fiscalização, municípios tentam não só extinguir esses espaços irregulares de descarte como também efetivar as políticas de gestão de resíduos sólidos
Enquanto uma parte considerável dos brasileiros venda os olhos para o que é feito das milhares de toneladas de lixo produzidas diariamente, há quem aproveite essa cegueira coletiva para descumprir pactos internacionais para a melhoria da gestão dos resíduos, fugir das obrigações de gestão pública e até lucrar indevidamente com o lixo, que, embora não seja visto assim, tem um valor econômico altíssimo.
No Ceará, onde estão ativos mais de 300 lixões a céu aberto, a gestão correta dos resíduos sólidos é desafio para todos os 184 municípios, ainda que as prefeituras tenham embasamento técnico para cumprir essa responsabilidade — a Secretaria do Meio Ambiente (Sema) garante que todas têm planos de gestão de resíduos e de coleta seletiva múltipla.
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Uma estratégia que parece estar dando certo, segundo a Sema e o próprio Ministério Público do Ceará (MPCE), que fiscaliza a ação das prefeituras, é a formação de consórcios para a gestão compartilhada de aterros sanitários e a consequente desativação dos lixões.
Mas, sozinhos, os consórcios não bastam. Eles servem, fundamentalmente, para que os municípios consigam adquirir tecnologias de tratamento do lixo e custear aterros sanitários, que são os espaços mais adequados para a destinação final de rejeitos — o que não se pode mais recuperar e reaproveitar.
Todo o resto, como a coleta seletiva, o estímulo à reciclagem e ao reaproveitamento de orgânicos, a inclusão social e econômica de catadores, a recuperação das áreas degradadas pelos lixões e o aumento de equipamentos para entrega voluntária de resíduos, por exemplo, é dever de cada gestão pública municipal junto à iniciativa privada e à sociedade civil.
Também é dever coletivo fiscalizar o emprego do dinheiro público na gestão do lixo. O MPCE já descobriu, por exemplo, que, em Juazeiro do Norte e Caucaia, houve uma série de irregularidades na terceirização de serviços públicos de limpeza urbana que provocaram sérios danos ambientais às cidades e, também, sociais e financeiros à população.
Nesta segunda parte do especial do Diário do Nordeste sobre gestão de resíduos sólidos, vamos detalhar essas ações do MPCE e explicar como o ministério tem acompanhado os municípios para coibir práticas irregulares, garantir a efetividade dos consórcios e conseguir a extinção dos lixões.
Também vamos contar as propostas das atuais gestões de Juazeiro do Norte e Caucaia para a gestão do lixo, apresentar a experiência do consórcio de Sobral e traçar um panorama dos avanços do Estado.
Lixões e consórcios
O Brasil tem a meta ousada de extinguir todos os lixões ativos no País até 2024, daqui a dois anos. Isso foi definido no Novo Marco do Saneamento Básico, sancionado em 2020.
Contudo, segundo último levantamento da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), 40% do lixo que produzimos ainda são descartados irregularmente nesses locais, provocando prejuízos ambientais e aos cofres públicos.
Só no Ceará, existem, atualmente, 300 lixões ativos, segundo a Sema. Esse número é o mesmo há alguns anos, mas a pasta garante que 15 municípios já conseguiram desativar ou estão em vias de desativar as estruturas irregulares que ainda mantêm. Veja abaixo quais são.
No Estado, isso tem sido possibilitado, principalmente, pela política de consórcios públicos, que são conjuntos de municípios que somam seus recursos financeiros para montar estratégias integradas de destinação final dos resíduos sólidos.
Estudos feitos pelo Governo entre 2005 e 2006 apontaram a necessidade de o Ceará ter 30 desses consórcios para conseguir resolver o problema dos lixões a longo prazo. Atualmente, 21 desses grupos estão formados e ativos, envolvendo 172 municípios, e 14 ainda não participam de nenhum. Veja o mapa.
Para a engenheira Maria Dias, secretária de Planejamento e Gestão Interna da Sema, o foco do Governo na gestão dos resíduos é fortalecer a coleta seletiva “por meio de uma gestão compartilhada, garantindo a inclusão dos catadores e a participação efetiva da sociedade”.
As prioridades são estimular a política de consórcios públicos, repassando aos municípios, inclusive, parte do ICMS ambiental, e elaborar materiais técnicos individualizados como os Planos de Recuperação de Áreas Degradadas (PRADs) pelos lixões — já foram entregues 81 desses documentos até hoje.
Além disso, é estimulado o trabalho da rede de catadores com um reforço financeiro à renda decorrente da prestação de serviços ambientais nas cidades, o chamado Auxílio ou Bolsa Catador.
No que diz respeito aos consórcios, uma força-tarefa foi montada na Assembleia Legislativa do Ceará (AL-CE), no último mês de dezembro, para impulsionar iniciativas que ponham fim aos lixões até 2024. A Frente Parlamentar pelos Consórcios Públicos de Manejo de Resíduos Sólidos foi criada pelo deputado estadual Acrísio Sena (PT), um dos mais atuantes nas causas ambientais.
"Será a grande ferramenta legislativa para promover ações e debates em torno da importância da coleta seletiva, da articulação com os catadores e da formação [ambiental] de jovens", projeta Acrísio, presidente da Frente. A ideia, segundo o parlamentar, é integrar iniciativas do Governo do Estado, das prefeituras, das câmaras de vereadores e da Assembleia Legislativa, uma vez que os resíduos sólidos não devem ser vistos de forma isolada ou apenas dentro do debate sobre aterros sanitários.
"O grande desafio no Brasil como um todo ainda é a incompreensão do papel estratégico da coleta seletiva. Hoje, o Brasil recicla, no máximo, 5% do que é produzido", compreende o deputado.
Fiscalização e orientação
Em três anos (2019, 2020 e 2021), o MPCE instaurou 119 procedimentos extrajudiciais civis e 149 procedimentos criminais no que diz respeito à gestão de resíduos sólidos no Ceará. O tema é acompanhado pelo Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente (Caomace).
Os procedimentos civis, em geral, estipulam prazos para que os municípios solucionem problemas específicos apontados pelos promotores de cada comarca. Já os criminais tendem a responsabilizar prefeitos, comumente por irregularidades ou ausência de política pública para a destinação final do lixo.
“O ministério busca uma atuação mais resolutiva, que não passe pelo Judiciário. A gente evita ingressar com ações civis públicas porque são demoradas”, diz Jacqueline Faustino, coordenadora do Caomace.
Segundo a promotora de Justiça, os esforços são para tentar acordos com as autoridades municipais. “É evidente que, às vezes, chega um determinado momento em que isso não é mais possível. E aí o promotor (de cada cidade) entra com essas ações”, explica.
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Faustino comenta ainda que as principais ações fiscalizadas são as chamadas “pré-aterro”, ou seja, que antecedem a destinação do lixo ao aterro sanitário ou mesmo a implantação da estrutura.
“Há alguns anos, a gente tinha uma preocupação muito voltada ao aterro e esquecia das ações que antecedem a implantação dele. Esses acordos visam [também] a implantação da política de gestão dos resíduos sólidos como um todo, incluindo a educação ambiental pela não geração de resíduos e a correta separação entre úmidos e secos”, afirma.
Além disso, são observadas as estratégias de fomento à rede de catadores, profissionais que eram praticamente “invisíveis” às prefeituras, e de recuperação e reaproveitamento do lixo.
Dessa forma, os procedimentos que geralmente são instaurados se devem à desvalorização profissional de catadores, à não existência de coleta seletiva múltipla ou de fundo municipal para recebimento de verbas destinadas à política de resíduos ou à não vinculação dos municípios a consórcios públicos de resíduos.
“Quando você tem o consorciamento de vários municípios tentando implantar (aterro sanitário), você tem uma redução de custos. E, com essa redução, é muito mais factível a manutenção a longo prazo dessa política (de gestão de resíduos)”, acredita Faustino.
Numa outra frente de atuação, os promotores de cada município orientam as prefeituras sobre como elaborar e executar seus planos de gestão.
“A gente percebe a vontade deles (prefeitos) de realizar essa política, principalmente aqueles que assumiram as gestões ano passado. Esse é um problema histórico que precisa ser enfrentado por todos, responsabilizando tanto ex-gestores como os atuais, mas fazendo com que os atuais, de fato, se envolvam”, comenta a coordenadora do Caomace.
Irregularidades na limpeza de Caucaia
A Prefeitura de Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza, teve seus serviços de limpeza urbana questionados pelo MPCE na gestão anterior, em 2019, quando foi apurado que a licitação dos serviços era conduzida de maneira irregular, com “cláusulas restritivas à competitividade e projeto básico deficiente”.
No ano passado, o ministério precisou instaurar outro procedimento administrativo para requerer e acompanhar a regularização dos serviços de limpeza na cidade.
Em nota, a atual gestão de Caucaia informou que os antigos serviços eram prestados por meio de aluguel de veículos e equipamentos e contratação de mão de obra temporária. “Foi celebrado com o Ministério Público um Termo de Ajustamento de Conduta [TAC] visando pôr fim às irregularidades. O TAC foi devidamente cumprido, sendo o serviço de limpeza urbana atualmente realizado pela empresa pública Soure Serviços Municipais S/A”.
Ainda de acordo com a prefeitura, Caucaia investe, atualmente, em torno de R$ 4,5 milhões mensais na gestão dos resíduos sólidos e pretende revisar seu plano de gestão. A última atualização foi feita em 2018.
Também foi informado pelo executivo municipal que, no ano passado, o Aterro Sanitário Metropolitano Oeste (Asmoc) — que também recebe os rejeitos da Capital — foi desativado por chegar ao limite. Ele funcionava há 30 anos, desde 1991. Em seu lugar, foi iniciada a operação do Aterro Sanitário Metropolitano, que servirá de expansão ao Asmoc pelos próximos 16 anos e oito meses.
Transformações em Juazeiro
Em 2020, em Juazeiro do Norte, o MPCE constatou que a prefeitura alugou diretamente, ou seja, sem licitação, um terreno do irmão do então prefeito do município, Arnon Bezerra (PDT), para depositar todo o lixo coletado na cidade. Além disso, de acordo com o órgão, esse aluguel teria sido superfaturado, com valores em torno de quase R$ 2 milhões.
Nesse mesmo período, a 7ª Promotoria de Justiça de Defesa do Patrimônio Público da Comarca de Juazeiro também determinou o bloqueio de bens do então prefeito e da empresa MXM Serviços e Locações Ltda, que era responsável pela coleta do lixo no município, devido à ocorrência de fraude na licitação que contratou a empresa.
“A investigação do MPCE apontou o superfaturamento do preço na contratação, uma vez que a empresa MXM foi contratada pela quantia de R$ 43.269.435,36 pelo período de 12 meses, enquanto a empresa Esquadra Construções EIRELI – ME havia prestado o serviço nos seis meses anteriores pelo valor de R$ 11.231.869,74”, informou, em nota, o órgão.
Por mês, de acordo com o ministério, Juazeiro gastava R$ 3,6 milhões só para recolher o lixo.
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Segundo Eraldo Oliveira, superintendente da Autarquia Municipal de Meio Ambiente de Juazeiro do Norte (Amaju), a coleta dos resíduos sólidos da cidade, atualmente, custa em torno de R$ 2,2 milhões. “Melhoramos o serviço baixando para quase a metade [o custo dele]”, afirmou.
A nova gestão também pretende desativar o lixão da cidade entrando para o Consórcio Municipal para Aterro de Resíduos Sólidos (Comares) - Unidade Crato. Até então, apesar de produzir quase 50% dos resíduos de Cariri, Juazeiro é o único município da região que ainda não faz parte do grupo.
“Queremos resolver, puxar a frente”, diz Eraldo, acrescentando que o terreno para a construção do aterro do consórcio deve ser cedido pelo município e que já estão em andamento estratégias para recuperar a área onde, hoje, funciona o lixão. “O plano é pegar aquela área, recuperar e devolver como equipamento público para o Governo”, projeta.
A entrada para o consórcio, porém, depende de aprovação da Câmara Municipal. Houve uma audiência pública na Casa ano passado para apresentação do projeto da prefeitura, mas a matéria segue em tramitação nas comissões internas.
O atual presidente da Casa, William Bazílio (PMN), o Bilinha, informou que os parlamentares solicitaram mais uma audiência pública neste semestre para tirar dúvidas sobre o consórcio. “É de suma importância para que eles possam entender e votar de acordo com sua consciência”, disse o vereador, consciente da urgência e da relevância da matéria.
Enquanto o consórcio não é resolvido, Juazeiro tem feito o que cabe ao município na estruturação de políticas pré-aterro como a requalificação do lixão, a implantação da coleta seletiva múltipla e a busca por Parcerias Público-Privadas (PPP) para transformar resíduos orgânicos em combustíveis e energia elétrica. Nesse último caso, “o município entraria apenas com a concessão durante 30 anos desse resíduo” e teria um percentual nos lucros, segundo o superintendente.
Além disso, até o próximo ano, a gestão quer licitar ecopontos para entrega voluntária de resíduos, diminuindo pontos históricos de lixo a céu aberto; estimular a separação do lixo domiciliar entre orgânicos e recicláveis, engajando a sociedade; atrair a indústria da reciclagem; organizar a rede de catadores em centros de triagem e envolver a comunidade escolar da rede municipal na coleta seletiva.
No que diz respeito somente aos catadores, Eraldo disse ainda que foi feita uma busca ativa pela prefeitura para organizar os profissionais e proporcionar a eles espaços estruturados de trabalho. “Estamos discutindo a forma de estruturar [quatro terrenos] terrenos, colocar galpões. A gente quer equipar essas entidades, porque é interesse nosso ter a coleta seletiva com os catadores”.
Uma das propostas, inclusive, é de fazer a população da cidade colocar para fora de casa os resíduos recicláveis e orgânicos em dias distintos para otimizar o trabalho da coleta seletiva.
“A gente só quer aterrar o que for rejeito. A gente vai lutar de todas as formas para, dentro do ciclo de vida dos produtos, chegar a uma condição mínima. Na Europa, está se falando que, daqui a 20 anos, não terá mais aterro sanitário. No Brasil, ainda estamos falando em desativar lixões ou adiar prazo para acabar com os lixões. Veja o tamanho do atraso”, reflete Eraldo.
A experiência do consórcio de Sobral
Quando os municípios se engajam para resolver coletivamente os problemas dos resíduos sólidos, os benefícios chegam para todos eles. Um dos casos mais bem-sucedidos no Ceará, de acordo com a promotora de Justiça Jacqueline Faustino, é o do Consórcio de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos da Região Metropolitana de Sobral (CGIRS-RMS).
“Esse foi um dos primeiros Termos de Ajustamento de Conduta [TAC] celebrados pelo MPCE e a gente tem lá municípios já bastante avançados”, garante a promotora.
O consórcio tem a adesão de 18 cidades e é comandado, atualmente, pelo prefeito de Sobral, Ivo Gomes (PDT). Um corpo técnico formado por engenheiro ambiental, engenheiro civil, tecnólogos e operadores de máquinas pesadas, contratado pelos prefeitos, é responsável por garantir que os resíduos sólidos coletados tenham a destinação adequada.
Além disso, o CGIRS-RMS conta com seis Estações de Transbordo de Resíduos (ETRs) distribuídas nos municípios de Forquilha, Pacujá, Massapê, Cariré e Coreaú — uma na sede e outra no distrito de Ubaúna. Os equipamentos custaram R$ 41 milhões e foram financiados pelo Tesouro Nacional e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
Especificamente em Sobral, a prefeitura executa os próprios serviços de limpeza urbana, como varrição, roço, limpeza de vias e coleta domiciliar. Para isso, conta com 11 caminhões compactadores e quatro pick-ups Saveiro, que também fazem a coleta programada de móveis e de outros produtos “sem serventia” em casa e recolhem o lixo deixado em caçambas.
As coletas são entregues à Central de Tratamento de Resíduos, que pesa os materiais e faz as devidas destinações para que somente vá para o aterro sanitário o que for rejeito.
“A Central é uma contribuição importantíssima para a erradicação de lixões, por possuir estrutura adequada para o tratamento dos resíduos”, disse, em nota, a Secretaria de Conservação e Serviços Públicos (SESEP).
Sobral tem também tem três Centrais de Reciclagem, construídas pelo Governo do Estado, que servem de ponto de entrega voluntária de materiais recicláveis e galpão de triagem para os catadores associados. Só duas estão ativas no momento porque uma está em reforma.
Além disso, o município tem tentado dar a destinação correta pelo menos aos resíduos orgânicos coletados no Mercado Público os encaminhando para o Pátio Municipal de Compostagem para transformar em adubo. Depois de tratado, o material vai para o Horto Municipal e é utilizado na produção de mudas que são doadas à população.