Microfone aberto e músicas das antigas: Clube dos Gatos tem receita da alegria na noite de Fortaleza
Por mais de duas décadas, a confraria se reúne para soltar a voz e celebrar as alegrias da tradição boêmia. O repertório é especialmente “das antigas” e a credencial de participação é ter paixão por cantar a música brasileira
O violão sete cordas está afinado e o microfone no ponto. A cerveja tinindo risca o salão e as estrelas da noite se organizam na mesa principal. Maestro Ribamar Freire conta até três e os acordes invadem a noite de quinta-feira. A magia do Clube dos Gatos pede passagem mais uma vez.
E o repertório defendido pela turma é coisa rara, difícil de ouvir na maioria dos recintos de Fortaleza. Ilumina a "Era de Ouro da MPB" (ali no início dos anos 30 e final dos 50) e vai além com boleros, sambas-canção, serestas, baladas ... “É de Noel Rosa pra trás. E olhe que Noel morreu em 1937”, nos confessou um dos integrantes.
Não precisa ser profissional da voz, basta ter amor por cantar. Interessa celebrar amizade, música e poesia. Oficialmente, se uniram a partir do afeto a um amigo em comum. O local das reuniões pode ter mudado ao longo das décadas, mas tal qual a mística atribuída aos bichanos, o grupo também se vale das “sete vidas”. Quando um bar fecha, busca-se outro no horizonte.
Onde os integrantes estiverem reunidos, cantando e brindando, a confraria e sua memória irão persistir. E assim, gatos e gatas festejam 23 anos de miado e cantorias noturnas. Além de um elogio à vida, o Clube dos Gatos nos avisa o quão é importante a cultura como chave do bem viver. Se está com uma amiga, pai, mãe, filho ou outro familiar meio borocoxô, que tal conhecer o exemplo destes astutos felinos?
Quem canta, os males...
Hoje, o abrigo da confraria é o Cantinho do Frango. E a casa lhes reserva uma noite exclusiva em toda primeira quinta-feira do mês. Ao chegar no estabelecimento, a canção “De Cigarro em Cigarro” é uma das primeiras a circular na voz dos gatos. É quando falamos com o comandante, o “CAP” do Clube dos Gatos, o professor e ex-senador Flávio Torres.
“O ambiente é completamente democrático, no sentido de quem quiser cantar, canta. E não tem que cantar bem! Aqui não é campeonato de música, é pra pessoa que adora cantar. Um espaço para quem gosta, não necessariamente artistas”, descreve no cartão de visitas.
A turma realiza cota para o violonista, o bar não participa. O maestro é o único da noite a receber dinheiro e o Clube tem contrato com ele. Se der abaixo do valor, complementa-se. O que sobrar é dele. “Assim que funciona. Me dá o tom, quero cantar”, adianta o CAP.
Como toda organização, o Clube dos Gatos assume algumas ordens. A primeira, não ser um “ás do microfone”, já foi citada. Outra lei interna é, se fizer barulho durante as apresentações, terá que fazer silêncio aos gritos do comando “Fecha o Bar!”. Ah, e como o bom humor é regra, Flávio Torres ainda brinca: "Mônica Barroso é a única pessoa proibida de cantar, pois ela não canta um ‘parabéns pra você’ que preste”, se diverte.
A origem dos Gatos
Ouvimos a parte acusada e entendemos mais da querela. A 'arenga' é uma piada interna da dupla, que se diverte com essa "determinação" da entidade. Também integrante do chamado “núcleo duro” do Clube, a defensora pública Mônica Barroso resgata o surgimento desse rico encontro musical.
Tudo cresceu a partir de um amigo deveras querido da turma, este um personagem ícone da cultura e comunicação cearense, Guilherme Neto (1925-2014). Estrela da rádio PRE-9 nos anos 1940, o patrono do Clube dos Gatos liderou a equipe de implantação do primeiro canal televisivo em Fortaleza, a TV Ceará Canal 2.
Das inúmeras frentes criativas de seu legado foi crooner, jornalista, dramaturgo, editor, professor, cronista... Em 2000, Mônica viu Guilherme num bar, sozinho. Parou o carro e foi saber dele como andavam as coisas. O "Barão" explicou que semanalmente fazia fisioterapia ali por perto e na volta parava no Opção, estabelecimento que funcionava na Praça Luiza Távora.
Mônica relembra dos telefonemas entre amigos comuns. “Ei, o Guilherme tá bebendo sozinho na terça-feira”. A turma foi se chegado aos poucos e compartilhando da mesa. Certo dia um violão maroto apareceu e cultivou o movimento. Pelo intermédio do afeto a um amigo querido, os encontros começaram nas companhias de Mônica Barroso, Flávio Torres e do professor, ator e dramaturgo Ricardo Guilherme (sobrinho de Barão).
"Fomos nos unindo em função do Guilherme, que foi o grande patrono dessa ideia. Até que esse encontro se institucionalizou nas terças feiras, no antigo deck do Country Club, ali na Barão de Studart, onde ficamos quase 20 anos”, aponta a entrevistada.
Gatinhas e gatões
Hoje, Guilherme Neto é homenageado com foto na parede em frente à mesa da diretoria. O saudoso patrono abençoa as madrugadas recentes do Clube dos Gatos. Na estrada sonora até aqui, diversos felinos assinaram nome no livro de ponto do grupo. A lista é generosa e inclui intelectuais, professores, artistas, políticos, juristas, jornalistas. Boêmios de eras distintas,
Cláudio Pereira, Augusto Pontes, Newton Padilha, Rodger Rogério, Fausto Nilo, Ednardo, Ary Sherlock, Evaldo Gouveia, Augusto Borges, Didi Silveira, Mimi Rocha. Vale salientar e já me desculpando, muita gente ficou de fora aqui. Inicialmente, as sessões do Clube eram semanais. Manter esse ritmo era uma carga exigente para o grupo, situa Flávio Torres.
“São 23 anos. Toda semana cansa. Terça-feira era um dia ruim, afinal você já bebia no fim de semana. Tem o descanso do guerreiro, mas abrir logo na terça? Mudamos para quinta-feira. Mais perto do final da semana”. O que não mudou ao longo dessa estrada foi o prazer pela canção. E aqui, os sucessos musicais do passado ajudam a edificar um presente mais leve.
O Clube dos Gatos é contemporâneo a outras iniciativas que buscaram preservar essa memória. Uma tradição que inclui grupos da cidade como "Clube do Talento", "Art-Musical", "Sexta Seresteira", "Sem Alarde", "Amantes da Boa Música", "Clube do Chorinho", "Nelson é Nelson", e "Chorinho no Mercado".
É onde se pode reviver cantores e compositores do quilate de Francisco Alves, Orlando Silva, Sílvio Caldas, Pixinguinha, Herivelto Martins, Ataulfo Alves, Noel Rosa, Lupicínio Rodrigues, Augusto Calheiros, Cândido das Neves, entre muitos outros.
"Homenageamos a música e a poesia. Esse é o nosso objetivo. É um elo que liga todos nós, uma coisa que sentimos meio desaparecendo entre os jovens. Nossos filhos de vez em quando aparecem por aqui, também gostam de música, falam de poesia, mas fico muito preocupada quando não vejo mais isso lá fora. Porque eu tenho pensando que sem música e sem poesia não há solução", desabafa Mônica Barroso.
Faça o seu clube
A quinta-feira vai sendo tomada por visitantes de primeira hora e habituês do Clube. A festa acompanha o vai e vem dos garçons, entre eles o Tiesco, velho conhecido do grupo musical. Defender um tipo de música que pouco circula entre as rádios de hoje é uma forma também de assegurar um espaço de diversão e convivência para quem passou da casa dos 60 anos.
Quem adentra essa reflexão é o professor, músico, escritor e luthier Paulo de Tarso Pardal. Naquela noite, ele acompanhava o violão com um pandeiro cheio de ritmo. "A música tem sua própria dinâmica, formatação, onde ela vai se moldando aos tempos. Determinados estilos e gêneros ficam, pois se elastecem mais com o tempo. Mas, essa música que cultivamos aqui, de seresta, de boleros, desse gênero que ganhou o ouvido e atenção do público há 50 anos não tem mais espaço", adverte.
Ter acesso ao Clube dos Gatos modificou para melhor o humor do professor Fernando Peixoto. Durante muitos anos, o integrante lecionou direito no Crato. Quando voltou à Fortaleza natal, notou certa ausência de um lugar onde pudesse ouvir clássicos de outras eras e aliviar o processo de readaptação à cidade.
“Retornava sem saber para onde ir, para eu desaguar as minhas mágoas ou aquilo que estava na minha consciência. Em algum canto que eu pudesse articular, conversar, ouvir boa música. Foi aí que alguém me disse: 'Há um lugar, lá no Country Club...”. Desde aquela bendita sugestão, tudo mudou. "Me inseri e vi que aquilo ali era um oásis para aquela caminhada que estava sendo dificultosa", revela.
A advogada Ana Lourdes conheceu o Gatos por intermédio de Augusto Pontes (1935-2009). A entrevista acontece minutos após ela cantar “Malandro”. "Sempre tiver reverência por esse cancioneiro popular. Era o que eu procurava cantar. Fazemos esse esforço feliz de cantar coisa boa. Nos reunindo, como disse Augusto Pontes para 'molhar a palavra'", assevera.
Visitar o Clube dos Gatos é testemunhar uma celebração à vida. Ultrapassando essa característica peculiar, a alegria irradiada pelos felinos há 23 anos é um aviso primoroso. Nada de ficar em casa emburrado, remoendo o que passou. É Levantar, sacodir a poeira e dar a volta por cima. Um recado sem igual sobre a arte de reunir amigos e brindar os bons momentos.
"Você que não chegou aos 60, se incorpore. Faça disso também uma prática. Venha para cá ouvir e saber que 'música é essa?'", finaliza e manda o recado Mônica Barroso.
A série de matérias Conversa de Bar, publicada quinzenalmente, conta histórias da capital cearense pelas mesas da boemia