Kawaii e o culto à fofura: conceito japonês dita tendências e pode ser resposta a tempos sombrios
Encarado como resgate da infância, estilo tem ampliado públicos e mercados, influenciando comportamentos
Roupas com estampas fofas, rosa como cor favorita, canetas brilhosas e com aroma. Se essa sentença descreve a sua rotina, você abraçou o estilo Kawaii. Nascido no Japão, o conceito – cuja pronúncia é cauaí e, na língua materna, significa “a possibilidade do amor” – abrange tudo o que é terno, delicado e infantil.
Embora o termo tenha surgido no fim do século XIX, foi mesmo nas décadas de 1970 e 1980 que a tendência se alastrou no Oriente, sobretudo entre a juventude. Era tido como uma forma de se rebelar, sem violência, contra os valores da sociedade japonesa. A partir daí, o mercado se apropriou da estética na moda, gastronomia, publicidade e comportamento.
No Brasil, o advento se deu sobretudo com a popularização dos animes e mangás, no início dos anos 2000. Hoje, encontra adeptos feito a cearense Brooks, 23. Streamer e estudante de Engenharia Ambiental e Sanitária, ela adotou o estilo Kawaii desde a infância com a ajuda dos pais, que sempre a estimularam. Fascinada pela personagem Hello Kitty, foi fácil permanecer nesse universo durante a fase adulta.
“Esse estilo tem grande presença em roupas, acessórios e papelaria que uso no dia a dia – desde um brinco super fofo e canetas de unicórnio até perucas e vestidos com pompons”, enumera. Ao adotar estética tão graciosa, Brooks se sente ela mesma, ao mesmo tempo que acumula olhares das pessoas ao redor por se portar assim.
“Elas sempre falam, ‘own, que fofa’. No começo, eu sentia muita vergonha e ficava desconfortável. Mas, com o tempo, fui me acostumando e me sinto bem com os elogios”. Em Fortaleza, inclusive, há vários eventos que englobam diversas tendências assim, sendo o Sana (Super Amostra Nacional de Animes) o maior deles.
Brooks comenta ser engraçado ver pessoas durante a mostra pedindo para tirar fotos com o grupo que aprecia Kawaii. Geralmente, elas perguntam, “qual personagem/cosplay você está fazendo?”. Não há nenhum. É apenas o modo de ser da turma.
“Acredito que qualquer estilo não é limitado por idade ou classe social. A moda é democrática. O maior benefício é eu me sentir bem comigo mesma, conhecer pessoas, lugares e ganhar reconhecimento”.
Ao mesmo tempo, sublinha os desafios de se comportar assim. O principal é o valor de alguns acessórios – na maior parte das vezes, bastante caros – e o fato de precisar atravessar a fronteira entre a criatividade e a realidade, tendo muito tempo livre para assistir a animes e doramas. “Sorrir cansa um pouco e fazer sempre as mesmas poses fofas é muito clichê”, ainda destaca a cearense.
“O Kawaii é um estilo que preza pela livre interpretação, com looks divertidos e criativos, capazes de retratar a essência atual da sociedade. Sem padrões. Acredito que mais pessoas venham a aderir a ele por, primeiramente, curiosidade. Com isso, elas podem ou não escolher ter seu estilo cheio de personalidade”.
Estética fofa para tempos sombrios
Levando em conta esses aspectos, seria a adesão à cultura Kawaii um desejo de superar o “cinza” do mundo? Psicóloga, Mestre em Psicologia Social e Doutoranda em Saúde Pública pela Universidade Federal do Ceará, Maria Camila Moura explica que, antes de tudo, é preciso compreender que toda manifestação cultural é um fenômeno complexo, composto por diversas variáveis – a exemplo de questões históricas, sociais e pessoais.
Devido a essa multiplicidade de fatores, não há uma resposta única sobre o assunto. De todo modo, alguns fatos merecem destaque. O primeiro deles diz respeito ao contexto quase distópico em que vivemos – com polarização política, perda de confiança nas instituições, recessão econômica, pandemia, relações fluidas e uma sociedade do cansaço, com altos índices de transtornos como ansiedade e depressão.
“Diante desse cenário tenebroso, poderíamos nos questionar, em um primeiro olhar, se a cultura Kawaii não seria um modo de resistir, de trazer um lado mais ‘fofo’ para esses tempos tão sombrios”, reflete Maria Camila. “Entretanto, se observarmos de modo mais atento, teremos outros elementos para levar em consideração nessa análise”.
Isso porque, sim, vivemos tempos caóticos, mas o que vemos brilhar nos palcos das redes sociais não são os bastidores de vidas atribuladas. Nessas plataformas, entra em cena o “imperativo de felicidade”, com pessoas se mostrando felizes em tempo integral – ainda que os dados apontem para um aumento no número de ansiedade e depressão.
“Então, se levarmos em conta esse aspecto, talvez possamos cogitar a possibilidade da cultura Kawaii reproduzir de maneira hiperbólica o que, de algum modo, se tornou uma etiqueta social digital – mostrar o que há de mais feliz. A ingenuidade nos protege de enxergar muitos males e a criança, como ser ingênuo por excelência, tem sua felicidade protegida”.
Síndrome de Peter Pan
Seguindo o movimento de observar o fenômeno sob diferentes vieses, Maria Camila Moura diz ainda que olhar a cultura Kawaii a partir do próprio berço dela, o Japão, possui significativas diferenças de analisá-la no Brasil. O Japão, por exemplo, é um país no qual o isolamento social e códigos de conduta mais rígidos são cotidianos.
Além disso, é uma nação com altos índices de suicídio, o que tem levado a políticas públicas efetivas de prevenção – como o Ministério da Solidão, que entrou em vigor durante o enfrentamento da pandemia. Isso porque, em outubro do ano passado, o índice de mortes registrado por suicídio superou o de Covi-19.
“A pressão no trabalho na sociedade japonesa também é alvo de estudos no campo da saúde mental. Lá, encontramos os ‘karoshis’ – palavra ainda sem tradução para o português – referente a japoneses que sofrem morte súbita devido ao excesso de trabalho”, referencia.
Logo, considerando esse cenário, a cultura Kawaii pode representar uma nostalgia da infância, com menos isolamento, menos regras e sem pressões exageradas do trabalho. É quase como se o estilo fosse uma ilha de bem-estar diante da realidade.
No Brasil, por sua vez, outros pontos ganham textura. Ainda absorvemos culturas estrangeiras sem grandes reflexões. Contudo, olhando para um passado recente, no início dos anos 2000 – em vias de expansão de direitos, maior acessibilidade à universidade, diminuição do quadro de pobreza e ascensão econômica – a manifestação que virou moda entre os jovens brasileiros foi a cultura “emo”, caracterizada como melancólica e sombria.
“Em tempos de esperança, nossos jovens manifestaram suas dores. E, curiosamente, em tempos mais duros como o que vivemos, nossos jovens manifestam ‘fofuras’. Brincamos em Psicologia que o avesso de uma coisa ainda é a própria coisa – uma blusa ao contrário ainda é uma blusa”, compara Maria Camila Moura.
Assim, se pensarmos no contexto japonês, talvez possamos nos remeter à famosa Síndrome de Peter Pan – que, apesar da nomenclatura, não se trata realmente de uma síndrome, mas de uma expressão popularizada para caracterizar comportamentos de quem possui dificuldade de entrar no mundo adulto, de assumir responsabilidades. E, como vimos, ser adulto no Japão, com seus “karoshis”, pode ser amedrontador.
Já no Brasil, culturalmente infantilizamos adultos homens (o “menino” Neymar é um homem de quase 30 anos, pai) e adultificamos e sexualizamos crianças mulheres, como o caso envolvendo a cantora Melody, de repercussão nacional.
“Assim, levando em consideração as especificidades de nossa cultura, pessoalmente não acho que no Brasil os impactos negativos se devam a uma suposta negação da vida adulta por nossos jovens. Creio, porém, haver outros fatores envolvidos que ainda merecem ser melhor estudados. Talvez nós não estejamos lendo nas entrelinhas”.
Segundo a psicóloga, inúmeras pesquisas já foram feitas sobre o universo “fofo” e apontam que tendemos a ser mais afáveis e receptivos diante de algo assim – a hiper popularidade de vídeos de animais fofinhos nas redes comprova isso. Inclusive, talvez a maioria de nós já tenha se deparado com a tendência ao amparo e à proteção diante de um bebê, tão indefeso nesse mundo dos grandes.
“Ora, a maioria dos adeptos do Kawaii são nativos digitais, os cancelamentos e linchamentos virtuais fazem parte do universo de muitos. E se apresentar como ‘fofos’, talvez mais do que negar a vida adulta, seja um mecanismo de defesa, de adaptação ao seu universo – eles reproduzem, de maneira hiperbólica, o que faz sucesso em redes sociais: sorrisos e fofuras”.
Cultura Kawaii na ponta do lápis
Compreendendo a força dessa cultura, a estudante de Administração Aíslan Pontes, 21, decidiu comercializar produtos no estilo Kawaii por meio de uma loja de papelaria. Intitulado Mucho Paper, o negócio iniciou em 2020 e apostou na referida estética devido a atenção que recebia por incorporar elementos fofos. “Eram produtos acessíveis e que todo mundo queria ter”, diz a proprietária.
De acordo com ela, geralmente quem mais compra os itens são mulheres entre 12 e 25 anos, estudantes e de classe média. Canetas e papéis com desenhos ou moldes de bichinhos, tons pastéis e formatos diferentes logo saem das prateleiras. Quanto mais fofo, melhor.
“Mas me atento principalmente à qualidade do produto, pois geralmente são importados, então preciso escolher a dedo quais farão parte do catálogo”, sublinha Aíslan. A renda do empreendimento, por sua vez, é muito volátil, tendo em vista ser um pequeno negócio. A depender do mês, a estudante fatura de R$500 a mil reais.
De todo modo, a influência asiática, conforme observa, tem sido muito disseminada em nossa cultura, alcançando vários adeptos – o que é ótimo para os negócios que oferecem tais produtos. A própria Aíslan admite gostar bastante de possuir coisinhas fofas e diferentes, sobretudo para decorar ambientes e utilizar na vida estudantil. “É legal poder se conectar com algo que é visualmente saudável e agradável”, exclama.
“Acredito que tal infantilização pode estar atrelada a muitos fatores problemáticos para alguns adultos, mas essa conexão com a infância de maneira saudável é crucial para um bom desenvolvimento e para a criação de memórias – tanto quanto a imersão em um mundo que só era possível ver em animes e afins. Agora, ele está pertinho de muitas formas”.
Brincar de Kawaii
Pertinho também das próprias crianças, naturalmente propensas a mergulhar em universos fofos. Letícia Ribeiro, 9, que o diga. Desde os seis anos de idade, a estudante gosta de vestir roupas delicadas, com estampas remetendo a bichinhos e arco-íris, influência direta da paixão que nutre por esse universo colorido e terno.
“Conheci o Kawaii porque tenho um gatinho, gosto de cachorrinho, e as pessoas, com o tempo, começaram a dizer que era Kawii. Perguntei o que era, explicaram que tinha a ver com essas coisas bonitinhas, e eu comecei a virar fã”, conta. Depois disso, começou a acompanhar vídeos sobre o assunto, passando a adotar o próprio estilo no cotidiano.
Além das blusas, a coleção envolve sapatos rosa, acessórios para cabelo e, claro, muitos brinquedos bonitinhos. “Faz parte da minha vida, eu gosto de ser assim”, afirma. Não à toa, ela foi a primeira a adotar o estilo na escola onde estuda, influenciando várias outras amigas. O Kawaii foi até tema de uma das festas de aniversário, e pauta os desenhos que a estudante faz tanto à mão como em um aplicativo.
Algumas vezes, ela cria personagens inspirados nessa temática; em outras, incorpora elementos desse universo a figuras já conhecidas. “Nesses casos, pinto o cabelo de um jeito fofinho, coloco uma cara bonitinha”, enumera. Questionada se pretende abraçar essa tendência quando for maior, Letícia recorda a própria mãe – também adepta da prática – e se mostra enfática: “Acredito que sim, porque é algo que faz bastante tempo que eu tenho”.
Conforme a psicóloga Maria Camila Moura, os mais diversos estudos sobre felicidade nos apontam diferentes motivos para o “bem-estar subjetivo”. Entretanto, é consenso na comunidade científica que um fator primordial para a felicidade humana é a vinculação, o cultivo de boas relações.
“Estamos vivendo tempos de fragilidade das relações. Recentemente testemunhamos famílias se desestruturarem por ideologias políticas divergentes. Então, se essa tendência Kawaii, apesar do nosso estranhamento, possibilita com que pessoas encontrem uma comunidade, se sintam representadas, acolhidas e tenham pontos de interesse em comum, talvez, em tempos como os nossos, isso possa ser muito mais saudável do que possa parecer”, considera.
E conclui: “Isso não exclui que muitas outras questões ainda mereçam ser debatidas dentro da cultura Kawaii, como a ‘moda Lolita’ nesse universo, questões de gênero, entre outros”.