Sobrado Dr. José Lourenço reabre as portas com mostra que exalta a presença de mulheres na arte

Reunindo trabalhos de 14 artistas cearenses, exposição “Rarefeito” é lançada neste sábado (28), com visitação até 16 de outubro

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: A fotógrafa Delfina Rocha é uma das integrantes da mostra, com a obra "Dez Noventa"
Foto: Divulgação

Não mais o silêncio dos corredores e a ausência de atravessamentos. Ao Sobrado Dr. José Lourenço é reservado, a partir deste sábado (28), uma experiência de recuperação da vida. Às 10h, o equipamento gerido pela Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE) reabre as portas para receber o público após mais de um ano de atividades presenciais suspensas devido à pandemia de Covid-19.

A retomada acontece por meio do lançamento da exposição “Rarefeito”, cuja visitação fica aberta entre 28 de agosto e 16 de outubro. Gratuita e primando pelo cumprimento de todos os protocolos em combate à propagação viral, a mostra elege o vigor do trabalho de mulheres na arte como mola propulsora para uma série de reflexões acerca desse lugar ocupado e potencializado por elas.

Assumindo a curadoria do projeto – formado por iniciativas de 14 artistas cearenses – está Waléria Américo. Segundo ela, a exposição nasce de intensas conversas, sobretudo em prol da relevância de unir, no mesmo espaço e tempo, algumas obras de artistas mulheres. O intuito, com isso, é chancelar a relevância dos ofícios de cada uma num contexto em que, por muitas vezes, elas continuam sendo invisibilizadas diante da sociedade.

Legenda: A artista multidisciplinar e educadora Maria Macêdo também está com trabalho exposto em "Rarefeito"
Foto: Divulgação

O princípio é seguido à risca desde o título da mostra. “O nome ‘Rarefeito’ vem de uma provocação ao pensarmos em duas situações. Primeiro, sobre esse nosso tempo presente, com essa falta de ar no ambiente da saúde pública e no ambiente político. Depois – ao considerarmos a temática que a gente trabalha, a respeito de mulheres na arte – temos que vislumbrar quem são essas mulheres, como foram seus processos de legitimação ou porquê não há a memória do nome de outras delas nos diversos acervos de arte”, explica a curadora.

Waléria, assim, partiu dessa primeira imagem de rarefação para ir buscando artistas de diferentes vistas que integrassem o projeto. “Vislumbrei algumas que são importantes para a gente falar e comecei a traçar um trajeto que aponta para essas 14 mulheres, mas que poderiam apontar para muitas mais”, considera.

“A curadoria é um recorte, um momento, então não significa que na exposição estarão todas as mulheres artistas do Ceará, uma vez que elas são inúmeras. Mas, dentro desse percurso que eu tenho e da inserção no sentido de acompanhar alguns trabalhos, de ver alguns processos e ações que eu pontuo como importantes, olho para duas artistas que são referências na construção de imagens: a fotopintora Telma Saraiva (1928-2015) e a videoartista e pesquisadora Letícia Parente (1930-1991)”.

Ambas, na visão de Américo, agiram como âncoras para que se pudesse pensar em outras camadas e criar um diálogo com as jovens artistas de seu conhecimento, unindo a produção de cada uma a partir de uma conversa entre elas. Não à toa, “Rarefeito” tem como princípio propor um diálogo a partir de questões imagéticas.

Pluralidade

Do bordado à fotografia, passando pelo vídeo e a instalação, são múltiplas as linguagens que oportunizarão ao público o mergulho em distintas poéticas e discursos. No caso da artista Sy Gomes, por exemplo, entra em cena o trabalho “O que aprendi com elas”, fruto de uma pesquisa maior intitulada “Travestis são como plantas”. 

No espaço do Sobrado, a instalação preparada pela também historiadora – nascida no município do Eusébio, mas residindo em Fortaleza –  é composta por uma estufa, na qual, de acordo com ela, é possível estudar diversos elementos performativos, principalmente no que diz respeito a encarar a terra como geradora de vida.

“Também os sons que são possíveis de serem encontrados num processo de mergulho em uma estufa, numa ação performativa realizada em um ambiente como esse. O trabalho nasce desse contexto de tentativa de aprendizado com as plantas, com a vida vegetal, mas também da tentativa de criação de um novo ser, de um ser que não é conhecido, que não é humano, que nasce novamente dessa terra".
Sy Gomes
Artista visual, historiadora e pesquisadora

É como se eu fizesse o processo evolutivo novamente, utilizando os elementos mais fortes que trouxeram a vida para a Terra – a água, o som, a terra e a energia –  responsáveis por produzir a primeira bactéria, com vistas a criar esse novo ser”, completa.

Sendo assim, os principais elementos da obra são: sons constantes, produzidos na garganta e, por isso mesmo, chamados “sons guturais” – forma possível de a artista se comunicar com a vida vegetal; e uma estufa, do tipo utilizado em jardinagem, instalada sobre 60kg de areia. Nesse acúmulo de terra, estão plantadas sementes de feijão crioulo (tipo de feijão não geneticamente modificado), que brotarão ao longo da exposição, mediante o ato de regá-las.

Legenda: Travesti negra com atuação na música, performance, instalação, entre outros segmentos, Sy Gomes faz parte da exposição com o trabalho "O que aprendi com elas"
Foto: Thais Mesquita

No posto de uma travesti negra com um esmerado trabalho envolvendo música, performance, instalação, criação ritualística, produção cultural e musical, design e paisagismo, Sy Gomes afirma achar interessante o fato de a mostra ser um projeto que realça o que as participantes produzem, muito mais do que, por si só, considerar apenas o fato de serem mulheres. 

“Comentei com a curadora da exposição, Waléria Américo, que queria participar principalmente porque eu sou uma travesti, me identifico assim. Então, a mulheridade passa a ser questionada também pela minha obra. Acredito que o gênero é muito importante de ser também instituído ali. Eu estarei ali e sou uma travesti, o que torna muito relevante que ela tenha me chamado para que eu faça uma obra tão significativa, que fale sobre a vida trans e travesti, de mulheres trans e homens trans, de pessoas não-binárias. Um trabalho que fala sobre a vida brotando numa situação em que nós vivemos constantemente com o medo da morte, com o genocídio e com o receio de ser agredida, por exemplo”, situa.

Conexões

Antes da abertura oficial da mostra ao público, acontecerá uma breve cerimônia para artistas, com falas institucionais e a apresentação de performances de Sy Gomes e Thaís de Campos espalhadas entre as salas do Sobrado. O momento, restrito apenas a essas pessoas, poderá ser acompanhado ao vivo, às 10h, pelo instagram do equipamento. Na sequência, o espaço cultural abrirá suas portas a todas e a todos.

Sy explica que, na performance que conduzirá, vai adentrar na estufa integrante de sua instalação. A estrutura passará, então, a suar com a respiração da artista e com as moléculas de água que já estarão espalhadas dentro dela. Com isso, o público se aproximará do conceito geral da mostra, primando por reflexões sobre o rarefeito – mesclando uma ideia de ar, mas também de espalhamento.

“Trago igualmente para essa performance essa imagem das gotículas caindo no plástico, do abafado, talvez mesmo da estufa, dessa respiração. É esse o tom do trabalho, e o conceito principal é de uma travesti que, dentro dessa realidade, cultiva e pode trazer vida, apesar da vida que não dão para ela”, considera.

Legenda: Pintura sobre tela do coletivo Terroristas del Amor, formado em 2018 pelas cearenses Dhiovana Barroso e Marissa Noana
Foto: Divulgação

“Acredito que a exposição vai trazer um novo respirar para o centro da cidade, principalmente com as obras instalativas grandes. Espero muito que a reabertura traga a reflexão principal que é: deem oportunidades para as artistas se expressarem. Nos chamem, paguem nosso cachê, coloquem dinheiro na nossa mão – principalmente na de artistas negras, do interior, travestis, que não estão na cena. Que são chamadas para essas exposições, mas que muitas vezes não têm o mesmo privilégio de ter uma exposição individual como alguns artistas facilmente têm aqui na cidade – por serem ricos, brancos, homens e tal. Que a mostra  realmente promova essas reflexões”.
Sy Gomes
Artista visual, historiadora e pesquisadora

O sentimento também atravessa o olhar de Delfina Rocha. A fotógrafa integra a exposição com a obra “Dez Noventa”, nascida a partir de questões que, nos últimos tempos, estavam ocupando a realidade da artista, a exemplo de memória afetiva, pertencimento e ausência. Para ela,  unir e valorizar o trabalho artístico de tantas  mulheres incríveis dentro do espaço da mostra é muito significativo. 

Ainda hoje existe uma predominância masculina no mundo da arte. O que fazemos, então, é abrir espaço para o feminino e mostrar a que viemos”, diz. Frisando a obediência a todos os protocolos de segurança durante a visitação, Delfina também considera que nada se iguala à experiência de conferir as obras ao vivo, percebendo as texturas e ambiências, como aquelas encontradas na obra que apresentará.

Legenda: Recorte da obra "Dez Noventa", da fotógrafa Delfina Rocha
Foto: Delfina Rocha

“Eu já vinha desenvolvendo uma pesquisa nesse campo da memória afetiva, do pertencimento e da ausência quando o acaso me levou de volta à casa onde passei grande parte da minha infância e adolescência. O imóvel tinha sido vendido há 38 anos pela nossa família e no final do ano passado ele estava para alugar”, detalha.

“Fiquei super tocada e compelida em entrar na casa de novo. Reencontrar esse lar e recolher fragmentos da minha memória foi um reconectar-me com meus primeiros espaços de abrigo, refúgio e sonhos. A partir de fotos realizadas recentemente da casa associadas com fotos do meu álbum de família, feitas em 1972 – algumas delas feitas por mim, com minha primeira câmera – construí dípticos, criando uma narrativa onde o tempo e o espaço, o passado e o presente, se confundem”.
Delfina Rocha
Fotógrafa

Um passeio, assim, pelos cantos da própria memória, mas que também deve levar o público a se conectar com as lembranças que igualmente carrega.

Diversidade e acessibilidade

Diretora do Sobrado Dr. José Lourenço, Germana Vitoriano afirma sentir um misto de expectativa e satisfação pelo fato de o equipamento proporcionar à cidade uma  programação cultural gratuita, diversa e acessível. “Uma das marcas do Sobrado é seu caráter acolhedor e, nesse momento, a equipe está mais do que imbuída pelo compromisso de ter um cuidado mútuo e com seu público, adotando todas as medidas de segurança sanitária”, assegura.

Na visão da gestora, a temática em torno da construção da noção de mulher e a reconfiguração do campo simbólico do feminino é uma pauta emergente da contemporaneidade. Nesse sentido, a exposição “Rarefeito” apresenta uma potente narrativa, estabelecendo instigantes diálogos entre artistas mulheres de diferentes gerações.

Legenda: Trabalho de Thaís de Campos, realizadora audiovisual, artista visual e musicista experimental
Foto: Divulgação

Ao mesmo tempo, Germana também avalia como foi passar tanto tempo com as portas do equipamento fechadas em virtude do cenário pandêmico. “Muito desafiador, e nos levou a reinventar nossas práticas. Conduzimos para as redes sociais nossa programação e desenvolvemos novos conteúdos, alcançando novos públicos. Isso é muito gratificante. Agora, além de exposições, teremos residência artística e ações artísticas e culturais de múltiplas linguagens”, prospecta.

A proposta de continuação dos trabalhos no local é reiterada por Waléria Américo, que torce para que mais exposições feito a que vai ser lançada agora possam vir à tona. “Isso para que venham à superfície outras artistas que a gente às vezes não conhece ou não lembra, uma vez que temos uma multiplicidade delas no nosso contexto de Fortaleza, Ceará, Nordeste e Brasil”, sublinha.

“Sabemos que o processo de legitimação da arte tem a ver com esse espaço de construção. Então, quanto mais a gente entra nas instituições e mostra o nosso trabalho, mais também vamos criando esse lugar que a obra oportuniza, do diálogo. Temos, assim, que fazer com que a obra não apenas seja vista, mas conversada. Por outro lado, não é sobre demarcar um território, mas perceber como algumas reflexões sempre estiveram presentes e, em especial, reforçando o que essas artistas estão dizendo e como elas estão trazendo as questões que lhes são caras para os trabalhos. Cada artista é um mundo no sentido de que cada uma vai trazer um pedaço de vida muito importante, com coisas interessantes para serem discutidas, tanto nesse espaço de obras de arte quanto no ambiente de vida, social, político e poético”.
Waléria Américo
Curadora

 

Serviço
Exposição “Rarefeito”
Lançamento neste sábado (28), das 10h30 às 13h, no Sobrado Dr. José Lourenço (Rua Major Facundo, 154, Centro). Gratuita e aberta ao público. Visitação de 28 de agosto a 16 de outubro, de terça a sexta-feira, das 9h às 16h (acesso até às 15h30) e sábado, das 9h às 13h (acesso até às 12h30). Uso obrigatório de máscara e respeito aos protocolos sanitários. Mais informações pelo perfil do equipamento no instagram

> Saiba os nomes de todas as artistas participantes da mostra

Adriana Botelho, Cinira D´Alva, Delfina Rocha, Inês Roland, Letícia Parente, Maria Macedo, Marina de Botas, Naiana Magalhães, Simone Barreto, Sy Gomes, Terroristas Del Amor (Dhiovana Barroso e Marissa Noana), Tetê de Alencar e Thaís de Campos.

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