“É surreal”, diz bailarina de projeto social cearense sobre ganhar bolsa do Teatro Bolshoi
Instituto Katiana Pena foi o primeiro do País selecionado para formação virtual promovida pela tradicional escola de balé
Esta história começa há muitos anos, quando tudo ainda era sonho. Desde cedo, Cibele Araújo ouvia falar sobre o Ballet Bolshoi – companhia do Grande Teatro Acadêmico para Ópera e Ballet de Moscou. Escuta atenta e imaginação em curso, a menina ruminava o pensamento de chegar lá, embora soubesse dos inúmeros desafios pela frente.
Não à toa, tamanha foi a surpresa quando, no último dia 7 de abril, durante transmissão ao vivo realizada por Pavel Kazarian – Diretor Geral do Instituto Escola do Teatro Bolshoi no Brasil – ela ficou sabendo que ganhou uma bolsa integral para estudar na renomada entidade. A casa é a única filial do Teatro Bolshoi fora da Rússia, sediada em Joinville (SC).
“A ficha não caiu ainda”, confessa a bailarina de 23 anos de idade, em entrevista ao Verso. “O Bolshoi parecia algo tão longe, tão distante da minha realidade. E, agora, receber esse presente é algo surreal, eu vou poder fazer um curso deles. Ter contato com a técnica e os professores vai somar muito na minha carreira como bailarina e professora”.
Cibele dá aulas e é coordenadora pedagógica do Instituto Katiana Pena (IKP), localizado na Comunidade Granja Lisboa, no Grande Bom Jardim. O projeto social é o primeiro do País a ser selecionado para o curso “Introdução ao Balé Clássico: Teoria e Prática na Preparação de um Bailarino”, promovido pela tradicional escola. A escolha se deu depois que Pavel Kazarian conheceu a história da instituição cearense por meio das redes sociais.
“As expectativas são as melhores, pois é uma honra participar do curso dessa escola que é referência no mundo. Espero poder me aprofundar e absorver o que tem de melhor”, torce Cibele, também co-fundadora do IKP.
Abrangência
A formação virtual será direcionada a todos os estudantes matriculados no Instituto Katiana Pena com idade a partir de oito anos. Feito Cibele, eles ganharam uma bolsa integral para participar das aulas, que já estão disponíveis e serão iniciadas a partir do dia 26 de abril, estendendo-se por um período de seis meses.
O curso conta com suporte de 25 profissionais russos e brasileiros de diversas áreas, a exemplo de fisioterapeutas, professores de música e educadores físicos, além de alunos do próprio Bolshoi. Ao todo, serão 1,200 horas/aula, beneficiando aproximadamente 300 crianças e jovens. Um mergulho completo.
Segundo a bailarina e coreógrafa Katiana Pena, fundadora do Instituto, a atmosfera é de empolgação e ansiedade. “Vamos nos aprofundar no conhecimento teórico da técnica clássica de acordo com a metodologia desenvolvida na Escola Bolshoi Brasil. Ficamos honrados e felizes em saber que somos a primeira instituição brasileira a receber esse curso. Somará na formação dos nossos professores e alunos, aprofundando os conhecimentos e fortalecendo a qualidade técnica dos nossos educandos”, comemora.
Enquanto os encontros não acontecem, o IKP está em fase de organização interna, visando as turmas que serão beneficiadas com a formação. Katiana sublinha que a essência da casa sob sua tutela “vem da rua e é para a rua”, fator determinante para que abrace cada vez mais pessoas e ações, trilhando vigorosos passos.
“Dançamos para a comunidade, fazendo com que todos se sintam contemplados e acolhidos com o nosso trabalho. Nossa filosofia é transformar e impactar vidas por meio da arte”, diz, não sem antes elencar os desafios que se impõem na dinâmica cotidiana para manutenção dos trabalhos.
“Uma das maiores dificuldades é a delimitação territorial, que complica o acesso dos nossos educandos dentro da instituição. Paralelo a isso, também temos o desafio de manter nossas portas abertas, com as ações diárias – sejam aulas de dança, alimentação saudável, apoio à escola formal ou o polo esportivo”, destaca.
Dentre as tentativas para reverter esse panorama, está a vontade de fazer com que todos tenham acesso aos projetos da instituição, demonstrando que a casa é um lugar para acolher e somar. Por isso mesmo, o constante investimento na inscrição diária em editais Brasil afora, garantindo todos os profissionais ativos no espaço.
Vidas moldadas
Quando indagada sobre de que maneira o IKP molda a realidade do Grande Bom Jardim, na periferia de Fortaleza, a partir do contato com a arte, Katiana Pena destaca a relevância de se abrir espaços que oportunizem mudanças.
O projeto idealizado por ela começou a nascer em 2007, como um desdobramento do grupo de dança CorpoMudança. Em 2015, tornou-se um instituto, atualmente com 600 alunos matriculados e enxergando cada vez mais novos horizontes.
“A referência que se tem no cotidiano de quem nasce na favela é ser pobre, favelado, não ser ninguém. A nossa arte veio para oportunizar e quebrar esses paradigmas. Criamos a nossa própria mudança. Sentimos a transformação surgindo a partir do desenvolvimento pessoal, por meio da disciplina e a promoção humana, melhorando as perspectivas de vida, cotidiano e autoestima. Os estudantes se sentem seres humanos capazes de fazer escolhas e se tornarem o que quiserem”, situa.
A própria Cibele Araújo, do começo deste texto, ressalta o quanto a arte, em especial a dança, foi “avassaladora”, conforme descreve, em sua trajetória. Ela conta que, antes dos nove anos, nunca tinha ouvido falar sobre algo no segmento artístico. Contudo, por iniciativa de uma tia, foi apresentada à Katiana Pena em uma aula no Centro Cultural Bom Jardim. Desde aquela época, não parou mais.
“Quando fiz minha primeira apresentação, em que vi o público me aplaudindo, todas aquelas pessoas e luzes, eu entendi que tinha descoberto o meu lugar. Era ali que eu queria ficar, no palco”, dimensiona.
“Com a dança, aprendi que não importa sua origem, herança nem nada disso. Somos capazes, os sonhos são possíveis. Aprendi a acreditar em mim, ser confiante e entender que o meu lugar é onde eu quiser. O mais importante é a humildade, que tem que prevalecer. O orgulho de onde você vem e a vontade de querer levar esse lugar pra longe, brilhando cada vez mais”, completa.
Novo olhar humano
Semelhante perspectiva é encarada por Elayne Moura, 16, bailarina e recepcionista do Instituto Katiana Pena, onde ingressou como estudante em agosto de 2016. Também contemplada com o curso do Bolshoi Brasil, a jovem diz que a dança foi o mecanismo que transformou sua vida.
“O impacto que ela trouxe foi de uma forma extraordinária. Hoje, com toda certeza, eu tenho a expectativa de vida que não tinha antes, tenho um novo olhar humano que, a cada dia, vem sendo transformado e alimentado com muito aprendizado”, considera, contando ainda que, desde os quatro anos, é envolvida com a arte do movimento corporal.
“Assim que meu pai observou esse meu amor imensurável pela dança, logo me matriculou em um projeto. Nesse tempo, eu levava tudo como um hobby, dançava porque era o que mais amava fazer. Hoje, a minha paixão pela arte só aumenta e, graças ao Instituto Katiana Pena, que me deu essa honrosa oportunidade, posso dizer que levo a dança não mais como um hobby, e sim como uma profissão”.
A poucos dias do início das aulas pelo Bolshoi Brasil, Elayne não esconde a emoção e a expectativa. Para ela, é uma distinta representação ter a possibilidade de oferecer o melhor para a comunidade onde o IKP está localizado. “Estou muito realizada e grata por estar participando desse curso que, eu tenho certeza, vai ser incrível!”, torce.
Serviço
Instituto Katiana Pena
Rua Mirtes Cordeiro, 3147, Bom Jardim. Contato: (85) 99435-7303. Mais informações por meio do site e do perfil do instagram da instituição