Por que amamos odiar as vilãs das novelas? Vote na sua favorita

Essenciais nas tramas, elas ocupam um importante espaço nos 70 anos da telenovela no Brasil; especialistas situam reflexos na audiência

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br

Não é o caso de detestar Maria do Carmo, Nina, Ruth ou Maria Clara Diniz. Mas Nazaré Tedesco, Carminha, Raquel e Laura Prudente da Costa seguem como as personagens mais queridas e lembradas pelo público de “Senhora do Destino”, “Avenida Brasil”, “Mulheres de Areia” e “Celebridade”, respectivamente – para citar apenas algumas telenovelas brasileiras.

Vilãs de carteirinha, elas ocupam o imaginário popular com frases icônicas, atitudes duvidosas e um deboche inveterado, protagonizando alguns dos melhores momentos e cenas da Televisão. A audiência passa ao largo de reprovar o caráter degenerado dessas figuras. A bem da verdade, é o questionável comportamento delas que fascina e atrai milhões de espectadores, ansiosos para saber a próxima tramoia.

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O que explica, então, esse amor tão grande que as vilãs provocam nas pessoas? Nos 70 anos da telenovela no Brasil, completados neste mês de dezembro, Sandra Helena de Souza analisa a questão. Professora aposentada do curso de Filosofia da Universidade de Fortaleza – além de membro do movimento Democracia Participativa e noveleira – ela situa que as histórias, de modo geral, só existem devido aos vilões.

Eles podem ser diversos, desde obstáculos naturais e entidades ocultas até propriamente pessoas de carne e osso. Estas últimas começaram a aparecer nas narrativas com o surgimento da Tragédia, por volta de 534 a.C – gênero no qual há personagens que se opõem à trajetória do herói. “Eles, de alguma maneira, querem que o herói não tenha sucesso, que fique encrencado, morra ou perca o que tem. É assim o núcleo básico de uma narrativa trágica ou cômica”, explica Sandra Helena.

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No caso das histórias trágicas, o herói tenta, mas não consegue o objetivo final, diferentemente do que ocorre nas tramas cômicas. Independentemente do formato, se não houver empecilhos no decorrer do enredo, não existe nada para contar, os acontecimentos não avançam, o que reforça o caráter fundamental dos vilões.

Falando-se das telenovelas, a estudiosa contextualiza o fato de elas espelharem uma espécie de maniqueísmo entre mocinhas e vilãs, sendo as primeiras totalmente boas e as segundas completamente más.

“As novelas brasileiras beberam numa fonte que incrivelmente continua jorrando a mesma água. E isso é bacana, principalmente por termos acesso às novelas mexicanas que, hoje, são praticamente cópias fidedignas das novelas antigas – fonte de gente como Janete Clair (1925-1983), no Brasil, para falar de uma das autoras mais famosas”.

Adoradas porque humanas

Dentro desse contexto, além de toda a liberdade e humanidade que exibem, o sucesso das vilãs se dá pelo fato de também proporcionarem ao público o desejo de acompanhar se a mocinha escapará ou não das armadilhas. Caso a heroína seja ingênua demais, por exemplo, a antagonista reina. Há casos mais complexos, porém.

Nesse ponto, Sandra Helena de Souza cita o fenômeno “Avenida Brasil”, de João Emanuel Carneiro. “Essa novela foi um novo divisor de águas na História das telenovelas no Brasil. A mocinha vira vilã, a vilã vira mocinha, e você tem uma complexidade humana, algo que faz um enorme sucesso. Isso quer dizer que aquela matização bem clara e demarcada entre as personagens rivais – a totalmente boa e a totalmente má – não se sustenta mais”.

O momento, assim, é de cada vez maior evolução no modo de contar histórias, um feito sinalizado já há algum tempo. Outro folhetim assinado por João Emanoel Carneiro, “A Favorita”, brincou com o público até a metade de sua exibição, quando não sabíamos quem era a vilã e quem era a mocinha da trama.

“Às vezes não vemos, por parte do autor, nenhuma preocupação de contextualizar por que aquela vilã é tão má, capaz de tanta crueldade. Como as novelas brasileiras foram dando um salto de qualidade enorme do ponto de vista da narrativa e da complexificação dos seus tipos, fomos nos distanciando aos poucos dessa matização, desse mata-borrão claro/escuro, da vilã toda má e da mocinha toda boa – embora isso, em alguns horários, ainda continue”, detalha.

Segundo Sandra, novelas recentes e novos autores – sobretudo mulheres – têm conseguido apresentar uma maior problematização psicológica do tipo da vilã. Para a pesquisadora, essas personagens de pouco escrúpulo são o verdadeiro motivo para que gostemos tanto de novelas – não apenas pelas atitudes que elas tomam, mas por, efetivamente, serem mulheres.

Assim, duas outras novelas divisoras de água na visão dela foram “Dancin Days” e “Vale Tudo”, ambas fortemente marcadas pelo feminino. “O fato é que a mulher conta mais história. Uma história só de homens é como um filme de ação ou faroeste. Só quando uma mulher entra na trama há a desorganização do planejamento masculino. Sem mulher não existe história, essa é a verdade”.

Espelho da realidade

Elegendo Odete Roitman como a vilã favorita – para Sandra Helena, ela é a “mãe das vilãs”, uma vez ser a mais crível de estar entre nós, sobretudo em falas classistas, racistas e homofóbicas – a pesquisadora sublinha que o gancho de toda narrativa é o do vilão.

A compreensão, inclusive, ultrapassa os estudos dela e se repercute frontalmente em toda a sociedade. Valendo-se da paixão do público por essas figuras, o canal Viva lançou em 2019 a série “As vilãs que amamos”, com depoimentos de várias atrizes sobre o processo de interpretar algumas das maiores personagens da televisão nacional.

Na lista, Glória Pires, Adriana Esteves, Cláudia Abreu, Renata Sorrah, Suzana Vieira, Lílian Cabral, entre outras. Pires, no depoimento, levanta uma questão pertinente. De acordo com ela, “a mudança cultural que a gente passou permitiu às pessoas gostarem das vilãs, porque ninguém ousava dizer que gostava de uma vilã”.

Sandra Helena de Souza endossa a opinião ao considerar que as telenovelas não são mero entretenimento. “Elas espelham, recebem e devolvem alguma coisa importante da realidade social. Se não fosse assim, não seriam feitas. Logo, uma questão como a primavera feminista – ocorrida sobretudo a partir de 2013 – tinha que ser recepcionada pelas novelas. Onde houver uma boa novela sendo contada, haverá uma disputa interessante entre mulheres, algo que pode se tornar mais caricatural ou mais matizado, como as que ocorrem na vida real”.

Sedutora imagem

O professor e psicólogo clínico Hugo Moraes segue na mão desse pensamento. Conforme analisa, as vilãs das telenovelas possuem uma imagem sedutora, abrindo janela para que nelas sejam vislumbradas tudo o que a vida banal não possibilita.

“Desnudar a mocinha é tirar esse peso dos ombros de ser bela, recatada e do lar (patriarcal). A novela brasileira representa, para muitas mulheres, uma forma de resistir através do romance. E viver o romance significa vivê-lo como um todo, em seu amor-ódio”, destaca Moraes.

Tal relação é muito poderosa pois detém a força de conectar as pessoas a algo que é intrínseco a elas, embora elas nem saibam que exista. Logo, o fascínio pelo papel da jararaca – a exemplo de como alguns tipificam as antagonistas – nada mais é que o espelhamento de um padrão geral de comportamento que a própria pessoa tem e não possui noção de como operá-lo em um determinado tempo/espaço.

Em termos psicológicos, Hugo Moraes diz que o fenômeno retrata o fato de que existia ali uma intensidade de energia que não encontrava vazão. “Mas quando o telespectador ingênuo projeta sua própria luz ou sombra em uma estrela que se encontra ‘à sua frente’ – tomando a interpretação de Adriana Esteves como Carminha, por exemplo – toda aquela vida não vivida sai e ganha espaço sob o holofote”, percebe.

“Só que, nesse caso, como costuma ser tratado apenas como mero entretenimento e não como arte, sai mais como uma espécie de fofoca. Catalisar e canalizar esses potenciais dormentes é uma experiência catártica, ou seja, promove um despertar de uma ‘rigidez emocional’”.

Ponderando sobre o peso das características e atitudes das vilãs na audiência, de como esses traços chegam até às salas de casa, o psicólogo – cuja maior lembrança das novelas se conecta às excentricidades de Nazaré Tedesco – diz que a diferença reside não necessariamente sobre o que aparece, mas como aquilo se apresenta para o público.

“Tudo depende da interpretação pessoal – como cada um percebe e assimila aquela carga emocional. As novelas, o drama e a tragédia em muito podem nos servir, no sentido de educar por meio de uma cultura popular. Podem ajudar a situar e habituar onde se está, e o que pode vir no caminho à frente. Não à toa, algumas dessas impressões televisivas são tão fortes que continuam a se expressar na boca do povo por um bom tempo”.

Amplo alcance

No que diz respeito ao aporte cultural, as telenovelas podem ser explicadas por meio de um conceito psicológico denominado “complexo cultural”. A premissa compreende a existência de temas gerais inerentes a qualquer ser humano, bem como ligados a histórias de vida específicas. A cultura, portanto, seria uma ponte entre a experiência coletiva e a individual.

Caso contrário, não existiria sentido as telenovelas brasileiras serem um fenômeno nacional e estarem completando a grande marca de 70 anos de aniversário no País. Algumas são tão estruturantes para a cultura popular que ganham novas exibições ou são ponto de partida para outras tramas. Apenas mudam a aparência – muito embora continuem cativando os corações de novas gerações por meio do significado psicológico que possuem.

“Em suma, o brasileiro parece sentir prazer em sair do real, em se preencher de fortes emoções e viver vicariamente a vida do outro projetado à sua frente. Para alguns, talvez esse processo possa até trazer luz sobre uma dificuldade própria e implicar que, por meio do paralelo da novela, passe a escolher melhor se ou como faz isso ou aquilo. O reflexo da TV deixa nesse momento de ser narcísico e se torna quase como uma ferramenta, um norte”, conclui Hugo Moraes.