Família perpetua legado artístico da matriarca, a Mestra da Cultura Maria de Lourdes Candido
No primeiro Dia das Mães vivenciado sem a artesã do barro, Dora e Douglas Monteiro, filha e neto da artista, recordam o saber aprendido com a ceramista cearense e sublinham a necessidade de multiplicá-lo
Foi na cozinha do domicílio número 55 – localizado na Rua Boa Vista, centro de Juazeiro do Norte, Cariri cearense – que Maria das Dores Candido, conhecida como Dora Monteiro, aprumou a escuta e a memória para falar de saudades. Ao telefone, a artesã, uma das filhas da Mestra da Cultura Maria de Lourdes Candido, contou que a mãe está em todo lugar. “A gente dorme e acorda lembrando dela, com ela no pensamento”, diz.
As memórias chegam em fluxo irrefreável, sobretudo por conta da recente partida da artesã do barro, em 11 de março deste ano. Também devido à data celebrada neste domingo (9): é o primeiro Dia das Mães sem a presença física de dona Maria de Lourdes. Mas ela continua, infinita, no extenso legado de dedicação e amor com o qual dividiu entre a família e o mundo por meio de um ofício tão delicado quanto vigoroso.
No moldar do barro, a ceramista cearense delineou vidas. Dora Monteiro recorda bem. “Desde criança, eu via a minha mãe trabalhando. Ela começou fazendo miniaturas, pequenas peças para os filhos brincarem. Então, foi desenvolvendo outros tipos de trabalho para complementar a renda da casa, chegando a comercializar algumas peças. Era eu que ajudava a pintar tudo”, lembra, desenhando no olhar as panelinhas de barro que coroaram a infância.
Somente décadas depois, quando ficou grávida da filha caçula – Caroline Monteiro, hoje com 20 anos – Dora despertou para o aprendizado da arte no barro, tarefa já tão bem executada pela mãe e pela irmã, Maria (in memoriam), duas das maiores referências dela nesse trabalho.
Dona Maria de Lourdes, no total, eternizou sua herança para 11 filhos, seis deles multiplicadores desse fazer artesanal: além de Dora e Maria, constam Maria do Socorro, Francisca, Cícera e o caçula Elias. “Eu achava muito difícil, porque eu via ela e as minhas irmãs trabalhando e, já ali, achava muito complicado. Mas ela e a Maria foram me ensinando, fui pegando o gosto pelo trabalho, aprendendo aos pouquinhos e, desde então, não parei mais”, situa Dora Monteiro.
Agora, além de complementar a renda do lar com os vários itens que nascem de suas mãos, ela também repassa à própria prole – Douglas Monteiro Araújo, 25; Daiane Monteiro Araújo, 22; e Caroline Monteiro Araújo, 20 – o que ficou inscrito na dobra do pensamento. “É muito importante que a gente continue o legado dela. A arte da minha mãe é muito bonita e nós pretendemos dar seguimento ao que ela iniciou”.
Sintonia de fazeres
Esse comprometimento vem de longe, desde que Dora produziu a primeira peça de barro. Apesar de não mais alcançar a vista dela – dada a distância com a data em que foi feita e os rumos que tomou – o objeto é recordado com carinho pela artesã. Trata-se de um casalzinho de barro num jardim repleto de flores.
“Era uma placa que tinha bastante verde... Comecei a fazer e a minha mãe foi me ensinando, detalhe por detalhe – a carinha do personagem, as rosas”, descreve.
Dona Maria de Lourdes pintou a peça com ela, sendo apoio e guia. Ao término da feitura, a criação foi levada para o Centro de Cultura Popular Mestre Noza, também localizado em Juazeiro do Norte. Dali, seguiu estrada nos caminhos de um outro alguém, certamente trazendo mais vida e cor ao ambiente onde hoje se encontra.
“É incrível porque, quando você começa a fazer, não sabe o que vai sair dali. É só um barro, uma massa, e então vamos transformando em algo tão bonito”, dimensiona a ceramista.
“A gente faz muitas coisas da cultura popular, do folclore e do cotidiano”, completa, situando que as temáticas entram em sintonia com aquelas abraçadas pela mãe, detentoras de grande prestígio no Ceará, no Brasil e no mundo.
Dona Maria de Lourdes foi reconhecida Mestra da Cultura pela Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE), em 2004. Antes disso, e sobretudo depois, participou de feiras, mostras e exposições de artesanato, encantando o público visitante ao demonstrar o esmero com o qual trazia à tona peças de estimado valor.
História reverenciada
Também foi uma das perfiladas pelas jornalistas Cristina Pioner e Germana Cabral no livro “Mãos que fazem história - A vida e a obra de artesãs cearenses” (2012), além de ser protagonista de um mini-documentário produzido por um dos netos, Douglas Monteiro Araújo, para o projeto “Mãos que criam arte”, da Secult.
Não sem motivo, Douglas compartilha as vivências empreendidas junto ao trabalho artístico com o barro cozido. Segundo ele, por ser um conhecimento passado de mãe para filhos, a curiosidade e a experiência se deram naturalmente.
“Desde que eu me entendo por gente, mexo com barro. Em números de peças, é muito difícil falar com exatidão da quantidade, mas me especifiquei em fazer máscaras de barro, com imagens de figuras da cultura popular regional e nacional”, considera.
“A importância de manter viva essa cultura é porque é a raiz da nossa família. Claro que tem muitos artesãos que trabalham com barro, mas, como a gente, é único. Manter essa tradição vai muito além dos títulos culturais e, sim, por tudo que minha vó passou pra chegar nesse patamar, de ter um trabalho reconhecido nacional e internacionalmente”, completa. “Por ela, a arte tem que continuar, com o nome dela sendo levada para os quatro cantos do mundo, como a vó, em vida, fez”.
Legado inesgotável
Acompanhando os rebentos de perto no desejo de singrar pelo fazer matriarcal, Dora Monteiro diz que o processo está sendo realizado aos poucos. É uma arte que exige cuidado, paciência e persistência. “A minha mãe já ensinava pra eles. Então, já faziam algumas coisinhas, e hoje eu tô tentando ensinar também para passar a arte, para que eles deem continuidade. É muito bom, gratificante, uma sensação maravilhosa”, sublinha.
A artesã não esconde a emoção ao afirmar que a mãe começou a trabalhar no barro quando estava grávida dela, passando a auxiliar na criação dos filhos de modo a prover sustento e dignidade. Com o passar dos anos, também começou a viajar para apresentar e vender as criações, estendendo o raio de alcance do saber intuitivo.
São dessas viagens, inclusive, que Dora mais sente falta. Acompanhada de dona Maria de Lourdes, ela conhecia mais a respeito de si, do mundo e da grande mulher que estava ao lado. “Eu que viajava com ela para todos os lugares. Eu que ia com ela para dar oficinas. Essas lembranças são muito marcantes para mim”, confessa. “Sinto muita falta de tudo que ela passava pra gente, de quem ela era. Era uma mãe muito carinhosa, atenciosa com a gente”.
Fica, assim, a homenagem na efeméride que celebra todas as mães do mundo, embora não apenas: esse atravessar maiúsculo pela própria história – sua e de tantos – contorna a torrente do tempo e reside em cada objeto, cada cor e saber aprendido e repassado pelas mãos de dona Maria de Lourdes Candido.
“Que Deus olhe para todas as mães e ilumine cada uma, dando um Feliz Dia das Mães. Amo muito a minha e sou muito grata por tudo que ela fez. Aonde nós formos, a presença e o trabalho dela continuam”, conclui Dora Monteiro.