À margem do mercado de trabalho: população LGBTQI+ sofre com falta de políticas para empregabilidade
Sem números oficiais no Brasil e no Ceará, população trans enfrenta dificuldades no mercado de trabalho e no empreendedorismo
Manter a cabeça erguida e suportar a ânsia de não ser visto pode ser considerado o lema da população transexual e travesti do Brasil. Além disso, a comunidade LGBTQI+ enfrenta diversas dificuldades para se inserir no mercado formal de trabalho por conta, principalmente, do preconceito.
No Ceará, a taxa de desocupação da população geral, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foi de 8,6% no primeiro trimestre deste ano. O número representa 338 mil pessoas desempregadas.
Os dados não englobam o recorte de orientação sexual e identidade de gênero, o que dificulta mapear os obstáculos da comunidade no mercado formal e construir políticas públicas voltadas para essa população. Em 2024, no entanto, será a primeira vez, em 84 anos de história, que o IBGE divulgará números oficiais acerca da população trans e travesti do país.
Ao realizar o mapeamento dos dados existentes sobre a população trans, verifica-se que todas as estatísticas partem dos valores relacionados à violência sofrida por essas pessoas. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o Brasil permaneceu pelo 15º ano consecutivo como o país que mais assassinou pessoas trans no mundo no ano passado. Em 2023, também houve aumento de 10% de casos de homicídios em relação a 2022.
Conforme o documento elaborado com o perfil das vítimas, 57% das pessoas assassinadas tinham a prostituição como principal fonte de renda. Ao investigar o painel produzido pela Polícia Civil do Estado do Ceará (PCCE), com os registros dos casos de transfobia, somente 3 de todas as profissões respondidas pelas vítimas eram provenientes de curso superior em 2023.
No panorama completo, 37 pessoas não quiseram responder quais suas respectivas profissões e outras 4 disseram que não tinham.
Veja abaixo todas ocupações citadas nos casos:
A Antra afirma que mesmo com a ausência das estatísticas governamentais, a média de vida de pessoas trans é menor do que a média da população geral. A funcionária pública e ativista, Gloss Alves, 40 anos, confidencia que um dos seus maiores temores antes de transicionar, era justamente a sua sobrevivência.
“Eu tinha medo de morrer porque a expectativa de vida de uma travesti é de 35 anos, logo, eu só me reconheci aos 35 + 1 dia”.
De acordo com a Associação, entre os fatores que podem colaborar com o contexto da baixa estimativa de vida estão a falta de incentivo a profissionalização e educação desse público. No Ceará, “Ensino Médio Completo” foi a principal resposta dada quanto ao grau de escolaridade das vítimas dos casos de transfobia no ano passado.
O dossiê “Assassinatos e violências contra Travestis e Transexuais brasileiras em 2023”, assegura ainda que para combater essas violências no cenário nacional é crucial não criminalizar a prostituição ou culpar as trabalhadoras pelas agressões sofridas.
Além disso, apesar do empreendedorismo ser uma saída para o trabalho formal dos transgêneros no país, a implementação de projetos para resgatar a escolarização perdida continua sendo necessária.
Em um levantamento feito pela Agência Pública, das 27 universidades federais do Brasil, apenas duas reservam cotas para pessoas trans, travestis e não binárias, sendo elas, a Universidade Federal da Bahia (UFBA) e a Universidade de Santa Catarina (UFSC). Outras três instituições de ensino público estão em fase de implementação de políticas que devem começar em 2025.
Ao contatar o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), uma das instituições responsáveis pelas práticas educacionais e profissionais no Ceará, o Diário do Nordeste apurou que o órgão não tem nenhuma ação exclusiva para empreendedorismo trans, nem dados sobre este público.
No entanto, o Sebrae informou que participa do Comitê de Empregabilidade e Empreendedorismo LGBTQI+. Ao todo, o grupo é formado por 14 entidades públicas e privadas.
Entidades que participam do Comitê:
- Secretaria da Diversidade (Sediv)
- Secretaria do Trabalho (SET)
- Ministério Público do Trabalho – Ceará (MPT-CE)
- Superintendência Regional do Trabalho no Ceará (SRTB-CE)
- Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPE-CE)
- Instituto de Desenvolvimento do Trabalho (IDT)
- Instituto João Carlos Paes Mendonça (JCPM)
- Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas do Ceará (Sebrae/CE)
- Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial do Ceará (Senai – CE)
- Sistema da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado do Ceará (Sistema Fecomércio – CE) | Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac)
- Rede Trans
- Associação Beneficente Madre Maria Villac (ABEMAVI)
- Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH)
- Conselho Estadual de Combate à Discriminação LGBT (CECD) | Sociedade Civil
Ausência de políticas
Rafaella Alves, 32 anos, estudante e assessora da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social de Apuiarés, debate o cenário atual da empregabilidade de pessoas trans e travestis no Ceará.
“A ausência de políticas públicas voltadas para a empregabilidade de pessoas trans no Estado é alarmante.”
Pioneira no Brasil em ações exclusivas para o público LGBTQI+, a Secretaria de Diversidade do Ceará esclareceu que, o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) não tem o filtro por Orientação Sexual e Identidade de Gênero, ou seja, não há registro oficial sobre quantos transexuais e travestis possuem um emprego formal e nem quais posições essas pessoas ocupam nas empresas.
.O acesso de pessoas trans e travestis em cargos de liderança ainda é escasso em muitas empresas. Apesar dos avanços na conscientização sobre diversidade e inclusão, ainda há barreiras e preconceitos a serem superados”.
Segundo a Secretaria da Diversidade (Sediv), o "Mapeamento Estratégico do Empreendedorismo LGBTQI+ no Ceará", projeto ligado ao Comitê de Empregabilidade, registrou 19 pessoas, de 86 respondentes da ação, como sendo transexual ou travesti, resultando assim em cerca de 16% do público geral que integra o programa.
No estudo “As Travestis e mulheres transexuais no mundo do trabalho”, da Fundação Getulio Vargas (FGV), publicado em 2021, o autor enfatiza que as experiências da comunidade trans nas estatísticas estão limitadas as suas experiências associadas ao contexto de opressão e violência, e raramente relacionadas ao mercado de trabalho e as vivências encorajadoras.
Transicionar custa caro
Com a coragem e a urgência de ser ela mesma, Victoria Prado, 22 anos, iniciou seu processo de transição logo após sair do Ceará para o Rio Grande do Norte. Em uma caminhada que ela define como “difícil”, a graduanda em publicidade e propaganda percebeu a identidade como mulher há cerca de um ano. Por meio das redes sociais, ela encoraja outras pessoas a expressarem suas identidades ao mundo.
“Se você quiser lace, use. Se quiser usar roupas diferentes, use. Porque não é sobre outras pessoas, é sobre você. Comece do jeito que você deseja começar.”
No seu vídeo de maior sucesso no TikTok, Victoria narra as dificuldades do começo da transição, explicando que mesmo sem condições de realizar o processo com os altos custos exigidos, procurou a melhor maneira para manifestar suas mudanças exteriores.
“Eu comecei a me hormonizar com um mês mais ou menos depois da minha transição. Eu sentia que tinha que ter um corpo mais feminino. Só que hormônio é caro. Até hoje existe mês que eu compro aquele hormônio massa e tem mês que eu não dinheiro para hormônio massa nenhum.”
Em conversa com o Diário do Nordeste, Victoria conta que os custos da transição fez com que ela fosse em busca de um emprego. Antes do processo, a influenciadora já tinha sido convocada para algumas vagas, entretanto, a mãe sentia que um trabalho poderia acabar atrapalhando seus estudos.
“A gente sabe que a transição, querendo ou não ela é cara, ela exige também algumas questões que envolve dinheiro.”
Victoria explica que antes da transição de 10 currículos que ela mandava para as empresas, era chamada para todas as entrevistas. Depois da transição, a estudante chegou a enviar 26 currículos, e só foi convocada para duas entrevistas.
Questionada sobre a comparação das entrevistas antes e depois do processo, Victoria esclarece que o tratamento das pessoas, agora, “é totalmente diferente”.
“As perguntas são bem rápidas, parece que a pessoa não quer estar ali com a gente para desenvolver algo. Ela não quer saber o quanto a gente é boa, ela simplesmente ignora qualquer fato das nossas qualificações.”
De volta a sua cidade, em Maranguape, na Região Metropolitana de Fortaleza, a influenciadora revela que agora deseja se preparar para concursos públicos e expressa seu desconforto com a atual situação do mercado de trabalho para transgêneros.
“Não sei se eu consigo encarar o mercado de trabalho de novo.”
O medo prevalece
Foi por meio de jogo de realidade virtual que Adryel Victor, 18 anos, conseguiu se perceber um menino pela primeira vez.
“Tive acesso à internet e comecei a jogar RPG (role play game, um jogo interpretativo narrativo onde caracterizados nossos próprios personagens), lá eu tinha muito interesse em fazer apenas personagens masculinos e na forma em que realmente tratavam os personagens como homem, a partir daí tomei minha própria identidade como uma masculina.”
O jovem fortalezense relata que atualmente a sua principal dificuldade em conseguir um emprego está no currículo, tendo em vista, que ainda não tem documentos retificados.
“Sempre específico meu nome social, mas a insegurança de não aceitarem por esse motivo ou não o respeitarem, prevalece.”
Segundo a Defensoria do Estado do Ceará, ano passado houve um recorde na mudança de nome de pessoas trans e travestis. Enquanto em 2022 tiveram 392 retificações, em 2023 foram 507 registros. O órgão disponibiliza cartilhas com o passo a passo a passo para a retificação dos documentos.
Cartilha 'Certidão alterada! O que fazer agora?'
Ser livre, completa e competente
Inserida já alguns anos no mercado de trabalho como mulher trans, Rafaella Alves, conta que por diversas vezes teve sua identidade de gênero usada como arma para menosprezar seu trabalho.
É desanimador lidar com estereótipos e questionamentos sobre minha capacidade de contribuir para a cultura. A falta de representatividade e de oportunidades acessíveis continua a ser um obstáculo significativo para pessoas trans na produção cultural”
Ao narrar sua história para o Diário do Nordeste, Rafaella diz que seu processo de transição iniciou quando ela tinha 19 anos e foi o que a ajudou a ser “completa e livre”.
“Minha jornada de transição foi marcada por desafios, mas também por autodescoberta e autenticidade. Aos onze anos, reconheci minha orientação afetiva por homens, iniciando minha identificação como pessoa gay. O surgimento de figuras públicas andróginas, como Serginho do BBB e Adam Lambert, inspiraram minha expressão de gênero feminino. Porém, foi somente aos 19 anos que compreendi a necessidade de transicionar para me sentir completa e livre.”
Ativista dos direitos da comunidade LGTQI+ em Massapê, Gloss Alves menciona episódios da sua vida que a marcaram na jornada da sua profissionalização como travesti.
“Eu ingressei na Universidade, onde iniciei, sem concluir, os cursos de Letras e Serviços Social. A primeira porque não deixava eu usar o banheiro feminino e a segunda porque tiver o azar de encontrar uma professora que me falou ‘ninguém contratará uma travesti para ser assistente social.’”
Filha da Dona Maria do Socorro e do Seu Antônio Barbosa, Gloss superou os obstáculos enfrentados e, atualmente, além de ser funcionária efetiva pública, é também palestrantes dos direitos humanos na sua cidade.
“Recentemente eu escutei que eu sou defendo o que não presta! ‘Lá vem aquela que só defende viado, sapatão, deficiente, preto… só o que não presta!’ É um horror! É horrível! Mas não volto para casa para chorar. Eu faço de tudo para que me escutem e para que deixem eu falar.”
Os dados acerca da população transgênero do país, bem como, a orientação sexual dos brasileiros, estão previstos para serem divulgados no último trimestre deste ano. As estatísticas serão fruto da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), que contempla o ano de 2022.
Acompanhe alguns perfis dedicados a comunidade transgênero no Ceará e Brasil:
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* Estagiária sob supervisão de Hugo R. Nascimento