Mestre Aldenir mantém a folia de Reis viva há quase 70 anos no Cariri: 'Eu quero seguir brincando'
Nesta sexta-feira, 6 de janeiro, é celebrado o dia de Reis, tradição que virou folia em Portugal e chegou ao Brasil como herança da colonização. Hoje a celebração é símbolo de alegria e resistência
A folia de reis, comemorada neste 6 de janeiro, faz parte da cultura brasileira e é celebrado com deferências no Ceará, sobretudo na região do Cariri. Entre fantasias, cantorias e batuques, a manifestação cultural se faz viva através dos brincantes. Alguns misturam sua vida ao reisado como corpo e fantasia.
Mestre Aldenir é um exemplo. Não tem uma definição para o termo. E nem precisa. Talvez sua trajetória de vida seja a própria resposta. Com 89 anos de idade, José Aguiar Aldenir, o Mestre Aldenir, é um dos mais notórios Mestre da Cultura do Ceará. Brincante do reisado há quase sete décadas, ele prefere não verbalizar uma definição engessada para o termo. Aliás, “engessamento” é tudo que não combina com essa arte.
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“É alegre. Bem cantado, bem dançado. É um negócio bonito de se ver. Carrega responsabilidade e transmite cultura”, diz Mestre Aldenir. A frase, suscinta, representa o Reisado. Aos que carecem da definição, o reisado, também chamado de Folia de Reis, é uma manifestação popular e folclórica que celebra o nascimento do menino Jesus e rememora a visita dos Reis Magos à Belém.
Agraciado, em 2004, com o título de Tesouro Vivo da Cultura, através da Secretaria da Cultura do Ceará (Secult), Mestre Aldenir, é um dos principais responsáveis pela manutenção do Reisado no Cariri cearense. De família humilde, vindo da roça, Adelnir teve que romper barreiras e preconceitos dentro da própria casa para iniciar aquilo, que, na época, era apenas uma “brincadeira”.
Resistência e crescimento
"Na minha família não tinha essa tradição. Meu pai não queria. Dizia que aquela brincadeira ia atrapalhar na roça. Mas eu queria e minha mãe me apoiou”, narra. No início, rememora Mestre Aldenir, foi preciso convencer o pai e se "apegar a Deus".
"Eu não sabia, de fato, o que era aquela dança, o que significava. Mas gostava muito. Tanto que fiz uma promessa à Deus. Prometi que iria continuar dançando, mas iria manter meus afazeres". Promessa feita, promessa cumprida. "Ia dançar e chegava em casa muito cansado. Mesmo assim ia pra roça ou pro engenho, nunca deixei de trabalhar", completa.
Aliar a dança às suas atribuições que ajudavam no sustento de casa serviram para "amolecer" o pai. "Um dia fui dançar em casa e meu pai não saiu do quarto. Lá para o final, ele saiu e eu fiz um cântico para ele. No fim ele riu, gostou e passou a aprovar", conta, orgulhoso.
Aqueles primeiros ensaios não entram na contagem de Mestre Aldenir. Para ele, a cronologia começa a ser contada a partir do ano de 1955. "Foi ali que comecei a brincar oficialmente. Entendi o significado do reisado. De lá pra cá já são quase 70 anos. Tenho muito orgulho dessa caminhada", diz.
Legado
Hoje, 68 anos depois, sua manifestação através da dança atrai pessoas, dissemina a cultura e, mais que isso, inspira novas gerações. A resistência daquele jovem da roça e do engenho surtiram efeito. São 10 filhos, 48 netos e 38 bisnetos. Toda essa geração cresceu vendo Mestre Aldenir escrever sua história em comunhão com o Reisado.
Dentro da família, inspiração. Fora dela, exemplo. Aldenir, não satisfeito em ser "apenas" referência na cultura, nutriu o desejo de perpetuar a arte. Para colocar em prática seus anseios, criou um grupo infantil de reisado com o intuito de repassar sua tradição para crianças de 10 e 11 anos de idade.
"As crianças aprendem fácil. E, mais que isso, elas têm um prazer especial na dança. Isso é importante, esse prazer contagia e qualquer arte necessita disso para que não morra", analisa Aldenir. Como sempre foi em sua trajetória de vida, Mestre Aldenir foi além. “Não é só criança que dança. Eu sou prova disso”, brinca, ao justificar a criação de outros grupos.
Aldenir fundou grupos com diferentes faixas etárias. O objetivo, é o mesmo: não deixar a tradição do reisado morrer. "É uma grande responsabilidade ter essa proposta de deixar viva essa cultura. É difícil, mas a gente tem que seguir", conclui.
Sonho e sucessão
Com quase nove décadas de vida, Mestre Aldenir diz já ter sorrido e chorado inúmeras vezes. A analogia feita por ele diz respeito às vitórias e as quedas acumuladas em seu caminhar, processo inerente na trajetória de nossas vidas. Ao olhar para trás, ele faz uma espécie de retrospectiva e responde de forma breve: "fui e sou feliz".
Quando questiono se ainda há algum sonho a realizar, Mestre Aldenir é ráido: "não, o último deles eu realizei no ano passado". Orgulhoso, ele detalha a graça. "Eu sempre quis ter um terreiro em casa. Um terreiro onde pudesse dançar e receber outros brincantes. Era um sonho antigo, bem antigo, mas que consegui realizar no ano passado".
Mantendo o mesmo orgulho em sua fala, ele acrescenta: "o terreiro é lindo, como eu sempre quis. E tem também brinquedos -- como os dançantes referem-se às peças utilizadas na dança do Reisado". Além da conquista antiga, Mestre Aldenir goza do prazer de contar com um Museu em sua casa. Humilde, característica esta preservada ao longo dos seus quase 90 anos, ele brinca: "nem sei se merecia tanto".
Sim, merecia. A afirmação advém das próprias peças que compõem o Museu. São roupas, títulos empilhados na parede, menções honrosas, como de Tesouro Vivo da Cultura. Diante de tantas conquistas, Mestre Aldenir se mostra pronto para a próxima: deixar um sucessor.
"Eu quero seguir brincando por muito tempo. Mas a gente sabe que a idade chega. Já tenho quase 90 anos, as vezes bate um cansaço, e já penso em um sucessor". Ele atende por Leo. Tem 28 anos e é neto de Mestre Aldenir. "Já dança muito bem. Tem tudo para seguir fazendo um belo trabalho", diz, Aldenir.
Resistência, vitórias, legado e sucessão, uma história que ultrapassa as barreiras temporais e entra para o campo do eterno. "Cultura é isso. Tradição tem que ser para sempre. Mas, para isso, a gente tem que fazer por onde", finaliza Aldenir, o Mestre.