‘Foi a gordofobia que me adoeceu’: preconceito afasta pessoas gordas do acesso à saúde
Comentários ofensivos e “diagnósticos” guiados pela aparência são constantes nos relatos de cearenses
‘Como pode, uma menina tão nova e tão gorda?’ A frase-tapa foi dada por uma médica na advogada Carolina Azin, 27, durante um atendimento ginecológico em Fortaleza. Foi um dos inúmeros episódios de gordofobia que já sofreu no ainda curto tempo de vida.
O termo é usado para definir o preconceito contra pessoas gordas, situações que afetam a vida social, afetiva e até profissional. Quando ocorre em ambientes de “cuidado”, porém, os efeitos são agravados: afastam as pessoas do acesso pleno à saúde.
Como pessoa gorda, mulher gorda, é muito difícil a gente ter até coragem de procurar um médico pra resolver algum problema de saúde. Porque não é o problema de saúde que ‘chega’ primeiro, e sim o fato de ser gorda.
Flora Mota, médica generalista, explica que “a gordofobia se apresenta na relação médico-paciente a partir do momento em que o profissional pressupõe que todas as demandas são decorrentes do sobrepeso, antes mesmo de escutar as queixas e examinar o paciente”.
“Ou mesmo quando ocorre o desdém pelo corpo do outro, com comentários agressivos e desnecessários. Assim, o profissional acaba negligenciando o paciente, sem fazer o devido acolhimento e a investigação clínica”, acrescenta Flora.
O papel do profissional é acolher, e não julgar. Entender que a obesidade é uma questão de saúde multifatorial, conversar com o paciente, entender o contexto dele, acolher os sofrimentos e demandas e fazer as devidas orientações de forma individualizada.
‘A gordofobia me adoeceu’
Carolina relata que sofreu situações gordofóbicas não só em consultas de rotina, mas quando teve Covid grave, em 2021, e precisou ser entubada.
“Falaram que eu precisava emagrecer, trataram como se a causa do meu estado de saúde não fosse Covid, mas por eu ser gorda. Me ofereceram bariátrica como se oferece um bombom”, ilustra a advogada.
Apesar dos constrangimentos, a jovem afirma que a Covid “a obrigou” a se aproximar da própria saúde, já que ainda lida com sequelas e precisa de acompanhamento constante.
Antes disso, após o episódio da ginecologista, simplesmente ignorei minha saúde. E aí, sim, fiquei doente. Foi a gordofobia que me adoeceu, me impediu de cuidar de mim.
A médica Flora Mota reforça que “com certeza a gordofobia afasta o paciente da assistência à saúde”, uma vez que “o medo de ser desrespeitado, negligenciado e não ter acessibilidade faz com que evitem ao máximo procurar assistência”.
A cada 10 brasileiros, 6 afirmam já ter sofrido gordofobia em consulta médica, segundo pesquisa da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso). O estudo entrevistou 3,6 mil pessoas, das quais 75% tinham diagnóstico nutricional de obesidade.
Os relatos de constrangimentos por preconceito com os corpos gordos aumentam conforme a faixa de IMC (índice de massa corpórea): 98% dos entrevistados com obesidade grau III dizem já ter sofrido gordofobia.
Flora ressalta que “a obesidade é questão de saúde multifatorial, engloba questões sociais, econômicas e culturais”, e frisa que “a gordofobia acontece quando você associa a imagem não só de doença, mas de incapacidade, sujeira e falha ao corpo gordo”.
“E quando se pressupõe que aquela pessoa com corpo gordo não se cuida, tem hábitos ruins, sem nem conhecê-la. Além das questões de acessos e direitos negados, que cada vez mais vêm sendo pauta na mídia”, adiciona.
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Obesidade x doença
A obesidade é considerada pela OMS como doença crônica, sendo incluída na Classificação Internacional de Doenças (CID). Porém, alguns pesquisadores e profissionais de saúde apontam que essa nomenclatura estigmatiza.
A nutricionista Pabyle Flauzino explica que a obesidade passou a ser considerada doença “justamente para que as pessoas gordas fossem tratadas com dignidade, tivessem acesso a mais direitos, e não é isso o que acontece”.
Existe uma violência e uma gordofobia ao olhar pra uma pessoa gorda e assumir que ela é doente. Esse é o problema. A pessoa pode ter um diagnóstico de obesidade, mas isso não quer dizer que ela precise ser rotulada como doente.
A profissional critica ainda a sub-nomenclatura utilizada para quem tem obesidade grau III – a “mórbida”. “É muito violento você dizer que alguém está próximo da morte. Isso faz com que pessoas abandonem os tratamentos”, lamenta.
A nutricionista observa que recebe relatos diários de pessoas que vão a consultas médicas e são maltratadas por serem gordas, o que gera um paradoxo: “você é um profissional de saúde que se preocupa por obesidade ser uma doença, mas quando alguém procura atendimento, você violenta”.
Para Pabyle, é necessária uma mudança de comportamento, de modo que se entenda: os corpos são diversos. “Para muitas pessoas, a perda de peso não é possível. É preciso demonstrar que o tratamento para a obesidade não é tornar as pessoas magras, mas sim saudáveis.”
O profissional precisa atender a pessoa gorda da mesma forma que uma pessoa magra. Como se faz isso? Ouvindo, escutando a demanda, não assumindo que já sabe de tudo o que o paciente precisa ou já passou na vida.
Gordofobia como crime
A advogada Carolina Azin defende que, para início dessa mudança, a gordofobia seja reconhecida como crime enquadrado na lei do racismo, assim como ocorreu com a homotransfobia, em 2019.
“É uma militância necessária, que ainda se tem muito a percorrer. Debater esse tema nas escolas, nas faculdades da área de saúde e jurídica, comunicação. Conversar e entender quais direitos estão sendo negados”, propõe.
“Nossa locomoção é impedida no ônibus, nos supermercados. Uma pessoa vem a óbito porque não tinha uma maca no hospital. O que é isso senão é impedir acesso a direitos básicos? Há que se se entender que direitos estão sendo negados”, finaliza.