Fotógrafos apaixonados por Fortaleza registram o que veem da janela durante a quarentena
De forma profissional ou não, moradores da Capital – que completa 294 anos de existência nesta segunda-feira (13) – clicam momentos do cotidiano neste período de isolamento
Tem uma árvore ali, abreviada entre as outras, que nunca percebi antes. Ela é bonita, a ramagem frondosa, o caule sem veias aparentes. Costuma receber pássaros, que, intranquilos, logo voam para as copas de estruturas maiores. Não se contentam com o miúdo. Eu, não: me faz brilhar os olhos o que não é aparente, coisas escondidas na multidão de outras coisas.
Ouça, abaixo, a narração da crônica, feita pelo repórter Diego Barbosa:
Tanto que fiquei triste por não tê-la percebido antes, a árvore. Poderia escrever uns versos para apaziguar sua solidão, a aparente melancolia de não ser notada. Poderia ir ao encontro dela e regá-la, deixá-la ainda mais formosa. Mas não fui e, a bem da verdade, nem sei quando irei.
Por enquanto, banho as folhas somente pela portinha de casa, porque é o que me é possível. Estou longe do mundo, daquela querida inexistência de paredes tal qual conhecia e me era atraente. Isolado das gentes, envolto em saudades. Pestes vêm e vão sobre o globo, mas a gente nunca se acostuma com as ausências. Feito é agora. É preciso ficar em casa, redobrar os cuidados, resguardar os anseios.
Cidadão consciente que sou, obedeço. Mas quem disse que é fácil? Estar consigo sempre é exercício de indefinida peleja. Há dias e dias, uns serenos, outros nem tanto. Tento me agarrar ao que importa e faz suspirar.
Olho pela janela. Daqui de casa, onde tudo é pequeno e vão, ela é apenas uma fresta, buraquinho raquítico incrustado no quarto. Mas é de onde vejo a árvore bonita e uma porção de outros detalhes da rua, parcela ínfima do gigante Mondubim.
Observo dona Antônia varrer a entrada de casa com o som lá no alto, injetando adrenalina e romantismo na corrente sanguínea – é daquelas que alternam a escuta entre Waldick Soriano e Reginaldo Rossi. Noto que Leonardo, garoto que há tempos não via devido à loucura da rotina, anda crescido, parece que já tem até bigode. Fica o dia inteiro se vendo no espelho. E reparo que, duas casas à frente, seu João lê mais livros do que eu poderia imaginar. Ontem estava na mão com um Drummond, “Sentimento do mundo”.
Deve ser assim em todo lugar de teto baixo e vizinhança perto. Assim, tento imaginar como está vovó, no José Walter. Há semanas não a vejo e me faz falta a carícia na cabeça, o beijo de bênção na mão. Da janela dela, aqueles telhados banhados pelo sol que sempre contemplávamos quando no andar de cima da casa devem estar ainda mais quentes. Paisagem de labareda na moldura do olhar.
É um cenário ligeiramente semelhante ao que alguém avista no Vicente Pinzón, bairro do outro lado da cidade, mas que herda a mesma característica: também é possível observar um aglomerado de telhas revestidas de energia natural. Dia desses, quando a tarde se despedia no firmamento, o olhar fotografou as estrias avermelhadas entre as nuvens fazendo grandioso passeio. Um longo respiro ecoou na brisa.
Esses suspiros profundos ao espiar para fora de casa tem acontecido aos montes nestes tempos de clausura. Espalham-se pela Messejana, Itaperi, Conjunto Palmeiras. Pirambu. Vão até a Granja Lisboa e o Siqueira, o Autran Nunes, o Curió. Nesses lugares, para muitas gentes, as janelas são anteparos em que acontecem rezas, preces, silêncios. Há de se pedir que o pão não falte, o emprego persista, as contas sejam pagas.
Por vezes, bate desespero: está difícil o caminhar incerto. Então, as mãos seguram nas grades e o corpo fica com a postura de cativo, trancafiado em dúvidas. Ao enxergar a rua, porém, o vento vem e ameniza as dores. Ao longe, se veem roupas no varal, pardais a pousar nas antenas, crianças a tentar brincar dentro dos minúsculos terreiros.
Ah, as crianças… Dizem ser aquelas que mais sofrem com o isolamento imposto pela pandemia. Donde já se viu tanta energia retida assim, em breves cômodos? Nos apartamentos – a vastidão deles, seja no Meireles, Aldeota, Cocó ou Mucuripe, Dionísio Torres ou Fátima, nos rincões ditos nobres da Capital – a coisa sufoca ainda mais. A salvação, então, é olhar pela janela, através do gradeado da tela de proteção.
O reflexo da cerca é quase tatuagem nas costas do menino que se banha de sol e lamenta por não entender tudo que está acontecendo. Por que tantos helicópteros riscando as nuvens? Por que a geometria dos prédios parece quase goela, a devorar os desejos de passeio? Por que os amiguinhos não vêm mais visitar? Por quê?
Difícil responder à gurizada. Há um alento, porém: dá para ver uns movimentos bem bonitos da sacada, janela maiúscula. Como quando as pessoas se esticam, fazendo exercícios, dançando, rodopiando em balé; ou quando tocam uma canção e todo mundo acompanha, os condomínios transformados em arenas de camarotes; ou quando põem na varanda a mesa que outrora ficava na cozinha e passam a fazer refeições nesse novo espaço.
Outra noite, dava para sentir a ternura emanando de um jantar à luz de velas, ou um aniversário – não deu para distinguir bem. Importava mesmo eram as feições entusiasmadas da mulher a dispor os pratos, e os filhos, ansiosos, a aguardar a comida que vinha em louça branca.
Das infinitas janelas da cidade não dá para medir o que se vê. Cada um, neste ardiloso momento, projeta as distâncias de algo muito querido que está tão perto e tão longe. Feito o mar, inóspito rei, cujos ruídos só são ouvidos pelos garotos da Sabiaguaba, saudosos do pulo da ponte, ou os moradores da Beira-Mar ou de qualquer outro lugar próximo dali, da areia branca.
Parece o fim do que conhecemos como mundo, a falta do picolezeiro e do vendedor de chegadinha, das reuniões nos botecos- família, as caminhadas pela orla, as leituras nos parques. Parece outro planeta.
Fortaleza aniversaria, portanto, enquadrada, vista pelas janelas das casas e dos edifícios. São 294 anos completos nesta segunda-feira (13), o abril menos alegre em tantas décadas. Tem gente lotando os hospitais, partindo de forma repentina. E ainda há os tantos e tantas que, diariamente, entra ano e sai ano, continuam desassistidos, a vagar pelas praças, as poças d’água, os lamaceiros.
Contudo, é a cidade que temos e fazemos morada. Lutar por ela é preciso, valorizá-la é necessidade. Festejar a história, cultura e riqueza que carrega. Abraçar as conquistas, protestar pelas faltas. Vivê-la. Dentro de nossos lares, por enquanto guardados, para, depois, encher as ruas de novo, fazendo delas habitação também. Porque, feito falara Hilda Hilst, ainda que as janelas se fechem, é certo que amanhece.