O que acontece com o cérebro quando acompanhamos histórias de terror? Genética ajuda a explicar

Narrativas de gelar a espinha são contadas pela humanidade há séculos e geram múltiplos efeitos em quem as confere

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Cena do filme "O Iluminado" (1980), de Stanley Kubrick: efeitos na tela e para além dela
Foto: Divulgação

Então é Halloween. E não importa se na infância, juventude ou idade adulta, em algum momento da vida passaremos uma noite inteira sem dormir com medo de um personagem horripilante da ficção ou da realidade.  Acontece que não apenas a mente, mas também o corpo, entram num estado de hiperatividade noradrenérgica – relacionado à ativação do neurotransmissor noradrenalina –, estimulando diretamente o sistema nervoso autônomo simpático. Isso nos deixa mais alertas, concentrados e preparados para a ação.

Legenda: Cena do filme "Nosferatu" (1922), dirigido por F. W. Murnau
Foto: Divulgação

“Algumas pessoas são naturalmente predispostas a sentir atração por histórias de terror. Pode haver componentes hereditários, acompanhados de alterações localizadas nos sistemas neuronais responsáveis pela capacidade de empatizar e de sentir medo”, explica o psicólogo clínico Jefferson Pessôa Ramos, graduado pela Universidade Federal do Ceará e mestrando em Teoria e Pesquisa do Comportamento pela Universidade Federal do Pará.

Segundo ele, modificações na ativação dos córtex pré-frontal motor ou das áreas subcorticais, como a amígdala, o hipotálamo ou o hipocampo, estão envolvidas na formação do medo, além da mediação da já citada noradrenalina – que, entre outras coisas, também é responsável por regular nosso humor, sono e memória.
 
Na época em que os seres humanos viviam como caçadores-coletores em um ambiente muito mais hostil, o desenvolvimento da capacidade de sentir medo foi essencial para nossa sobrevivência. Entretanto, o ato de generalizar o sentimento para situações anteriormente neutras – quando, por exemplo, associamos estímulos perigosos reais com objetos externos ou mesmo internos que não apresentam perigo real – pode se tornar problemática.

“Isso geralmente acontece quando começamos a generalizar o sentimento de pavor para situações, eventos, pessoas ou objetos inofensivos. Nesses casos, na maioria das vezes, desenvolvemos as mais variadas fobias: social, de palhaço, sapos etc”, enumera. Jefferson.

Legenda: Cena do filme "O Chamado" (2003), de Gore Verbinski
Foto: Divulgação

Nesse processo, o corpo produz uma série de reações, tanto afetivas quanto físicas. Ainda que o indivíduo porventura não manifeste visivelmente o estado interior de medo, é muito comum sentirmos falta de ar, taquicardia, náuseas, “frio na barriga”, tensões ou câimbras, além de sensações de sufocamento, hiperventilação ou pensamentos acelerados e negativos.

Tais efeitos mobilizam o organismo em uma escala de medo que varia com o tempo, levando em consideração a situação estressora. O termômetro evolui desde preparar o corpo em si até, de fato, coordenar comportamentos de luta ou fuga.

Sentir o terror

E será que histórias de terror podem ser acompanhadas por todas as pessoas de forma saudável, sem sequelas ou traumas emocionais? Jefferson Pessôa destaca que essa é uma questão difícil de responder, haja vista que qualquer perspectiva referente a se pessoa X ou Y pode fazer ou experimentar determinada coisa deve passar por uma análise muito individual.

Entretanto, há um dado na literatura científica que aponta que crianças menores tendem a ter mais medo de objetos e relações simbólicas, abstratas e, por isso, mais implícitas. Por outro lado, crianças mais velhas teriam mais medo de estímulos concretos e mais realistas, especialmente em filmes de terror. “Talvez essa seja uma informação importante de se levar em conta quando estivermos pensando em uma idade adequada para expor nossas crianças a conteúdos passíveis de serem compreendidos e processados por elas”, pondera o estudioso.

Há outras várias pesquisas no ramo, mirando em diferentes contextos. Um dos estudos sublinha que a vontade em acompanhar histórias de terror não é só uma escolha pessoal, mas resultado da química cerebral. 

Legenda: Cena do filme "A Bruxa" (2016), de Robert Eggers
Foto: Divulgação

Realizada por cientistas da Vanderbilt University (EUA), o levantamento mostra que um dos principais hormônios liberados durante atividades assustadoras é a dopamina, neurotransmissor do prazer. Contudo, alguns indivíduos têm mais dela pelo corpo do que outros. Isso significa que aqueles vão realmente curtir situações mais estressantes, se comparado a estes.

Por sua vez, um estudo realizado pelo Telecine Play em 2019 indicou o terror como gênero cinematográfico mais assistido pelos cearenses. De acordo com dados coletados em Fortaleza, um dos filmes mais vistos na plataforma de streaming à época foi “Um Lugar Silencioso”, de John Krasinski.

Jefferson Pessôa diz que a revisão mais recente dos estudos na área se concentra nos efeitos dos filmes de terror sobre as funções psicológicas. “Dentre os principais achados, tem-se que parece haver uma relação – pouco consistente, mas existente – entre a busca pela sensação de prazer e a preferência por filmes de terror, além da informação de que mulheres seriam mais sensíveis a sentir ansiedade e nojo no contexto dos filmes do que os homens”.

Outro levantamento recente, conduzido durante a pandemia de Covid-19, mostrou que a exposição a “experiências ficcionais assustadoras” – isto é, narrativas de horror, terror etc – parece exercer modificações nos principais sistemas cerebrais correlacionados com melhores estratégias de enfrentamento frente a situações perigosas reais. Isso porque essas experiências atuariam na mente humana como simulações de vivências de fato concretas, reunindo informações sobre acontecimentos possíveis.

“O medo é ao mesmo tempo uma emoção básica e complexa. Básica no sentido de ser uma emoção que vem conosco ‘de fábrica’ e, por isso, é universal. Complexa porque é caracterizada por um conjunto de padrões muito pessoais – isto é, cada pessoa manifesta o medo de uma forma muito específica de comportamento, pensamentos, impulsos, sensações e expressões corporais, e até respostas verbais”.
Jefferson Pessôa Ramos
Psicólogo clínico

“Nessas circunstâncias, entendemos o medo como uma emoção cuja função é aumentar nossa vigilância e preparação diante de sinais de potencial perigo, coordenando um conjunto de ações para resolver ou evitar a situação ou evento que esteja despertando esse sentimento”, contextualiza o psicólogo.

Escrever terror

Pensar as artimanhas do terror e a forma como ele chega ao público também é expediente do escritor e advogado natalense Márcio Benjamin. Desde a adolescência, ele desenvolve histórias nesse gênero, situando-o como um modo bastante livre, honesto e criativo de falar do cotidiano. “Isso é o que me chama a atenção. Eu sempre gostei de provocar as pessoas com temas espinhosos, e o terror foi o meu berço. Me sinto em casa. Escrever terror é expor as vísceras da realidade, mostrar que a perfeição também é feita de defeitos”, diz.

Autor de obras como “Maldito Sertão” (2012), “Fome” (2016) e “Agouro” (2019), Márcio considera que o principal componente na composição das cenas de modo a provocar medo na audiência é o convencimento de que o absurdo retratado pode ser, sim, real. No caso do autor potiguar, isso fica ainda mais evidente, uma vez que ele se utiliza de contos, casos e cenários da tradição nordestina para escrever os textos.

Legenda: O escritor natalense Márcio Benjamin é um dos mais importantes nomes do terror na literatura brasileira contemporânea
Foto: Davi Pinheiro

“É desvelar o sobrenatural de forma que o leitor seja levado pela mão, inicialmente sem pressa. Depois, narrar as sensações sem nominá-las. Não dizer que o personagem está com medo, mas descrever esse medo. Como é alguém com essa sensação, como o corpo reage? Esse é o grande desafio do terror, enganar as pessoas com fantasia e fazê-las embarcar, sem medo, junto com você. Mas que delícia de desafio é”, confessa, entre risos.

Para ele, o medo é feito uma mão de gelo que lhe agarra o coração subitamente. O mais interessante desse sentimento, conforme conta, é o fato de ele ultrapassar qualquer tipo de lógica e raciocínio. Por ser algo muito básico e animalesco do ser humano, também se configura como puro. “O medo nos une enquanto mortais. Pra mim, ele é a porta branca de Reagan, a menina possuída do Exorcista, e os gritos apavorantes do demônio Pazuzu chamando pelo padre Merrin”.

Legenda: “As narrativas de terror trazem especialmente a urgência de expressar o que anda por dentro da alma do autor", situa Márcio Benjamin
Foto: Divulgação

Logo, não importa se os efeitos especiais do cinema evoluíram, por exemplo, e muitas cenas outrora apavorantes hoje causam riso. Na visão de Márcio, elas são a essência do medo nas obras de arte, uma vez representarem a comprovação de que existe algo maior e mais malvado do qual não conseguimos fugir: a essência da nossa mortalidade.

“Creio que em todos os momentos de crise a fantasia cresce muito, seja para expurgar o sofrimento ou para virar nosso rosto da realidade. A pandemia e essa surreal situação política que vivemos nesse governo de pesadelo levou a um grande boom dos clássicos distópicos e também das narrativas de terror. As pessoas querem falar sobre isso, até mesmo para experimentar essa sensação da morte iminente e volta fortalecida, como acontece nas montanhas-russas ou trens- fantasmas”, observa.

“As narrativas de terror trazem especialmente a urgência de expressar o que anda por dentro da alma do autor. Esse tipo de literatura deve doer, incomodar, perturbar, assim como todo bom expurgo incomoda, dói, fede. Não adianta perfumar ou pentear: é uma parte de você da qual muitas vezes você se envergonha por não ser bonita, elegante. Mas a sua beleza está justamente em não se encaixar”.
Márcio Benjamin
Escritor e advogado

Nesse movimento, a pele do terror nordestino, matéria-prima criativa de Benjamin, é como a nossa: miscigenada, forte, rica, cheirosa, gostosa, cheia de tesão, impulsiva e com muita esperança. “Perfeita como só os nordestinos conseguem ser”, resume o escritor.

Filmar o terror

Igualmente integrante dessa seara de produção do terror local, o cineasta cearense Guto Parente situa que o medo e a tensão se manifestam quando uma relação de identificação ou empatia é construída entre o espectador e o personagem da tela em perigo. Esse talvez seja o primeiro e mais importante desafio do gênero, inclusive: propor ao espectador que ele se coloque no lugar do outro e viva o pesadelo dele como se fosse seu. 

Um exercício de alteridade que, dependendo do modo como for conduzido, pode ser também um gesto político. “Aliás, os melhores filmes de terror, na minha opinião, são os que possuem um viés político, criando metáforas com a realidade que fazem com que o público pense sobre sua condição no mundo”, avalia o realizador.

Diretor de filmes como “A misteriosa morte de pérola” (2014) e “Clube dos Canibais” (2019), os quais elegem o sombrio do mundo para instaurar novas narrativas sobre a vida e as pessoas, ele desde cedo passou a apreciar filmes de terror pela sensação que as películas provocam. Depois de algum tempo fazendo cinema, foi natural o interesse em filmar o gênero.

“Me interessam as vias de conexão que o cinema de gênero consegue estabelecer com o público. O espectador assiste a um filme de terror sabendo que vai sentir medo e desejando isso. É algo primitivo – só que dentro de um ambiente controlado e seguro, num pacto de fantasia, de experimentação de sentidos”.
Guto Parente
Cineasta

Viver o medo na fruição artística, de fato, é bem diferente de experimentá-lo na vida cotidiana. Por isso, talvez o terror que mais interessa o cineasta é o que afirma a dimensão fantástica da experiência, e não o que explora a realidade. “Um terror de estética fantástica é completamente diferente de um terror de estética realista. Prefiro quando um filme consegue evocar os pesadelos que vivemos quando sonhamos, não quando estamos acordados”, afirma.

Abrindo o leque para o consumo em massa, os filmes de terror sempre tiveram um espaço de importância no mercado cultural, só que talvez não tanto no mainstream quanto hoje, gerando receitas bilionárias. O gênero foi historicamente muito mais explorado em filmes B e, ao longo de muitas décadas, era tratado com desdém pela crítica. 

Legenda: Cartaz do filme "A misteriosa morte de Pérola", dirigido pelo cineasta cearense Guto Parente
Foto: Divulgação

De acordo com Pedro, “Hitchcock mesmo sempre sofreu para conseguir ter grandes estrelas nos seus elencos por conta desse estigma. De algumas décadas para cá, essa realidade foi mudando e o mercado tem compreendido cada vez mais o potencial do gênero. Não só financeiro, mas político e estético. Não à toa, acompanhamos recentemente um sucesso como ‘Corra!’ (2017), um filme que estabelece novos paradigmas ao gênero, um divisor de águas”.

Numa esfera mais particular, diante das tantas questões pavorosas que pautam o Brasil hoje, é possível prevermos qual será o tom das histórias de terror feitas no País daqui em diante? Guto espera que as produções sejam cada vez mais lúdicas e fantásticas, uma vez que o terror da realidade está demasiado insuportável para se entrar numa sala de cinema e sentir o sofrimento cotidiano expandido na tela. 

Legenda: O realizador Guto Parente: "Que o cinema de terror projete os pesadelos que sonhamos, não os que vivemos"
Foto: Divulgação

"Como falei antes, que o cinema de terror projete os pesadelos que sonhamos, não os que vivemos. Que as pontes estabelecidas com a realidade existam para provocar deslocamentos sensíveis e alteridade. Estamos vivendo uma crise de empatia e alteridade, e a arte tem um papel fundamental na transformação desse cenário. Não à toa, ela tem sido tão combatida pelo atual regime. Sejam filmes de terror, comédia, drama, documentário, o que for, todo gênero é um campo de ação estética e política".

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