Hospitais públicos de Fortaleza têm pacientes em corredores, acompanhantes dormindo no chão e falta de medicamentos
Diário do Nordeste visitou unidades municipais e ouviu usuários e trabalhadores sobre as más condições de funcionamento
Com a perna machucada após sofrer um acidente, na última quarta-feira (12), o motorista de aplicativo Francisco Martins de Sousa, 41, buscou socorro no Hospital Distrital Evandro Ayres de Moura, o Frotinha do Antônio Bezerra – e saiu de lá sem receber atendimento, já que não havia aparelho de raio-x. Na ambulância, ele seria transferido para o Frotinha da Parangaba, o Hospital Distrital Maria José Barros de Oliveira.
No dia anterior, a própria unidade da Parangaba estava sem ultrassom, e Antônio Alves, 44, não conseguiu ser atendido. “Ele foi para a UPA (Unidade de Pronto Atendimento) com suspeita de apendicite e o médico disse: ‘vá para o Frotinha’. A gente vem, chega aqui e não tem ultrassom. Dizem que a gente tem que ir para o da Messejana. É um total descaso. Agora estou indo com ele pra um hospital particular”, reclama a filha, Jenifer Lima.
Faltas de equipamentos, de medicação, de insumos e até de profissionais suficientes lideram as reclamações sobre hospitais municipais de Fortaleza, ouvidas pelo Diário do Nordeste de pacientes, acompanhantes, trabalhadores da saúde e órgãos de fiscalização.
Na última semana, nossa reportagem percorreu quatro importantes unidades de saúde da capital cearense – o Instituto Dr. José Frota (IJF), os Frotinhas da Parangaba e do Antônio Bezerra, e o Gonzaguinha da Barra do Ceará – para registrar o cenário, denunciado de forma recorrente.
Entre abril de 2023 e março deste ano, o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) recebeu, em média, 48 reclamações formais sobre as condições em hospitais públicos de Fortaleza, conforme noticiado pelo Diário do Nordeste.
‘Falta o básico’
Hospital de referência não só para Fortaleza, mas no acolhimento de pacientes de todo o Estado, o IJF tem um dos cenários mais críticos entre os equipamentos da rede municipal, conforme descrito por pacientes e trabalhadores à nossa equipe.
Fonte que trabalha na unidade – e que não será identificada para preservar a identidade – relatou à reportagem que há períodos em que faltam medicamentos básicos, como paracetamol e dipirona, além de gaze. “Muitas vezes, tem que gerenciar só com o que tem. Não tem dipirona, faz paracetamol. Aí acaba e fica basicamente nada desses analgésicos simples para dor e febre”, conta.
O relato também aponta a falta de materiais mais caros, como algumas próteses ortopédicas, durante meses. Isso leva a cenários diferentes: algumas pessoas ficam em internamento muito prolongado, porque não podem receber alta; outras recebem alta antes da hora, porque não há o aparelho necessário.
“Então eles dão alta mesmo sem dever, porque tem risco de complicação, de ficar com sequela permanentemente, se não for corrigido logo. Mas não tem, então eles (os pacientes) têm que ir de alta e depois retornam quando vier a prótese, para fazer a cirurgia”, contou.
Além disso, segundo a fonte, o IJF está há alguns meses sem repassar recursos para as cooperativas, levando a atraso no salário de profissionais que atuam em setores como enfermaria e cirurgia. A quantidade insuficiente de trabalhadores também foi citada.
“Em muitos plantões que deveriam ter duas enfermeiras, por exemplo, ficam só com uma, devido a desfalques. Realmente tem essa falta de pessoal também, já que o concurso é muito antigo”, afirma. Na quinta-feira, 6 de maio, profissionais do IJF paralisaram as atividades em protesto às condições de carreira e de trabalho.
‘Acompanhante dormindo no chão’
A cuidadora Patrícia Santos, 43, declarou que o marido, o pedreiro Francisco Wagner Nunes de Souza, 38, sofreu um acidente e buscou o IJF. Ele chegou a ser atendido e a ficar internado, mas saiu de lá sem a cirurgia necessária.
“A gente passou mais de uma semana no corredor do necrotério para subir. As pessoas são descartadas. Não gostei do atendimento. Para mim, por ser um hospital de referência, é péssimo”, desabafou ela. O marido conseguiu assistência no Frotinha da Parangaba.
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As condições para quem está junto a algum paciente também são motivo de reclamação. Maria (nome fictício), cujo avô sofreu uma queda e está internado no IJF, descreve que “tem pessoas há mais de 20 dias dormindo em papelão que conseguem com o pessoal da limpeza, isso quando conseguem. Nem um colchonete pode levar para dormir”.
Na terça-feira (11), em frente à entrada do instituto, a manicure e cabeleireira Cinthia Santos, 46, descreveu à reportagem as duas semanas em que tem acompanhado a irmã. Ela conta que foram 15 dias aguardando uma cirurgia, tempo no qual tem dormido no chão do hospital ou sentada em uma cadeira de plástico.
“As enfermeiras são ótimas, os médicos também. Mas um hospital desse, de referência, não tem um pingo de estrutura para o acompanhante”, diz, criticando também a qualidade da comida oferecida.
Mais distante do IJF, no bairro Vila Velha, a população reclama de outro extremo: o fim dos atendimentos de urgência no Gonzaguinha da Barra do Ceará. Desde dezembro de 2022, a unidade passou a acolher exclusivamente demandas obstétricas e ginecológicas. “O pessoal do bairro não gostou”, comentou um agente de cidadania e controle social.
Outro fato narrado à reportagem na última quarta-feira (12) foi que, no Frotinha do Antônio Bezerra, o equipamento utilizado para esterilização – chamado autoclave – estava quebrado há três meses.
A Central de Material e Esterilização (CME) havia sido reformada e pouco depois ocorreu o defeito. Com isso, materiais da unidade precisavam ser levados diariamente para outros hospitais para serem esterilizados, o que causava desfalque na equipe assistencial.
Martinha Brandão, diretora do Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos de Serviços de Saúde do Ceará (Sindsaúde/CE), é categórica ao dizer que endossa os relatos de pacientes e trabalhadores, principalmente no que se refere à falta de profissionais.
“O dimensionamento está errado. O próprio superintendente do IJF informou para o MP que, hoje, a quantidade de profissionais para atender toda a demanda do hospital seria de mais de 800 profissionais na área assistencial”, cita.
“No IJF, um técnico tendo que dar assistência a 30-40 pacientes, quando deveria cuidar de 7-10. Sem falar nas gambiarras que precisam fazer para garantir a medicação dos pacientes”, acrescenta a diretora da entidade.
A representante da categoria afirma que, em visitas a unidades como os Frotinhas, o Sindsaúde verificou a “falta de medicação básica e insumos, pacientes denunciando que estavam saindo pra comprar gaze”, além de sérios problemas estruturais.
“No Frotinha do Antônio Bezerra, encontramos pacientes sendo admitidos e sentados num balcão de azulejo, porque não tinha maca nem cadeira de rodas, além dos leitos todos ocupados. A Prefeitura fechou irresponsavelmente várias emergências, sobrecarregando outras”, avalia Martinha.
‘Não tem médico hoje’
“Tudo o que você imaginar de reclamação, tem.” A fala é de Ana Cláudia Uchoa, promotora de Justiça do MPCE, ao ser questionada sobre quais os principais problemas que chegam ao órgão fiscalizador por meio de denúncias. Ela é uma das profissionais que acompanham pessoalmente as condições das unidades.
O maior número de queixas, ela aponta, é sobre faltas. “De medicações, de insumos, de estrutura, de médicos. Nos Frotinhas, inclusive, acontece muito. Falta médico a ponto de o paciente não ser atendido e ouvir ‘não tem médico hoje, vá pra canto tal’”, ilustra a promotora.
É até difícil dizer quais as unidades mais críticas. Os Frotinhas da Parangaba e do Antônio Bezerra estão péssimos, têm muitas reclamações. O Hospital Nossa Senhora da Conceição também tem uma ala que está muito ruim. O IJF tem muita, muita reclamação.
A promotora relata que, em visita recente ao IJF, uma demanda latente e “que tem impactado demais na assistência ao paciente” foi identificada: o subdimensionamento do número de funcionários para atendimento.
“É muito sério, quem está lá está imensamente sobrecarregado. Cobramos isso do prefeito e tem que ser solucionado”, frisa Ana Cláudia, destacando, ainda, o desabastecimento de materiais indispensáveis à assistência.
“Recebemos denúncia dos médicos: falta gesso, álcool, algodão, antibióticos, materiais básicos. Demos um prazo de 60 dias pra regularizar isso. Caso não cumpram, entramos com uma Ação Civil Pública”, diz
A promotora lamenta, por outro lado, que o prazo dado pelas autoridades geralmente é cumprido pela Prefeitura de Fortaleza – mas os problemas logo voltam a ocorrer.
“Esse desabastecimento também aconteceu no Frotinha do Antônio Bezerra, fizemos o mesmo, demos prazo. Eles regularizam, mas em 6 meses recebemos denúncia de novo. Na saúde pública, acontece muito isso”, pontua. O problema é a gestão: priorizar a saúde pública. É isso o que está faltando.”
Judicialização da saúde aumentou
Se de um lado os problemas estruturais prejudicam a assistência, do outro uma demanda “invisível” se multiplica: diversos pacientes sequer conseguem chegar ao atendimento, amargando longas esperas por consultas especializadas e exames que não são agendados.
A informação é de Yamara Lavor, supervisora do Núcleo de Defesa da Saúde da Defensoria Pública Geral do Estado, que recebe solicitações de pacientes que não conseguiram acesso ao serviço público.
“De um ano pra cá, aumentaram os pedidos por consultas com neuropediatra para crianças com suspeita ou diagnóstico de autismo, além de terapias multidisciplinares. Consultas oftalmológicas, ortopédicas, com otorrino... Nesta semana, judicializamos uma ressonância”, relata.
Até meados de 2022, estima a defensora pública, as demandas eram resolvidas em maioria de forma administrativa, ou seja, sem precisar abrir processo judicial, o que tornava a solução mais célere.
“Tudo o que chega, tentamos resolver de forma administrativa. Em caso de negativa, judicializamos. Há 2 anos, conseguíamos resolver muitas questões assim. Hoje, esse percentual diminuiu. Conseguimos em alguns, mas a judicialização aumentou”, destaca Yamara.
A Defensoria é um dos órgãos que integram o Comitê Estadual de Saúde, que se reúne mensalmente para tratar das situações mais recorrentes. A raiz dos problemas, de um modo geral, como analisa Yamara Lavor, é a falta de profissionais.
“É necessária a contratação de profissionais que acompanhem o crescimento dessas demandas. No autismo, por exemplo, o número de neuropediatras não acompanha a demanda. O tempo de espera é muito prejudicial”, lamenta a defensora.
O que diz a Prefeitura de Fortaleza
O Diário do Nordeste questionou a Prefeitura de Fortaleza sobre cada um dos pontos levantados por usuários e trabalhadores quanto às condições das unidades de saúde municipais.
Sobre o IJF, a direção do instituto informou, por meio de nota, que:
- Não há registros de falta de refeições no hospital, que oferece alimentação diária completa aos mais de 600 pacientes internados e seus acompanhantes;
- Disponibiliza assentos para todos os acompanhantes, além de prestar apoio e orientação às famílias sobre as regras de convivência no ambiente hospitalar a fim de evitar comportamentos de risco de contaminação;
- Todas as medicações necessárias são disponibilizadas aos pacientes, conforme prescrição médica e seguindo os protocolos farmacêuticos assistenciais;
- O fornecimento de gaze e algodão também segue regular;
- Todos os fornecedores e prestadores de serviços estão sendo pagos conforme as regras contratuais, sem atrasos de salários dos servidores da unidade de saúde.
Em relação à alta precoce de pacientes, a gestão pontuou que “o IJF possui 50% de seus leitos ocupados por pacientes encaminhados de outras cidades” e, “muitas vezes, a recuperação de uma vítima de fratura ou lesão complexa pode durar vários meses e até anos, passando por diversos procedimentos”.
“Quando possível, o tratamento continuado fora do hospital pode ser aplicado, com acompanhamento ambulatorial periódico da equipe especializada do hospital, com consultas e cirurgias agendadas”, complementa a nota.
Quanto ao quadro de funcionários do hospital, a nota informa que “apenas nos últimos anos, cerca de 500 aprovados em concursos públicos foram convocados e a Prefeitura de Fortaleza segue em esforço permanente para a análise de novas admissões”.
Sobre o Frotinha da Parangaba, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) informou que “o equipamento conta com aparelho de ultrassonografia para realização de exames dos pacientes assistidos na unidade e via Central de marcação de exames do Município” e que “os exames são realizados duas vezes na semana ou conforme necessidade e/ou urgência, de acordo com a avaliação médica”.
Sobre o Frotinha Antônio Bezerra, a nota diz que “o equipamento teve a Central de Material e Esterilização (CME) completamente reformada” e, após a reforma, “a autoclave apresentou defeito, com empresa já acionada para reparo”. “As cirurgias continuam acontecendo de forma contínua e integral, dentro da previsão normal da unidade”, complementa.
Já o problema técnico no aparelho de raio-x apresentado na quarta-feira (12) “já foi prontamente reparado, e mesmo nestes casos pontuais, todo usuário é acolhido e se necessário encaminhado para Rede própria para realização do exame”.
Quanto à falta de equipamentos como macas, cadeiras de rodas e biombos, a SMS diz que “está com processo de licitação em andamento para reposição dos itens, de modo a permitir conforto aos pacientes atendidos”. A Pasta negou que haja “falta de algodão hidrofílico em rolo específico para banho”, confirmando que “segue com fornecimento regular”.
Sobre a falta de profissionais suficientes, a SMS frisa que “o dimensionamento de trabalho das equipes multiprofissionais segue a padronização das normas técnicas e legislações vigentes relativas a cada categoria. Além disso, está em andamento o concurso da Fundação de Apoio à Gestão Integrada de Fortaleza (Fagifor) para fortalecer a Rede de Hospitais do Município”.
A nota complementa ainda que “a Rede Materna Infantil da capital conta com cinco hospitais. Desde 2022, para qualificar o atendimento de mães e bebês, três destas unidades foram contempladas com readequação de perfil, atendendo exclusivamente demanda obstétrica e ginecológica em sua emergência, mas mantendo o atendimento ao perfil clínico, por meio da Central de Regulação. Os pacientes que buscam o atendimento de urgência clínica devem se dirigir a uma das 12 Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) da capital. Em casos de baixa complexidade, os 121 postos de saúde dão suporte com as demandas espontâneas”.
*Estagiário sob supervisão da editora Dahiana Araújo