Legislativo Judiciário Executivo

35 anos do ECA: ‘Tudo é urgente, mas a Constituição só traz criança e adolescente como prioridade absoluta'

O PontoPoder entrevista a defensora pública Julliana Andrade, titular da Defensoria da Infância, sobre o sistema de proteção à criança e o adolescente

Escrito por
Luana Barros luana.barros@svm.com.br
Julliana Andrade, defensora pública e titular da Defensoria da Infância
Legenda: A defensora pública Julliana Andrade fala sobre a rede de proteção a criança e ao adolescente e os desafios para implementar o ECA
Foto: Thiago Gadelha

"Uma das leis mais inovadoras na proteção dos direitos da criança e do adolescente": é dessa forma que a defensora pública Julliana Andrade, titular da Defensoria da Infância no Ceará, define o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) — legislação que completa 35 anos em julho de 2025. 

Contudo, a defensora pública afirma que, mesmo três décadas depois da aprovação, ainda existem inúmeros desafios para a implementação. Alguns, são causados pelas mudanças na vida em sociedade, como o impacto de novas tecnologias sobre a infância e a adolescência; outros são problemas antigos. 

"A gente fala ainda da necessidade de implementação do ECA com relação a direitos básicos, como a saúde, a educação, o lazer e a uma proteção mais ampla desse público mais vulnerável que são crianças e adolescentes", diz.

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Um dos caminhos para solucionar esses desafios é "ter muita vontade política e ter muita consciência da prioridade absoluta (da criança e do adolescente)". E nisso, o Poder Público tem uma grande responsabilidade. 

A defensora pública reforça que é necessário que o Poder Público — seja Executivo, Legislativo ou Judiciário — pare de ver a criança e o adolescente "como futuro" e passe a vê-los como uma "prioridade absoluta do presente". 

"Tudo é importante, tudo é urgente, mas a Constituição só traz criança e adolescente como 'prioridade absoluta'. Então, talvez falte ao Poder Público reconhecer essa condição".
Julliana Andrade
Defensora Pública titular da Defensoria da Infância

Julliana se refere ao artigo 227 da Carta Magna que diz: "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". O termo "prioridade absoluta" só foi colocado nesse trecho.

Ao PontoPoder, ela falou sobre os desafios enfrentados para a implementação do ECA depois de 35 anos, dos avanços e falhas do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente e da atuação da Defensoria Pública na proteção à Infância e Adolescência. 

Veja a entrevista completa:

O Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, completa 35 anos em 2025, vem para regulamentar uma garantia constitucional e é um importante avanço político na proteção à infância e adolescência. Do ponto de vista da legislação, o ECA continua acompanhando as necessidades e desafios da proteção a essa população?

O ECA é uma das leis mais inovadoras nessa questão de proteção dos direitos da criança e do adolescente. Uma lei que tem como raiz documentos internacionais, legislações normativas internacionais e que vem também de grandes mobilizações sociais. Entretanto, é uma das leis mais modificadas até hoje, completa 35 anos e é como se nunca estivesse, nunca fosse devidamente suficiente para o que ela vem propor. É incrível como, ainda hoje, depois de 35 anos do ECA, a gente ainda esteja falando de desafios para sua implementação.

Sempre vamos estar diante de desafios, como atualmente a questão das novas tecnologias, mas a questão aqui é que a gente não fala nem em novos desafios, a gente fala de desafios que sempre estiveram aí, a gente fala ainda necessidade de implementação do ECA com relação a direitos básicos, como a saúde, a educação, o lazer e a uma proteção mais ampla desse público mais vulnerável que são crianças e adolescentes. 

Então, essas mudanças não foram para suprir novos desafios, foram ainda para os desafios que existiam na época da criação do ECA?

Essas modificações vêm diante de novos desafios, mas também como uma forma de contemplar antigos desafios. Como, por exemplo, a Lei de Adoção, que foi uma lei muito importante, que veio para complementar o Estatuto da Criança e do Adolescente. Essa lei trouxe questões a partir de práticas que já existiam, como a adoção intuitu personae — como essa adoção em que se pegava a criança, alguém entregava diretamente a criança e ali começava o processo de adoção e a família adotava uma criança. 

O ECA sempre falou no Cadastro Nacional de Adoção que se deveria obedecer para fazer um processo de adoção, e era como se não existisse. Veio uma lei para implementar e para e para obrigar que seja observado o Cadastro Nacional de Adoção. É uma exemplificação.

(A mudança no ECA) é a partir de novos desafios, porque as pessoas começam a ver a necessidade de observar a lei, mas (também) a partir de questões ainda muito básicas... Essas questões básicas se misturam com novos desafios que estão chegando e acaba que não se chega a nenhum ponto, (...) acaba não sendo efetivo.

Por exemplo, a gente está nos 35 anos do ECA. Surgem novos desafios, de uma maneira geral, para todo o mundo jurídico, como, por exemplo, a chegada das novas tecnologias e que implica muito crianças e adolescentes nesse entorno digital. São novos desafios que estão chegando para todos. 

Entretanto, o ECA, mesmo com seus 35 anos, ainda tem desafios antigos para implementar, ainda apresenta uma deficiência com questões que não foram superadas ainda, o que torna mais difícil a sua implementação. 

Essa é uma concepção minha que já trabalho nessa área há mais de 10 anos. O que eu vejo dos desafios da implementação nesses 35 anos é que, apesar da gente se deparar com novas situações, ainda temos situações antigas para superar.

Qual a sua avaliação sobre a atuação do Poder Público, principalmente o Executivo e o Legislativo, na evolução dessas políticas públicas voltadas para a infância e a adolescência?

O Poder Público teria que ver efetivamente (a criança e o adolescente) como uma prioridade absoluta. 

Enquanto o Poder Público, seja em qualquer âmbito Executivo, Legislativo, Judiciário, não reconhecer essa necessidade de uma prioridade absoluta e pensar só em criança e adolescente como o futuro e não como como uma necessidade urgente, como uma prioridade absoluta do presente, sempre vai ser difícil.

A gente que atua nessa área tenta adotar essa questão da prioridade absoluta onde a gente passa e a gente sabe que a resistência é grande. Tudo é importante, tudo é urgente, mas a Constituição só traz criança e adolescente como "prioridade absoluta". Então, talvez falte ao Poder Público reconhecer essa condição.

Defensoria da Infância e Juventude
Legenda: Defensoria da Infância e Juventude pertence ao Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente
Foto: Thiago Gadelha

Qual a função e como é o trabalho da Defensoria Pública dentro dessa rede de proteção a crianças e adolescentes? Quais são as responsabilidades dos defensores? 

A Defensoria Pública tem dois núcleos especializados nessa área. O Núcleo de Proteção, que é o Nadji (Núcleo de Atendimento da Defensoria Pública à Infância e Juventude), atende crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade no âmbito cível, que é o âmbito em que (é tratada) a criança e o adolescente que se encontram em situação de risco. Muitas vezes são crianças e adolescentes que estão em acolhimento institucional ou em algum tipo de situação de vulnerabilidade, sem estar em contexto familiar. Então, o Nadji atua nesse âmbito da proteção de crianças e adolescentes em situação de risco.

Também tem um defensor público que atende na Casa da Criança, que é um complexo dessa rede de proteção. Um equipamento do estado em que nesse mesmo espaço tem Defensoria, um setor da DECECA, da Delegacia de Combate à Exploração de Crianças e Adolescentes, o Ministério Público, o Poder Judiciário. A ideia era juntar todos os órgãos de proteção em um só ambiente. 

A Defensoria tem um defensor que atende as famílias que buscam a delegacia em situação de (criança ou adolescente) vítima de algum tipo de delito. A Defensoria não atua diretamente no caso, atua se tiver alguma demanda cível para ingressar, (...) porque nesse caso é realmente a delegacia que atua, na investigação e responsabilização. (...) O que a Defensoria pode fazer é essa articulação da família com a delegacia com relação ao inquérito tratando de criança e adolescente vítima.

Essas são as atuações da Defensoria Pública no âmbito de crianças e adolescentes na questão da proteção. E também tem o núcleo da Defensoria no âmbito socioeducativo, que é o Nuaja (Núcleo de Atendimento aos Jovens e Adolescentes em Conflito com a Lei), e um defensor público em todas as Varas da Infância e Juventude, realizando a defesa técnica tanto do adolescente em conflito com a lei, que são aqueles adolescentes que praticam ato infracional, como também tem um defensor público na Vara de Proteção da Infância e Juventude.

Então, a gente tem na Defensoria hoje uma atuação bastante ampla nesse âmbito da infância e juventude e vem já há algum tempo tentando desenvolver esse trabalho baseado nas diretrizes constitucionais.

A Defensoria integra esse Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente. Quais as principais qualidades e falhas desse sistema na proteção à infância e adolescência no Ceará?

A gente também não pode negar os avanços. Essa área tem conseguido sensibilizar bastante alguns atores do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e Adolescente. 

Hoje em dia já se consegue falar mais abertamente e reconhecer, porque isso é importante, a deficiência para poder atuar e melhorar aquilo. Então, hoje já se consegue verificar e reconhecer algumas deficiências para que se possa atuar diretamente nisso e tentar melhorar.

Já se avançou muito, mas ainda falta bastante na questão de políticas públicas. Quando se fala no Poder Público, necessita de políticas públicas de proteção, de políticas públicas também para a família, porque crianças que hoje em dia não podem estar em um contexto familiar, é importante também que se trabalhe a família e não só que tire aquela criança daquele ambiente de risco, sem que trabalhe a família para que essa criança possa voltar a sua família de origem, e no caso de não poder voltar, aí sim colocar em uma família substituta. 

Em todos os âmbitos, há espaços em que ainda se deve trabalhar para ter essas políticas públicas efetivadas. Muito já se tem feito, mas ainda precisa fazer. 

E para fazer, além de reconhecer o problema como prioridade absoluta, fazer um trabalho integrado de todos do Sistema de Garantia de Direito, porque um não funciona sem que o outro funcione. Então, se um funciona de um lado e outro não funciona do outro, não se pode fazer. Então, realmente é um trabalho multidisciplinar e um trabalho integrado. 

Julliana Andrade, defensora pública e titular da Defensoria de Infância e Juventude
Legenda: A defensora pública Julliana Andrade fala dos desafios para a implementação do ECA, mas também dos avanços obtidos nestes 35 anos
Foto: Thiago Gadelha

Para onde é necessário avançar quando se trata da garantia de direitos de crianças e adolescentes? O que é mais urgente e deve ser feito de forma prioritária?

Prevenção. Prevenção na questão da educação, prevenção com um ambiente familiar saudável. Avançar apontando para a prevenção. A gente só conseguiria mesmo um resultado apontando para essa direção.

Na educação, para evitar evasões, (é preciso) fazer algo diferente para prender crianças e adolescentes, principalmente adolescentes, que começam a entrar nessa fase, que é uma fase bastante peculiar, que também deve ser olhada de uma maneira mais específica. Então, programas voltados a esse público, que é um público mais vulnerável. Primeiro, trabalhar educação para evitar evasões, para dar condições para essas crianças estarem dentro da escola. 

E depois cuidar da família. Crianças que não podem estar no seio familiar, no ambiente familiar, no contexto familiar: por quê? E aí o Poder Público poder se reunir, trabalhar de forma integrada para garantir o que é que uma família precisa. Hoje em dia, preocupa-se muito em tirar a criança daquele ambiente de risco e não em se dar conta de que a criança tem que voltar para aquele lar ou então ir para outro lar. 

Não estou falando na matéria infracional, porque seria um outro mundo. Estou falando (de ações) antes que se chegue ali naquele ponto, porque a gente sabe que pode ser um caminho que, se não olhar para aquele universo, pode levar a um ponto que se chega a um caminho sem volta.

A gente sabe que muitas vezes começa de um ciclo de violências e privações, que nem sempre é a violência direta, mas de privações ali que precisa trabalhar. É trabalhar aquele começo. E precisa ter muita vontade política e ter muita consciência da prioridade absoluta, que é a questão.

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