Moreira Campos, que faria 105 anos neste domingo (6), segue influenciando gerações de escritores

Escritor e professor cearense é um vulto incontornável para as letras do Ceará. Léo Prudêncio e Tércia Montenegro comentam relevância da obra que deixou

Escrito por Diego Barbosa , verso@verdesmares.com.br

Poderia ser tudo dito no pretérito. Mas Léo Prudêncio faz questão de conjugar no tempo presente os verbos em que faz menção ao escritor e professor Moreira Campos. "Para mim, ele não morreu, mas continua entre nós, sobrevive na sua escrita e sempre sobreviverá", situa o poeta, natural de São Paulo e com forte apego ao município de Sobral, no Ceará, lar-sede de troca de amizades e intensas experiências com as palavras.

O afeto à terra de cá é motivo maior porque considera um dos maiores autores do País aquele apontado como o pai do conto cearense. O feito, inclusive, ganha novos ares principalmente devido ao cuidadoso e sempre apaixonado tratamento dado às geografias naturais e humanas pelo homenageado desta edição do Verso, de fato vivíssimo na memória nacional.

Falecido em 1994, José Maria Moreira Campos completaria 105 anos de idade neste domingo (6). A longevidade, a escapar da dobra do tempo, é traduzida no vulcânico raio de alcance da produção literária que o mestre desenvolveu, capaz de influenciar gerações até hoje. Tal qual a de Prudêncio, um dos representantes da literatura contemporânea do Estado, e a de tantos outros autores que se esgueiram na incontestável herança deixada por ele.

Ao ser questionado sobre o legado de Moreira para a seara das Letras, o poeta é enfático:

"Ele coloca o Ceará no papel, mostrando a história, a fala do povo, termos folclóricos, o cotidiano, as paisagens cearenses... Toda a cultura local está presente nas obras", diz, evocando "O Puxador de Terço", "Dizem que os cães veem coisas", o conto "Lamas e folhas" e "Momentos" - único livro de poemas do lendário escritor - como algumas das narrativas preferidas.

Além disso, dá relevo a outra particularidade da expertise artística de Campos: o trabalho com o tempo. Na visão de Léo, a passagem temporal é sempre vista no conjunto da obra moreiriana como algo que às vezes ameaça, às vezes ensina. "Para mim, por sinal, a maior lição que ele me deixa é essa: aprender a observar o tempo. Não só transcrevê-lo para as histórias, mas observá-lo de maneira humanista, a partir de outra ótica".

Vida

Nascido no município de Senador Pompeu no ano de 1914, Moreira Campos fixou-se com a família em Lavras da Mangabeira dez anos depois. Em 1930, passando por grandes e sucessivas dificuldades financeiras, o núcleo parte para Fortaleza e faz, da Capital, a nova morada. Aqui, ele casa com Maria José Alcides Campos (a Dona Zezé) e, do casamento, nascem três filhos: Natércia, Marisa e Cid.

Neste chão, o homem também viu crescer a veia artística e a inclinação para o ofício do magistério. Não à toa, em 1943 funda o Grupo Clã - entidade responsável por firmar o modernismo no Estado, formada não apenas por escritores, como também por uma miríade de artistas de diferentes linguagens, como Aldemir Martins e Antônio Bandeira.

Além disso, se forma em Direito pela Universidade do Ceará (UFC) e torna-se na mesma instituição, em 1965, catedrático de Língua Portuguesa do curso de Letras Vernáculas. Nesse ínterim, ingressa ainda na Academia Cearense de Letras (ACL), ocupando a cadeira de número 32 da agremiação.

Legenda: Considerado o pai do conto cearense, Moreira Campos imortaliza o Ceará em suas obras
Foto: Foto: Tuno Vieira

As conquistas mencionadas são apenas um recorte, porém. No bojo de cada uma delas, há a marcação da escrita na própria história de Fortaleza, contada do ponto de vista de alguém fascinado pela metrópole.

O sossego das calçadas e a introdução de pequenas tecnologias no cotidiano dos anos 1940, bem como o desenvolvimento pela qual passou em épocas mais próximas, por exemplo, perpassam a maioria dos contos e historietas desenvolvidos durante a carreira, demonstrando atenção ao redor.

Revela também senso crítico e inovação. Já em épocas de outrora, o contista narrava com olhar acurado sobre as mazelas sociais, e não escondia a sedução em retratar aspectos eróticos nas tramas. Características que aproximaram-no dos fartos elogios vindos da crítica literária e da popularidade alcançada até mesmo longe das fronteiras brasileiras, com obras traduzidas para inglês, italiano, francês, alemão e até japonês e hebraico.

Influência

Tércia Montenegro - outra figura contemporânea cujo conteúdo do aniversariante ressoou de forma proeminente e que conviveu com o autor nos primeiros anos da infância, fruto da amizade dele com os pais da escritora - conta que o relevo dado ao trabalho de Moreira Campos é justificado por uma série de aspectos caros à maneira como conduzia as narrativas. "Algo muito forte é a musicalidade no nível da frase, pela repetição e pelo aspecto circular", diz.

"Se você pega a estrutura dos contos de sua fase mais madura, isso é bastante presente. A construção dos discursos diretos, por exemplo, é repetida, como no conto 'O Preso', em que a fala da personagem aparece uma, três ou quatro vezes em um conto que é bem curto", complementa.

Essa insistência da expressão, segundo a autora, gera um ritmo que leva a um clímax, e é causa também para que Tércia sempre retorne aos livros dele. "Do mesmo jeito que a frase volta, é como se o leitor também precisasse voltar aos contos. Para ser um bom apreciador de Moreira Campos, inclusive, há que se considerar essa lógica presente na estrutura das histórias".

Debruçar

A literata enfatiza ainda que muito do que compõe seu primeiro livro de contos, "O Vendedor de Judas", é fruto de um debruçar atento sobre a produção de Campos. Apesar de ter nascido em Fortaleza e não ter tido grande contato com o interior do Estado, a autora traz as amenidades do sertão para a obra, cenário fortalecido de detalhes por meio do que descreveu Moreira.

"Considero que aprendi a escrever com ele e a levar a sério máximas como 'se você não vai usar a espingarda, não mencione', essa lei da economia do gênero conto", detalha. "Convivi com ele até por volta de meus 8 ou 9 anos. Quando faleceu - no mesmo ano que entrei no curso de Letras e um dia depois do poeta Mário Quintana, o que até hoje considero como um oráculo ruim - senti pela perda e, hoje, penso como em teria sido bom ter tido uma conversa adulta com ele".

A contista finaliza o diálogo refletindo sobre o fato de Moreira Campos, apesar de toda a pompa sobre seu trabalho, nunca ter deixado a capital cearense, compondo inclusive uma interessante cartografia afetiva dos lugares onde morou - da Praia de Iracema ao Benfica.

"Para mim, foi um exemplo. Enquanto, na minha geração, artistas de várias linguagens acham que só alcançariam sucesso indo para Rio ou São Paulo - no caso de escritores, para estar próximo das editoras - ele se tornou uma pessoa realizada aqui. Tinha a vontade do fazer e não poderia ter feito melhor".

Saiba Mais

Acervo resguardado

Manuscritos, fotografias e toda uma fortuna de pertences de Moreira Campos estão resguardados no Acervo do Escritor Cearense, espaço mantido e localizado na Biblioteca de Ciências Humanas da Universidade Federal do Ceará (UFC). A curadora, Neuma Cavalcante, otimizou a criação do ambiente a partir do projeto "Memória de uma vida criativa: o Arquivo Pessoal do escritor José Maria Moreira Campos", em 2004, contando com o apoio do pesquisador Gilmar de Carvalho.

Antes da empreitada, Neuma já possuía farta experiência em organização de arquivos de escritores. No Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, foi curadora do arquivo do escritor João Guimarães Rosa (1908-1967).

Legenda: Manuscrito com anotações de Moreira Campos, presentes no Acervo do Escritor Cearense, na UFC
Foto: Foto: Thiago Gadelha

Sobre o fato de possuir maior contato com a obra de Moreira a partir do ofício de curadoria, Neuma se diz contente pela família do contista ter apoiado o projeto. "Foi muito importante a doação de arquivos para construirmos esse acervo. Isso faz com que as obras não parem nos livros impressos, mas estejam sempre se alimentando de novos trabalhos, já que ganha relevo a partir dos guardados deles", comemora.

"E a gente encontra muita coisa interessante", diz ela, que foi, durante um semestre, aluna de Moreira Campos. Entre os itens da coleção, além dos mencionados no início deste texto, constam correspondências trocadas com amigos, imagens e várias anotações.

De acordo com Neuma, o acervo, apesar do volume, continua recebendo doações de pessoas que porventura ainda guardam algo que pertenceu ao autor.

"É um trabalho que está sempre sendo feito, por isso demora para que esteja consolidado, visto que é muito detalhado, muita coisa. A todo momento, aparecem pessoas com coisas. Também é multidisciplinar, já que, além de Literatura, envolve Educação, História, entre outros campos do saber", explica, detalhando os processos.

Com o formato que possui, o Acervo do Escritor Cearense - incorporando pertences de vários literatos, incluindo Natércia Campos, filha de Moreira - integra um time de espaços existente em apenas três instituições do Brasil: a já citada USP, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS).

Enlace fraterno

O professor, poeta, crítico literário e ensaísta Sânzio de Azevedo foi um dos grandes amigos de Moreira Campos, com quem dividiu experiências profissionais e de vida, um belo enlace fraterno.

Em entrevista, ele diz que o mais lhe influenciou no contato com o contista foi a seriedade com a qual encarava a intricada e necessária arte de escrever.

"Deixou uma obra que, para mim, é o ponto mais alto do conto em toda a literatura cearense", revela.

O início da união fraterna entre os dois, por sinal, merece atenção: conversando com o poeta Cruz Filho (1884-1974), do qual foi amigo também, Sânzio comentou a semelhança do conto "Uma História antiga ou a serpente", de Moreira, com o assassinato, em 1914, do jovem José Nogueira, filho do professor Joaquim Nogueira.

"O Cruz disse isso ao Moreira, que me procurou e ficamos amigos. Éramos, à época, professores na UFC", afirmou.

Ali iniciava uma relação de estreito contato com a cultura local, bem como de troca de amenidades. Sânzio comenta que, quando Moreira fazia palestras na UFC, lhe mandava bilhetes pedindo para que contasse casos interessantes. Os mesmos são guardados com carinho na memória.

Entre tantos trabalhos que destaca do colega, sublinha "As Corujas", que incluiu no livro "Literatura Cearense", publicado em 1976.

Conheça algumas curiosidades sobre o contista:

Uma das marcas mais características de Moreira Campos era as andanças que fazia, ainda nas primeiras horas da manhã de Fortaleza, com o fusca verde que possuía;

A casa onde durante 40 anos morou o autor, no bairro Benfica, foi demolida em 2015, contrariando as expectativas da família, que esperava a preservação do edifício por parte de instituições como Secult ou Iphan. A área onde ficava a residência foi transformada em um estacionamento;

Moreira Campos foi um dos cinco entrevistados da segunda edição da Revista Entrevista, em 1993. O projeto é um dos mais tradicionais do curso de Comunicação Social - Jornalismo da UFC, idealizado pelo jornalista e professor Ronaldo Salgado;

Em 2012, Guto Parente dirigiu um curta homônimo a um dos mais aclamados contos de Moreira Campos, "Dizem que os cães veem coisas". A produção, da Alumbramento, estreou na 15ª Mostra de Cinema de Tiradentes (MG);

Na edição de 2014 da Bienal Internacional do Livro do Ceará, o contista foi o homenageado especial do evento, com uma série de ações e lançamentos em sua memória, entre elas exposições e seminário.

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