Poeta de 93 anos radicada no Ceará tem texto selecionado em série nacional: ‘Um sonho'

É a primeira vez que um poema de Maria Amélia Cavalcante Freire será publicado; ela ainda quer trazer a público dois livros

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: “Sempre foi um sonho publicar. Só posso ter ficado radiante com a notícia", festejou a poeta ao saber da novidade
Foto: Arquivo pessoal

“Aquilo que era amor a conversar./ E era alma na pena a escrever/ Uma mais uma, o fogo a alimentar/ As cartas todas e o seu retrato enfim”. Foi com um poema escrito em 1957 sobre o término de um namoro de meia década que Maria Amélia Cavalcante Freire ganhou reconhecimento no concurso Seleção Poesia Brasileira, Poetize 2022.

Intitulada “Cinzas”, a criação da poeta radicada no Ceará figura entre os 20 textos classificados pelo projeto, de um total de 2.217 inscrições realizadas em todo o Brasil. As produções serão publicadas na edição comemorativa de 12 anos da série “Novos Poetas” após um período de quatro meses de envio dos escritos, entre agosto e dezembro deste ano.

Prontamente posicionada para a entrevista por telefone, Maria Amélia conta do outro lado da linha sobre a emoção. “Sempre foi um sonho publicar. Só posso ter ficado radiante com a notícia. Eu já tenho uns 100 poemas escritos e 60 textos em prosa”, adianta a artista de 93 anos de idade, com o desejo de ver em breve todas essas linhas disponíveis ao público. 

Legenda: As mãozinhas enrugadas de Maria Amélia só registram aquilo que ocupa o coração de modo mais forte: a natureza, a vida e os acontecimentos
Foto: Arquivo pessoal

A relação dela com a poesia é viva, pulsante e a qualquer momento, iniciada desde 1950. Tudo a inspira, mas nem tudo passa para o papel. As mãos enrugadas pelo tempo só registram aquilo que ocupa o coração de modo mais forte, a saber: a natureza, a vida e os acontecimentos. “Sempre gostei de ler. Lembro que minha mãe era fã de Casimiro de Abreu (1839-1860) e passou-me também algumas poesias”, conta.

De lá para cá, embora não se julgue poeta, continuou amando e acompanhando as tessituras em versos. Maria Amélia recebeu estímulo ainda no ensino primário, na escola, tendo aulas todos os sábados dedicadas à literatura. “Os elementos para ser poeta? Sentir, dar sentido à vida e ao Criador. É assim que a gente se alimenta de poesia”, sentencia.

“Na minha juventude, eu sempre tinha papel e lápis ao lado da cama. E então aproveitava a inspiração. Hoje, escrevo geralmente quando vou me deitar para dormir ou quando perco o sono de madrugada – esse é um momento muito bom para a criação. Escrevo à mão”.
Maria Amélia Cavalcante Freire
Poeta

Transmitir conhecimentos

Natural de Nova Friburgo, município do Estado do Rio de Janeiro, Maria Amélia Cavalcante chegou ao Ceará com apenas cinco anos de idade, no final da seca que assolou o lugar em 1932. Ela desembarcou no Passeio Público, em Fortaleza, após vários dias de viagem pelo mar, e ficou assustada com o que viu aqui. “A coisa mais triste foi presenciar crianças ao lado da Santa Casa de Misericórdia quase que em grutas equipadas com lençóis. Estavam morrendo, as mães chorando, uma tristeza”, recorda, com pesar.

Talvez esse primeiro impacto com a crueldade da vida fez-lhe canalizar ações em benefício dos menos favorecidos e dos injustiçados mediante um contato bastante próximo com eles. No período do regime militar brasileiro, por exemplo, ela fez parte do grupo Juventude Operária Católica (JOC), publicando artigos em diversos jornais a respeito das péssimas condições dos trabalhadores.

Legenda: Hoje, a poeta escreve geralmente quando vai dormir ou quando perde o sono de madrugada; os textos são registrados à mão
Foto: Arquivo pessoal

Também integrou a UNE (União Nacional dos Estudantes) secção Nordeste, debatendo em reuniões que, por vezes, terminavam às cinco horas da manhã. Segundo ela, todo tempo era tempo para discutir pontos que envolviam a situação de milhares de pessoas. “Era muito bom, a gente tratava dos acontecimentos... Era uma vida, era viver”, brada.

“Na época da ditadura foi muito difícil por conta de todas essas reuniões. Nos encontrávamos nas calçadas e ficávamos conversando. Quando víamos alguma coisa suspeita, cada um ia para um lado e esperava o outro dia pra continuar”.
Maria Amélia Cavalcante Freire
Poeta

Com a mesma vontade de transpor barreiras e inspirar pela entrega ao outro, atualmente a poeta é catequista de Primeira Eucaristia na Paróquia Nossa Senhora da Glória, localizada no bairro Cidade dos Funcionários. O serviço é realizado com uma das filhas, a fisioterapeuta Cristina Freire, e envolve 35 crianças.

“Minha mãe é um ser de luz. Todos que se aproximam dela ficam encantados com tanto amor e doçura. Um exemplo de mulher, mãe, esposa e avó”, situa Cristina, enumerando os seis filhos, 11 netos e um bisneto de dona Maria Amélia. “Ela não parece ter a idade que tem por tanta espiritualidade e leveza com as quais vai levando os 93 anos de idade. Estou sempre aproveitando tudo de bom que ela tem a ensinar”.

Legenda: Com vontade de transpor barreiras, atualmente a poeta é catequista de Primeira Eucaristia na Paróquia Nossa Senhora da Glória, localizada no bairro Cidade dos Funcionários
Foto: Arquivo pessoal

Desbravar os mundos

Tantos saberes acumulados porque alimentados pela própria família. Filha única, Maria Amélia teve um pai autodidata e uma mãe muito atenta aos estudos. Logo, foi fácil seguir a mesma trilha de dedicação com os quais realiza cada atividade que se propõe a fazer.

Ela cursou Direito na Universidade Federal do Ceará, fez Teologia, aprendeu italiano pela Casa de Cultura e foi professora. Também ocupou os palcos durante muitos anos, iniciando no teatro aos nove. Ser atriz, vale destacar, lhe reservou algumas das experiências mais bonitas da vida. 

Legenda: “Enquanto eu tiver lucidez, sei que jamais perderei o amor pela arte porque ela faz parte da minha vida", vibra Maria Amélia
Foto: Arquivo pessoal

Já casada – embora hoje seja viúva – participou da fundação do grupo Glória e Arte, no mesmo bairro onde reside. Em 2021, a companhia soma 22 anos de atuação. “É muito bom expor o que se sente. A minha relação com a arte sempre foi muito interessante”, festeja. 

“Uma coisa que eu gosto muito é de viajar. Desse Brasil, de Belém ao Rio Grande do Sul, não conheço apenas Sergipe, Alagoas, Santa Catarina e Paraná. Eu tinha o sonho de conhecer Brasília, por conta da poesia que eu fiz na inauguração da cidade. E isso já aconteceu, graças a Deus. Foi ótimo!”.
Maria Amélia Cavalcante Freire
Poeta

Igualmente, trafegou por outras paisagens queridas, a exemplo de alguns países da Europa; a Terra Santa, em território árabe; e o Santuário de Nossa Senhora de Guadalupe, no México. Em cada um desses solos, a poesia vai a tiracolo, renovando tudo.

“Enquanto eu tiver lucidez, sei que jamais perderei o amor pela arte porque ela faz parte da minha vida. E vou continuar a transmitir tudo aquilo que eu sinto, penso e o que eu acho bom e belo. O meu maior sonho, no momento, é saúde para todo mundo. Que ela reine. Depois, quero publicar meus dois livros, que estão a caminho”. É quando, enfim, esticará o tempo das coisas singelas entre ainda mais olhares.

 

> Leia, na íntegra, o poema "Cinzas", de autoria de Maria Amélia Cavalcante Freire

Cinzas

É sentir como da alma o arrebatar nosso querido ente
Ver consumir-se e em chama arder
Aquilo que era amor a conversar.
E era alma na pena a escrever
Uma mais uma, o fogo a alimentar
As cartas todas e o seu retrato enfim.
Toda a esperança de que foi outrora
A poesia e o doce verbo amar
Em negras cinzas reduzir-se agora.
Somente Deus fará ressuscitar
E dará vida, é certa a essas cinzas
Que em silêncio falam.
Somente Deus fará ressuscitar
Da morte à vida que essa cinzas calam.

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