Pandemia reacende necessidade da disponibilização de recursos acessíveis em eventos culturais

Durante esse período, produtores e equipamentos culturais passaram a investir ainda mais em recursos de acessibilidade, a exemplo de interpretação em Libras em eventos virtuais para ampliar o acesso

Escrito por Lívia Carvalho , livia.carvalho@svm.com.br
Legenda: A Aponte Libras trabalha oferecendo serviço de interpretação de Libras em eventos
Foto: Divulgação

Tão logo a pandemia do novo coronavírus começou, diversos artistas encontraram nas lives uma forma de manter o entretenimento no período, muitas delas, inclusive, colocaram à tona um debate que por anos permeia o âmbito da cultura: a acessibilidade, destacando uma janela para interpretação da Linguagem Brasileira de Sinais (Libras). 

No São João do Ceará Solidário Dendi Casa, por exemplo, edição especial que aconteceu no ambiente virtual, o Sistema Verdes Mares incluiu a transmissão da interpretação em Libras durante programas que somaram 24 horas em quatro domingos de junho. 

Legenda: A programação do São João do Ceará Dendi Casa contou com janela de Libras
Foto: Reprodução

Além das atrações musicais, cada vez mais equipamentos implementam recursos para ampliar o acesso. O Cineteatro São Luiz é um exemplo. Além da interpretação de Libras, disponibiliza legendas, em cumprimento à Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. A legislação estabelece que o Estado deve garantir a efetivação dos direitos à cultura. Conforme José Alves Netto, coordenador geral do espaço, essa perspectiva já vem sendo adotada há bastante tempo no equipamento. 

“Trabalhamos tanto no sentido mais amplo, no que envolve o acesso à cultura e numa perspectiva estrutural também. Há uma demanda reprimida de acolher espetáculos acessíveis e no São Luiz sempre tivemos esta preocupação. Não só com as apresentações, mas também com o artista”, explica Netto. 

Já durante a pandemia, o coordenador conta que, na montagem das programações virtuais, a equipe prioriza produções com acessibilidade. Algumas dessas atrações chegaram pelo edital Cultura Dendicasa, da Secretaria da Cultura do Ceará (Secult) e pela convocatória ‘Arte em Rede’. Netto adianta ainda que o próximo passo é disponibilizar uma janela de Libras na visita guiada que acontece mensalmente e, durante a pandemia, é realizada em formato virtual. A atração já conta com textos e imagens. Para aplicar o recurso, há uma parceria com o Grupo de Trabalho de Acessibilidade da Secult. 

“É um compromisso da gestão trabalhar a acessibilidade, estamos mês a mês buscando possibilidades de programação acessível. É um desejo do São Luiz ampliar esse acesso, mas também sei que está na questão de abraçar outros públicos, como o público idoso e o infantil”. 

Para Netto, o período requer ainda mais essa preocupação. “Neste momento de pandemia, é fundamental que o setor da cultura esteja ligado nessas questões. Se para muitos já há a privação do acesso à cultura por falta de recursos, como um computador ou celular, imagina para as pessoas com deficiência. Se não tem a oferta, as coisas pioram ainda mais, pois é uma forma de exclusão”, diz. 

A programação virtual do Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ), gerido pelo Instituto Dragão do Mar (IDM), também disponibiliza recursos. Com o financiamento do Fundo de Combate à Pobreza (FECOP), foi possível a contratação dos serviços de intérpretes em Libras. Ações pontuais já eram realizadas antes da pandemia, mas como iniciativa dos próprios artistas. 

Para a Gerente da Ação Cultural CCBJ, Lili Aragão, a inclusão social é um desafio em um País onde a educação inclusiva se encontra em construção: “Por essa razão, faz-se necessário ofertar a Libras nas programações, contemplando a comunidade surda, convidando esse público para a fruição das nossas atividades artísticas e, acima de tudo, promovendo uma Cultura de acessibilidade”. 

Planejamento 

Assim como no São Luiz e CCBJ, no Sesc Ceará há um trabalho de bastidores para ampliar o acesso. A programação de teatro online do projeto Dramaturgia Encena conta com tradução simultânea de Libras. O supervisor de Cultura, Cleudivan Noronha, explica que o espaço já disponibilizava, por exemplo, a audiodescrição em algumas atrações. “Antes da pandemia, estávamos planejando implementar um plano de acessibilidade cultural. O plano já foi aprovado, então estamos fazendo toda a aquisição de equipamentos necessários. Queremos viabilizar contações de histórias, mediações acessíveis e oficinas para esse público”, detalha o supervisor. 

Legenda: O projeto Dramaturgia Encena do Sesc Ceará também disponibiliza recurso de interpretação
Foto: Divulgação

Além disso, o plano prevê a capacitação dos funcionários do espaço. A ideia é que todos que recebam os espectadores tenham formação em Libras para direcionar o público de forma correta. 

“A gente tem trabalhado fortemente a acessibilidade principalmente dentro da cultura, hoje temos um núcleo para trabalhar com pessoas com deficiências em um núcleo de lazer. Nesse processo em que estamos na quarentena, temos tido uma procura muito forte de programação virtual, não podemos excluir nenhum tipo de público. A internet não pode ser uma barreira, ela precisa ser mecanismo de difusão”, pontua Cleudivan. 

Aumento na pandemia

A demanda de produtores culturais buscando aplicar recursos de acessibilidade durante a pandemia cresceu tanto que fez um grupo de intérpretes de Fortaleza abrir uma empresa para formalizar o serviço. Trabalhando na área há mais de 10 anos, Graziele Gomes conta que tudo começou após conhecer e ter contato com pessoas com deficiência auditiva ao lado do intérprete Roberto Júnior. 

“O nosso trabalho começou como um projeto social, sempre tivemos vontade de levar informações para pessoas surdas, mas a gente queria que o profissional passasse essa informação, nós apenas disponibilizamos a janela de libras. O projeto continua nas segundas e quintas à noite. Então, começamos a expandir e a trabalhar com outros eventos”, explica. 

Além de atuar com a interpretação, Graziele atua na formação de novos profissionais e afirma sempre ter tido essa necessidade da ampliação do acesso. “Notamos que há um interesse maior hoje, os produtores de eventos estão vendo que precisa. Muitos profissionais que a gente entra em contato falam que não tinham parado para pensar que o que produzem não é acessível”. 

Embora o debate tenha ganhado mais fôlego, a intérprete ainda não consegue visualizar a concretização desse fenômeno em eventos presenciais.

“Acredito que deva mudar alguma coisa, mas não sei se vão lembrar desse trabalho e encarar como prioridade. É importante lembrar que não se deve esperar que as pessoas com deficiência solicitem esse acesso, é preciso garantir e disponibilizar. Essas pessoas também consomem, trabalham, têm dinheiro, precisam de entretenimento”, salienta Graziele. 

Amplitude 

Esse discurso é reiterado pela artista Jéssica Teixeira que no final de agosto lançou o documentário “Pudesse ser apenas um enigma” com interpretação de Libras e audiodescrição. A produção resgata as pesquisas e vivências dela, que é uma pessoa com deficiência, sobre o corpo reunidas para o espetáculo E.L.A. 

“Eu vivi muito tempo na exclusão. Quando eu coloco isso nas minhas obras, quando estou atenta, não quero que o conteúdo chegue simplesmente a quem tem deficiência visual ou qualquer outra, eu quero que chegue a todo mundo”, argumenta. 

De acordo com Jéssica, todos esses recursos fazem parte da construção do roteiro e são aplicados nas performances de forma natural. “Eu lido com a cultura surda, cultura cega da forma como não lidaram comigo. Eu penso na acessibilidade nesse território da exclusão, eu penso mais como uma artista, como uma construção de linguagem, isso pensando numa construção pra todos. Como eu amplio os sentidos dessa imagem, até mesmo pra quem enxerga”, diz. 

Para Jéssica, o ambiente virtual tem uma grande aliada, a tecnologia, que facilita a disponibilização de recursos como esses. Contudo, é preciso que haja um estudo para compreender não só a acessibilidade, mas aquilo que está sendo colocado. “A construção dessa linguagem, mesmo com tantas limitações, precisa ser um território de descoberta”.

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