No Domingo de Páscoa, conheça histórias de quem renasceu durante a pandemia de Covid-19

Dona de casa, técnico de som e advogada relatam a gratidão que sentem por voltar à vida e poder ressignificá-la

Escrito por Lígia Costa , ligia.costa@svm.com.br
Legenda: Fabiana reencontrou Benjamin somente 12 dias após o parto
Foto: Teresa Fernandes/HRN

Tornar a nascer, adquirir nova vida, energia ou vigor, renovar-se. Renascer se tornou verbo conjugado com cada vez mais frequência no último ano, marcado pela pandemia da Covid-19.  

Os renascimentos se materializam todos os dias e das mais variadas formas. Seja pela mãe que sai da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e vê o filho prematuro crescer a cada dia, na mulher que vai de encontro às previsões médicas e se recupera bem em casa ou no homem que, por meio de sonhos que teve enquanto sedado, ressignificou o sentido da própria existência. 

Neste domingo de Páscoa (4), dia em que a Igreja Católica celebra a ressurreição de Jesus Cristo, o Diário do Nordeste desfia histórias de quem teve a chance de transformar a dor, o medo e a angústia em estruturas para pavimentar uma nova vida.   

‘A gente renasce a cada dia’ 

Este domingo virou um marco para Fabiana Alves Sousa, 31, pois é o dia em que poderá, enfim, experimentar a "felicidade completa" de retornar para casa, levando o filho nos braços. Hoje, Benjamin Carlo completa exatos oito meses da idade gestacional, condição necessária para receber alta. 

A dona de casa foi diagnosticada com Covid-19 quando chegava ao fim do sexto mês de gravidez e precisou ser submetida a um parto de emergência no dia 6 de março. Devido às complicações da doença, mãe e bebê não puderam sentir ou ver um ao outro.  

Tão logo nasceu, Benjamin foi internado na UTI Neonatal (UTIN) do Hospital Regional Norte (HRN), em Sobral. E Fabiana, na UTI Covid da unidade. Foi ainda lá que conheceu o seu bebê, mas à distância, por videochamada. O encontro físico só aconteceria 12 dias após o parto. 

Legenda: Mãe conheceu o filho por videochamada
Foto: Teresa Fernandes/HRN

Mãe de outra criança de 10 anos, ela relata ter se apegado à fé para, mais uma vez, renascer. “Eu já renasci várias vezes. Há muito tempo passei por uma depressão, foi muito doloroso, mas eu também lutei contra isso e fiquei boa. Pra mim, a gente renasce a cada dia, ainda mais quando passa por um problema desses, como o Covid, em que nem todos têm a possibilidade de voltar a viver". 

Fabiana recebeu alta, mas dois dias depois retornou ao HRN para ficar perto do filho na Unidade de Cuidado Intermediário Neonatal Canguru (UCINCa). Apesar das circunstâncias negativas, Fabiana garante nunca ter se intimidado. 

“Fiquei tranquila e disse pro meu esposo que daria tudo certo. [Graças] à minha fé em Deus, não me desesperei em momento nenhum. Se fosse ficar aperreada, ia prejudicar mais o bebê. Então, eu pensei nele". 

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Para ela, estar viva e voltar para casa com o filho saudável nos braços é “um renascimento maravilhoso”. “[É] mais uma vitória sair daqui [hospital] nesse domingo de Páscoa. Claro que não foi fácil passar pelo que eu passei, mas eu confiei em Deus. Ele nunca abandona a gente”.  

Reviravolta 

Até às 16h59 deste sábado (3), a plataforma IntegraSUS da Secretaria de Saúde do Estado (Sesa) registrava 388.801 casos recuperados de Covid-19 no Ceará. O técnico de som, Daniel Alenquer, de 39 anos, faz parte dessa estatística. Ele recebeu alta na terça-feira (30), após ficar 35 dias internado.  

Devido a um resultado falso-negativo para Covid-19, conviveu durante três semanas com o que acreditava ser apenas uma “gripe muito forte”. Vendo o quadro de saúde piorar, buscou atendimento na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da Messejana.  

Para sua surpresa, foi diagnosticado com a doença e transferido para o Hospital e Maternidade José Martiniano de Alencar (HMJMA), no Centro de Fortaleza. Ao longo dos 35 dias em que ficou internado, foi intubado e sofreu uma parada cardíaca.  

“Meu coração, de repente, parou e eles conseguiram me reanimar; depois veio o tratamento. Foi uma reviravolta muito grande em minha vida”.  

Embora não recorde bem da maioria dos dias em que ficou internado, Daniel lembra claramente de alguns sonhos que teve enquanto estava sedado.  

“Dos sonhos, o único que eu diria que foi um pesadelo foi o do falecimento da minha mãe. Como essa doença é muito grave, fiquei com medo de não conseguir me despedir. Mas aí quando eu voltei, o meu irmão passou a informação de que” ela estava bem.  

Toda a experiência, segundo o técnico de som, foi uma das mais fortes e transformadoras de sua vida. Hoje, se sente renascido. E já traça planos para, quando tudo passar, viajar e desfrutar mais momentos em família. 

“Isso me fez ver o quanto eles [familiares] são importantes pra mim. Eu vivia basicamente pro trabalho e esquecia um pouco [deles]. Hoje, eu já penso diferente. Foi por eles que quis lutar cada vez mais [pela cura]”, conta emocionado.

Mesmo em casa, Daniel ainda conclui a fase de recuperação. Ele já se alimenta e vocaliza bem, e sua traqueia está praticamente fechada. Por ficar muito tempo deitado, porém, ainda precisa de acompanhamento profissional para recobrar o movimento das pernas.  

“Deus me deu a oportunidade de dar meu testemunho, de motivar outras pessoas que não desistam da vida, que lutem por ela. Eu sou muito grato a Deus”.  

Um novo sentido  

Gratidão também é palavra que ganhou ainda mais protagonismo no vocabulário da advogada criminalista Carolina Azin, 25. Após testar positivo para o coronavírus, ficou quase 20 dias internada, sendo 10 deles intubada.  

A alta, inesperada até mesmo pelos médicos, aconteceu no dia 29 de março, uma “segunda-feira muito especial e feliz”. 

Legenda: Apaixonada por fotos e grata aos profissionais da saúde, Carolina Azin registrou o momento antes de deixar o hospital
Foto: Arquivo pessoal

“Eu só sei ser grata o tempo todo. Grata por estar viva, por estar com meu pai aqui, por vê-lo, por ver a Vitória [namorada], por poder dizer que eu vou casar em breve”, enumera, sem conter as lágrimas.  

O mais difícil durante todo o processo, rememora, foi encarar a solidão e o medo de estar em uma UTI. O pior foi ainda imaginar o sofrimento do pai que não podia visitá-la, pois também havia sido infectado pelo vírus. 

Para Carolina, sua vida é um milagre. Representa uma nova chance, a partir da qual renasceu. Além de perceber o mundo diferente e rever prioridades, também vai iniciar sessões de fisioterapia motora nesta segunda (5) para reaprender a andar, a sentar.

Legenda: Com a experiência, a advogada diz que passou a apreciar cada detalhe

Por ficar muito tempo na UTI e perder massa muscular, não consegue ainda executar ações antes “tão comuns”, mas hoje “tão grandiosas e importantes” como tomar banho ou carregar peso. 

“Sabe quando o passarinho quebra o ovo, ainda sem pena, todo bem pequenininho e a mãe alimenta na boca? Eu estou nessa fase”, compara. “Quando eu saí do hospital, olhava pro céu e [dizia]: 'meu Deus, que cor linda'. As coisas têm tão mais sentido agora, sabe?”. 

Pós-trauma 

Devido à experiência traumática durante a internação, Carolina admite não lembrar com clareza nem mesmo dos quatro dias que antecederam a intubação. Se recorda apenas de alguns “flashes”. Fabiana Alves e Daniel Alenquer também relatam semelhantes lapsos de memória.  

Segundo a psicóloga Marina Teófilo, a exposição a eventos potencialmente estressores, ameaçadores e traumáticos, como os que foram vividos pelos três, podem gerar uma falha no sistema adaptativo. 

Com isso, é possível que o indivíduo desenvolva algumas condições psicológicas mais adversas, como ter sinais e sintomas de depressão, de ansiedade, além do chamado Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT).

“O TEPT é caracterizado por sintomas específicos, após a exposição a um evento ameaçador de estresse extremo. Pode acarretar em manifestações emocionais de impotência, insegurança, o próprio medo. Uma das características do TEPT é a revivência, ter sonhos ameaçadores, e a gente evitar pensar sobre o que aconteceu”. 

Apreciação da vida

A especialista diz que estudos já indicam sobre a possibilidade de maior incidência do transtorno durante a pandemia. Mas aponta que passar por situações de intenso estresse, por outro lado, também pode resultar em consequências positivas.  

“Pode haver mudanças na capacidade que o indivíduo tem de adquirir uma maior apreciação da vida, de realizar mudança de prioridades, de construir relações mais afetivas, desenvolver a sensação de força pessoal, de espiritualidade, de poder reconhecer novos caminhos de vida”.  

O primeiro passo para encarar o trauma, indica a psicóloga, é reconhecer e aceitar o que aconteceu. Outra medida importante é se fortalecer por meio de uma rede de apoio, formada por familiares, amigos, profissionais da Saúde, etc. 

“Às vezes, a gente acha que isso é muito simples, mas o suporte que a gente tem dessas pessoas, de quem tá do lado nesse momento, é de extrema importância para” o processo de adaptação à nova rotina na nova vida.  

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