Nova versão de 'Gêmeas – Mórbida Semelhança' ganha visão feminina e explora o horror corporal
Além de produtora da série, atriz Rachel Weisz exibe talento em dobro ao interpretar as protagonistas da série. Com seis episódios, a estreia da semana no Prime Video traz revisão moderna e feminista do cult dirigido em 1988 por David Cronenberg
Para falar da série que estreou fazendo barulho, é preciso dar crédito a quem o merece, no caso, David Cronenberg, cineasta canadense que tem em sua filmografia uma marca inconfundível. Seus filmes oferecem uma fusão do bizarro, do horror corporal e da subversão dos limites. É estranho, mas absolutamente fascinante.
Essa fonte que nos deu “A Mosca”, “Videodrome, “A Hora da Zona Morta” e os mais recentes “A Marca da Violência” e “Crimes do Futuro”, também gerou “Gêmeos - Mórbida Semelhança”, sucesso estrelado por Jeremy Irons, há 35 anos.
Aos 80 anos recém-completados, Cronenberg pôde acompanhar o remake de “Dead Ringers” (título original) agora em forma de (mini)série, com seis episódios, produzida pela Amazon Prime Video. A estreia repercutiu. E tem motivos para isso.
Comecemos por Rachel Weisz. É dela a missão de dar vida às gêmeas Beverly e Elliot Mantle. Ambas são médicas ginecologistas, obstetras aclamadas. Idênticas fisicamente, não poderiam ser mais distintas em personalidade, caráter e humor.
Beverly é livre, debochada, desenfreada. Faz e fala o que quer, quando quer e como quer. Abusa de bebidas, drogas, sexo. Fala com os homens como se fosse uma dominatrix. Ela é também o gênio que não encontra limites éticos em busca de soluções geneticamente duvidosas para acabar com a infertilidade feminina. Criar vida é o seu objetivo.
Elliot já é a versão oposta. Carinhosa e complacente, é tímida a ponto de precisar que a irmã se passe por ela para conquistar Genevieve (Britne Oldford), uma atriz por quem se apaixona. Aliás, trocar de lugar uma com a outra, é algo que fazem quando lhes convêm.
O que move Elliot é o desejo de mostrar ao mundo que mulheres merecem um olhar mais humano diante de suas angústias, dores e medos enquanto geram uma nova vida. Também quando tentam e não conseguem o filho biológico. Tem ainda o luto recorrente dos abortos.
Feminino e feminista
Na introdução da rotina médica, entram em cena partos normais em close, com fluídos e sangue para nos mostrar a realidade nua e crua. Parir não é um ato romantizado.
As cesarianas podem elevar o mal estar. Barrigas abertas, sangue jorrando, placenta à mostra e, enfim, bebês nada fofos. A vida como ela é.
A série é acima de tudo uma obra feminista que não se furta a mostrar o quanto o processo de parir é um ato extremado de doação e amor. Mas, e o bizarro, cadê o horror? Onde entram? Na verdade, eles entrelaçam cada capítulo da série. Mas de uma forma diferente, original.
Bizarro
Um momento que vale atenção é o jantar onde as gêmeas tentam convencer Rebecca Parker (Jennifer Ehle) uma milionária inescrupulosa e sua família igualmente ignóbil a validar e financiar o projeto das duas: um centro de parto desenvolvido para atender a cada mulher de forma personalizada.
Em contrapartida, Parker exige que abram um laboratório capaz de produzir fórmulas inovadoras para a manutenção da juventude feminina, o fim da menopausa, a fertilização infalível. Money, money, money.
No jantar, tudo é bizarro, incluindo o menu. Os dialógos são odientos e o cenário, opressor. Além de dinheiro, a conversa oscila entre assuntos como Trepanação (um antiga prática ritualística de furar o próprio crânio) ao opióide criado pela família e que desencadeou um crise sanitária com milhões de viciados no país. Money!
Segredos íntimos
Greta (Poppy Liu) é um dos personagens mais curiosos. A jovem está sempre linda e sempre pronta a servir como uma espécie de governanta das gêmeas. Ela é como um gato no aquário. Não se encaixa! A menos que já tenha fisgado algo. Ela guarda (literalmente) segredos íntimos demais das médicas.
E em meio a tantas personagens femininas, existe Tom (Michael Chernus) um cientista que é movido pelos comandos de Beverly. É a imagem da submissão e incapaz de dizer não aos assédios. Seja por medo, seja por admiração.
Juntos, eles trabalham em um projeto de reprodução humana nada ortodoxo. Um acerto do roteiro é trazer para esse momento, as polêmicas reais que fizeram o mundo se perguntar se já estamos assistindo, de fato, a “morte de Deus”, tamanha a ousadia da ciência em manipular a natureza e a geração da vida.
Simbiose e dualidade
É fato que há muito, a ciência busca respostas para a ligação simbiótica de alguns gêmeos. O que se sabe até hoje se mantém no campo das hipóteses. Nem por isso o inexplicável deixa de existir.
Entre Beverly e Elliot, as conquistas na área médica as unem, mas as divergências de conduta as separam tão drasticamente como uma cirurgia para desligar xipófagas.
Some-se a isso o amor de Elliot e Genevieve. A escolha por um outro tipo de preferida é o fator que desencadeia o caos no mundo de Beverly. Perder a “irmãzinha” para outra pessoa é como amputá-la. Desenha-se a tragédia.
Produção de peso
Passar de filme à minisssérie não deve ter sido tarefa fácil. Tanto que foi preciso unir um diretor (Sean Durkin) e três cineastas - Lauren Wolkstein, Karena Evans e Karyn Kusama - para conduzir as gravações. As mulheres também são maioria na produção executiva.
Alice Birch é a responsável pelo roteiro, originalmente baseado no romance “Twins” (que narra a história real de dois irmãos obstetras de vidas e mortes trágicas).
O enredo tem altos e baixos. Alguns flashbacks parecem deslocados e superficiais. Mas, no geral, a série se diferencia muito da “carrada” de títulos inexpressivos que enchem os streamings a cada semana.
Lançada no dia 21 deste mês, a série foi avaliada no Rotten Tomatoes com aprovação de 82% pela crítica. No IMDb, aparece com 6,2. Um feito e tanto se levarmos em conta o tema pouco popular. Ainda assim, tem espaço para mais sucesso. Há muitos “por quês” e as teorias vão rolar soltas nas redes sociais, blogs e sites, isso é certo.
Atuação digna
O elemento que converge na visão geral de público e crítica chama-se Rachel Weisz. A atriz que é mais lembrada por filmes como “A Múmia”, “Constantine” e “A Favorita” também é reconhecida na indústria cinematográfica como estrela de sucessso entre os de sua geração. Entre os inúmeros prêmios que ganhou, há um Oscar de Atriz Coadjunvante, por “O Jardineiro Fiel”.
Em “Gêmeas - Mórbida Semelhança”, a artista britânica, de 53 anos, deu um passo ainda mais ousado em sua carreira. Weisz, além de ser uma das produtoras executivas da série, brilha em cena como se fosse uma ilusionista tamanha a veracidade com que imprime personalidades distintas às gêmeas. Maneirismo, olhares e silêncios eloquentes são perturbadores.
Jeremy Irons - que interpretou os gêmeos no filme de Cronenberg - deve ter apreciado a versão feminina dos irmãos, como num espelho de duas faces.
Riqueza de detalhes
E por falar em espelho, o remake da Prime Video também acerta no design de produção e no figurino. Os cenários ajudam a manter o clima de opressão e angústia que cerca as protagonistas. Ora são grandiosos, mas frios. Ora são intimistas, porém sufocantes. O Centro de Partos é outro acerto. É futurista, mas não o suficiente para fugir de uma realidade plausível.
O que destoa, e de propósito, é o vermelho. A cor está em todos os lugares: no sangue em profusão, nas paredes, nos tapetes, nas obras de arte e, de forma bizarra, na paramentação das equipes que fazem os partos.
Sem dúvida uma ousadia para reforçar a composição cênica que foi mantida, como na obra original. A cor vibrante é pura dualidade semiótica.
Vermelho, assim como o sangue, símbolo da vida que corre em nossas veias, também pode ser encarado como representação do pecado, do mundano, do sensual.
Olhando um pouco além, as batas e os gorros carmim usados pelos médicos no remetem aos tradicionais mantos de cardeais católicos. Eles os usam quando recebem o título das mãos do Papa e se comprometem a ‘defender a fé até a morte, até o ponto de dar seu sangue’.
Há outras referências importantes na série. Algumas têm sintonia com fatos atuais. Uma delas faz menção ao uso de animais nas experiências genéticas focadas na reprodução humana. O suspense e o horror, na série, é mantido não com sustos, seres disformes ou tripas pelo chão. Ele é maior e mais interno. Vem de dentro para fora. É psicológico, é paupável e, em escala menos dramática, é real.
O terror está presente em nosso mundo de dependência emocional extrema, de busca incessante pela felicidade inalcançável (afinal, quem é feliz 24 horas por dia?), do sucesso a qualquer custo, de perdas e lutos que atormentam até não conseguirmos viver sem ansiolíticos, antidepressivos, doses de uísques ou profusão de amores líquidos.