O que faz a Família Real britânica e a princesa Diana um hit da indústria cultural?
O longa “Spencer” chegou aos cinemas brasileiros no último dia 27, colocando o clã novamente em evidência; pesquisador e espectadores situam alcance
Previsto para estrear no ano passado, o filme “Spencer” chegou aos cinemas brasileiros na última quinta-feira (27) com mais uma leitura sobre acontecimentos envolvendo a Família Real britânica. Desta vez, o foco é a princesa Diana (1961-1997), interpretada pela atriz Kristen Stewart. Em resumo, a película narra o que poderia ter acontecido nos últimos dias do casamento de Lady Di com o príncipe Charles.
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O projeto se soma a outros, incontáveis, a respeito do clã inglês – na lista, é possível incluir séries como “The Crown” e “Secrets of Great British Castles”, além de filmes como “A Rainha”, “O Discurso do Rei” e “Elizabeth - A Idade do Ouro”. Toda essa preponderância temática alavanca uma reflexão importante: o que faz com que a Família Real britânica e a princesa Diana, de forma específica, sejam um hit da indústria cultural?
Para responder à questão, Larissa Pacheco, 29, recorre a uma cena da já citada “The Crown”, quando a princesa Margareth posa para fotos oficiais de aniversário. Em determinado momento, a dama de companhia sugere que os registros deveriam refletir mais a realidade.
“Daí o fotógrafo diz que ninguém quer ver a realidade, que a Família Real está no lugar do imaginário, da beleza, do deslumbre. Que o comum é visto todos os dias na TV, nos jornais, por isso eles representam algo maior, quase divino, sabe? É algo que, mesmo que a gente saiba que não tem muita chance de alcançar, ainda assim pode sonhar em ter”, situa a estudante.
Aficionada por esse universo, a cearense já conferiu diversas produções nas quais a realeza é protagonista: documentários e longas ficcionais sobre a princesa Diana, bem como a respeito de Príncipe William e Kate Middleton – Larissa assistiu ao vivo ao casamento deles, e também do Príncipe Harry com Meghan Markle; obras sobre as joias da coroa e o reinado da Rainha Elizabeth, além de toda a vastidão de filmes.
“E, claro, sou viciada em ‘The Crown’, é minha série preferida. Sempre que tem algum documentário ou filme sobre o assunto, eu assisto, por isso não lembro de todos”, confessa, entre risos. “Acho que é pelo imaginário, a ilusão que se cria. Parece realmente um conto de fadas, mas ainda assim é ‘palpável’. Quem não passa em frente ao palácio quando visita Londres, por exemplo?”.
Não à toa, ela acredita que, mesmo num futuro distante, toda essa influência não perderá força. Pacheco percebe uma reinvenção da família de acordo com cada época, embora mantendo tradições a fim de, segundo ela, prosseguir com o “véu” do encanto. “Fora que o povo adora fofoca, eu pelo menos amo. Então, você nunca sabe se o que é dito sobre eles é verdade ou mentira, o que torna tudo mais legal”.
Traços de um olimpiano
Professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará, Rafael Rodrigues analisa o tema sob a luz das teorias da Comunicação. De acordo com ele, algumas discussões levantadas hoje remetem a um período no qual a Família Real se torna um objeto midiático propriamente dito. É quando, por exemplo, os eventos do clã passam a ser televisionados – sendo o casamento da princesa Diana com o príncipe Charles um dos mais emblemáticos.
“Logo, é bem significativo que a Família Real britânica esteja ocupando esse espaço privilegiado. Na história da indústria cultural, ela é um tema recorrente, sempre despertando muito interesse, e isso se deve a alguns fatores. O primeiro deles é o fato de que essa família é feita de olimpianos, ou seja, de indivíduos que têm sua cota de divindade e de mortalidade ao mesmo tempo”, explica.
O conceito, criado pelo teórico francês Edgar Morin, remete exatamente a alguém que possui falhas, dramas e vulnerabilidades de pessoas comuns – o que otimiza que nos identifiquemos, em certa medida – ao mesmo tempo que vive existências próximas do divino, quase irreais. Neste último ponto, sobram detalhes pertinentes à Família Real: a extensa camada de rituais, a quantidade de serviçais, a vida nos palácios, as disputas, títulos de nobreza, entre outros.
Todos esses elementos, conforme Rafael, fazem com que as monarquias sejam encaradas com muito fascínio. “É um processo de transferência, no qual o sujeito que está assistindo à série ou ao filme, ou que está acompanhando notícias sobre a Família Real, transfere para esse núcleo um pouco dos próprios desejos e sonhos”.
Isso explica o porquê de esse mundo particular ser bastante propício para a representação ficcional – uma vez que, nos meandros do conto de fadas, as coisas também dão errado. Entre eles, há intrigas, inveja, amor, lealdade, elementos perfeitos para uma boa narrativa de ficção.
“Imagino que esse novo filme, ‘Spencer’, traga tudo isso de forma ampliada, uma vez que a princesa Diana está no centro dos acontecimentos. Ela é a personagem dos sonhos de qualquer roteirista. A garota comum, mas muito bonita, que vai se tornar parte da Família Real, não sem antes enfrentar rejeição, desconfiança, polêmicas… Tudo isso faz com que a narrativa dessa família – desde os anos 1980, a partir do casamento de Diana com Charles, e muito antes disso – se torne um objeto de grande interesse”.
A questão da nostalgia
Outro ponto relevante no debate diz respeito à nostalgia, essa busca por algo que já não nos pertence mais. Rafael Rodrigues observa o sentimento no grande bombardeio de estímulos midiáticos contemporâneos, abarcando as múltiplas experiências de obras ficcionais. Para ele, a nostalgia dos dias atuais é uma nostalgia consumida.
“Esse é um termo utilizado por Gary Cross, professor de História Moderna, exatamente para dizer que consumimos itens culturais responsáveis por ajudar a formar um quebra-cabeça da nossa identidade. Ela é muito dependente desses signos – filmes, livros, músicas e séries – e, nesse processo, a nostalgia pode ter uma importância”.
Quem não acha charmoso, por exemplo, quando alguém diz: “Eu gosto dessas séries ou desses filmes porque são sobre uma época específica”? Esse ponto também está inteiramente ligado a uma cultura de nichos que as plataformas de streaming têm ajudado a consolidar, juntamente a outras tantas formas de consumo cultural.
Ou seja: diante de um cardápio gigantesco de produções, acompanhar aquelas sobre a Família Real britânica ajuda a demarcar um espaço de consumo responsável por tornar cada indivíduo uma espécie de unidade em si, no que diz respeito a essa forma de apreciação.
“Reviver a princesa Diana nessas produções como forma de fazer jus à memória dela, entender melhor quem ela foi, é um tipo de nostalgia consumida que se debruça sobre o passado buscando preencher uma carência que talvez o presente não esteja mais conseguindo suprir. Esse é outro fator que eu acho que explica esse sucesso, esse fascínio da Família Real”, diz Rafael.
Há ainda uma terceira chave interpretativa: o próprio funcionamento da indústria cultural, num equilíbrio entre o novo e velho, entre o passado e o presente. Nesse sentido, Morin mais uma vez contribui com a discussão ao afirmar que a indústria cultural se equilibra entre o que ele chama de estandardização – tendência de repetir temas, formatos e fórmulas bem-sucedidas – e a novidade, ou seja, a transgressão, o novo assunto.
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É por meio da dinâmica que esse universo se recicla e se retroalimenta, almejando manter a relevância. No caso da Família Real britânica, o tema não é necessariamente novo, atravessando várias épocas de reinados. Ao mesmo tempo, quando realizadores trazem um olhar diferenciado sobre o tema, o movimento é capaz de gerar grande fascínio – uma vez que a referenciada família já tem base de fãs consolidada.
“As pessoas já conhecem a Família Real, então estão dispostas a ver a obra que chega com a promessa de que vai trazer algo novo. A indústria cultural joga muito com essas expectativas e com a quebra de expectativas também”, sublinha o pesquisador.
Alimentar a curiosidade
Talyson Bandeira, 29, integra a parcela do público fiel às obras sobre o tema. Feito Larissa Pacheco, o engenheiro civil já assistiu a diversas criações nesse segmento, destacando “The Crown” como aquela que melhor entrega a experiência de contato com os bastidores da monarquia inglesa.
“Acho muito curioso ainda existir reis, rainhas e famílias reais em um mundo tão avançado em termos de governos democráticos. Também gosto de aprender sobre os verdadeiros papéis dessas pessoas nos diferentes contextos políticos do país, além da percepção dos ‘plebeus’ sobre isso tudo”, contextualiza.
Esse movimento acalorado de projetos contemplando a temática tem humanizado a Família Real, na visão dele. É quando as pessoas percebem que eles são pessoas também, com erros, sofrimentos e dores. “Acredito que assim a monarquia perde aquela mitologia de ter como membros os escolhidos de Deus para reger os demais. A relevância dessa dinâmica e o fato de ela se manter tão constante e consumida se dá por isso”.
O engenheiro ainda destaca que muito do magnetismo do clã se deve ao mistério gerado em torno deles. Não sem motivo, todas as produções são, basicamente, baseadas em fofocas e especulações. “Tudo que envolve os membros da Família Real acontece de forma meio que velada, guardada a sete chaves. Me parece que a família escolhe contar uma versão dos fatos e a mídia, outra. Essa curiosidade é o que os mantém na boca do povo”, observa Talyson.
“Apesar de tantas polêmicas, eles estão conseguindo manter uma estrutura política que nos leva a crer que será para sempre. Tenho para mim que ainda vão ser notícia por muito tempo”.
O nosso gosto por “fuxico”, em acompanhar uma boa intriga palaciana, é outro motivo que, na ótica de Rafael Rodrigues, explica a penetração da Família Real britânica entre nós. Também vivenciamos problemas comuns, mas as questões deles são mais chiques, talvez.
“Nosso interesse está muito na chave da indiscrição. Queremos olhar para dentro da janela do palácio da Família Real e ver que nem tudo está dando certo. Ou olhar para as coisas que estão saindo do controle porque isso acaba nos amparando um pouco. Nos consola saber que eles também têm problemas”.
Perspectiva eurocêntrica
Nosso comportamento social frente à temática também pode ser compreendido pelo eurocentrismo. A Família Real britânica é ocidental, branca, anglo-saxã, do hemisfério norte. Logo, de acordo com Rafael, temos muito a desconstruir sobre o nosso fascínio por tudo que vem desse meio.
“Eles estão cercados desses símbolos de pujança, glamour e compostura – pelo menos é a tentativa que se faz. E hoje tem muito de Marketing. O esforço que emana da Família Real é de se vender como exemplo, como uma referência de vida digna, de uma família que funciona harmoniosamente – com seus casamentos, rituais e idas às casas de campo”.
No fim das contas, todo esse modelo apresentado é eurocêntrico e heteronormativo, tendo na perpetuação dos filhos a mola principal para garantir a continuidade da linhagem. Isso nos diz sobre as referências que escolhemos adotar enquanto sociedade, levando em conta padrões de beleza, comportamento e influência.
Falando em Marketing, como ele e a Comunicação agem de modo a fazer com que a realeza continue a estampar manchetes em jornais e portais de notícias do mundo todo? Tomando como base que a Família Real britânica se tornou uma marca ao longo do século XX, Rafael Rodrigues percebe que o núcleo consegue se inserir em debates mais ou menos contemporâneos até hoje, gerando interesse e alcance.
Recentemente, por exemplo, o príncipe Harry e a esposa, Meghan Markle, se posicionaram sobre a questão da desinformação no Spotify. Tomando o mesmo casal como referência, o próprio casamento deles mobilizou discussões a respeito da questão racial, tendo em vista a origem pessoal e até profissional de Megan.
“Eu diria que o poder mobilizador da Família Real é grande porque não é só a imprensa de celebridades que fica fofocando. Não é só fofoca que se faz sobre eles. Alguns debates são mais sérios, como esse que mencionamos aqui, de cunho sociológico. Eles falam um pouco sobre os costumes e o comportamento social, e a Família Real consegue verbalizar, se inserir nesses debates de algum modo”.
Nesse sentido, o funcionamento do jornalismo também não pode ser desconsiderado. Diante da lógica de métricas, da informação buscável na internet, esse campo busca publicar notícias cujas manchetes tragam alguma referência a pessoas proeminentes. Para além de uma questão de noticiabilidade, é uma tentativa de o segmento jornalístico se tornar rastreável. Lido.
Para Rafael, uma manchete com o príncipe Harry possivelmente será mais buscada do que outra com a opinião de uma pessoa menos proeminente. “A arquitetura da informação jornalística – principalmente na rotina de notícias mais rápidas – também vai conspirar a favor de um privilégio aos integrantes da Família Real".
Ainda continuaremos querendo saber deles?
Por fim, o professor especula se a Família Real continuará despertando os olhos da audiência com o passar dos anos. Diante do que observa, enquanto a indústria cultural continuar funcionando nos moldes citados – buscando o equilíbrio entre a tradição e a novidade, o sagrado e o profano – e enquanto a sociedade ainda se interessar por personagens do eixo eurocêntrico de poder, o clã seguirá relevante, sim.
Por outro lado, Rafael percebe que, cada vez mais, estamos querendo contar outras histórias. “Talvez as narrativas da monarquia britânica hoje dividam espaço com histórias brasileiras e de outros países do mundo, algo otimizado pelo movimento das plataformas de streaming. Assim, já percebemos um interesse por narrativas de outras origens, com outras caras e outros tipos de estética também”.
Esse, inclusive, é um risco que a indústria cultural anglo-saxã (hollywoodiana/britânica) corre: nossos olhares estão se deslocando para um universo maior de referências. Mesmo assim, segundo ele, tal fenômeno está apenas começando a se desenrolar. “Portanto, acho que por bastante tempo ainda a Família Real vai despertar olhares e ganhar as capas das revistas e manchetes dos sites, continuando a gerar interesse”, conclui.