Dublê no filme “Pacarrete”, bailarina Wilemara Barros rompe preconceitos na dança
Aos 55 anos e com respeitada carreira na dança do Ceará, artista fala de sua participação no longa e situa impressões sobre a profissão e projetos
O retrato tem tons de sépia. No centro, uma garota magra, negra, toda vestida de branco – as luvas, meias, sapatilhas. A pose é de bailarina, um pé defronte outro, o leve roçar deles no chão. E, por mais que o semblante sério, decidido dela, chame a atenção, não escapa à vista também o comportamento dos homens observando a menina ao longe. Estão conversando entre si, parecem inquietos a comentar o que ela está fazendo ali, trajada daquela forma e naquele lugar.
De certa maneira, a atitude deles reflete toda uma visão de mundo da sociedade brasileira à época, início da década de 1970. Conforme Wilemara Barros – a sonhadora criança registrada na foto da contracapa de sua biografia, “Wila”, publicada em 2014 por ocasião da comemoração dos 50 anos da artista – não era comum filhos de operários ingressarem no universo da arte.
“A moça que dançasse não era bem vista. E nossas condições financeiras também era bem difíceis. Minha mãe foi uma pessoa de origem humilde. Mas carregava uma promessa, feita ainda antes de meus primeiros irmãos nascerem: a primeira filha dela seria bailarina”, conta. Dito e feito. O pensamento de Maria Neide dos Santos Barros não só vingou, como deu fruto intenso, poderoso.
Wilemara Barros é um dos principais nomes da dança no Ceará. Com carreira reverenciada no Brasil e no mundo, formou gerações de artistas e, a cada trabalho que põe o corpo-narrativa a serviço do movimento, atesta a relevância do ofício. Junto ao companheiro, o bailarino Fauller, hoje ela integra a Cia. Dita, formada por ambos, cujo conceito traduz-se em ser “lugar de procura”, atento à pesquisa e produção artística.
A pluralidade percorre o sangue da dupla, justificando a conexão com outras linguagens. Após série de espetáculos dialogando com a fotografia, arquitetura, teatro e moda, recentemente Fauller e Wilemara integraram também a equipe de “Pacarrete”, filme de Allan Deberton, grande vencedor do Festival de Cinema de Gramado neste ano. A produção foi exibida na sexta-feira (6), no encerramento do 29º Cine Ceará - Festival Ibero-americano de Cinema.
Em entrevista ao Verso na própria residência, no bairro Carlito Pamplona, lar das elucubrações criativas, a bailarina percorre os trajetos históricos e íntimos que a conduziram a trabalhos na seara da dança e multiplicidade de recortes artísticos, bem como estabelece paralelo entre ela e Pacarrete – professora aposentada cujo sonho é estrelar um balé para a população de Russas durante a grande festa da cidade, prestes a acontecer.
Por que a dança?
Na verdade, não foi uma escolha minha. Era um sonho da minha mãe. Ela dizia que a primeira filha que ela tivesse ia ser bailarina. E, aos 10 anos de idade, me levou para o Sesi da Barra do Ceará, que mantinha um projeto social. Lá, houve uma audição para filhos de operários para ingresso numa escola de dança. Fiz e passei. Eram mais ou menos umas 600 crianças. A partir daí, comecei a me interessar realmente pela dança, mas nada profissional. Tive minhas primeiras lições de balé clássico e, depois, obtive formação nessa área. Infelizmente, essa escola teve que ser extinta devido à mudança de gestão. A partir daí, com 15 anos, fiquei parada por um bom tempo. Comecei a ver onde podia encontrar dança na cidade. Era um problema na época porque era tudo muito caro. Aulas de balé eram para a elite. Minha mãe era dona de casa. Meu pai era operário.
Como retomou a rotina?
Dois anos depois, uma ex-aluna dessa escola ocupou a sala do Sesi com aulas de dança, e descobriu que eu estava parada. Me chamou, e eu fui. Então, percebi que era realmente isso que eu queria fazer da minha vida. Entrei num grupo chamado Vidança, com direção da Anália Timbó. Depois, fui trabalhar com Vera Passos no Pano de Boca, um grupo bem renomado na cidade. Também dancei no GAD – Grupo Ação e Dança. Aí foi criado o Colégio de Dança do Ceará, que oferecia vários cursos, para professores, coreógrafos e bailarinos. Fiz a audição para bailarinos, que era minha ânsia na época, já com 35 anos, e não fui aprovada, apesar de ter feito uma boa prova. Para essa escola, já estava velha para a profissão. Porém, o diretor na época, Flávio Sampaio, supergeneroso, falou que eu podia dar aulas. Acho que foi a melhor coisa que eu fiz na minha vida porque, a partir daí, realmente comecei a pensar a dança como profissão. Já gostava de dar aulas, mas foi a partir daí que veio o “boom”, sabe? Comecei a trabalhar nas escolas e a desenvolver algo que permitisse que qualquer um pudesse fazer aula de balé, independentemente de ser longilíneo, magro, gordo, negro, branco.
Aulas de balé eram para a elite. Minha mãe era dona de casa. Meu pai era operário
E não existe mesmo barreiras para isso?
Não, não mesmo. De uns tempos para cá, esse pensamento está mudando. Percebi isso no exterior. Lá, quanto mais velho o bailarino é, mais valorizado também, pela experiência que carrega. Aqui, somos descartáveis. Porque, claro, dependendo da dança que você queira fazer, chega um momento que teu físico não responde mais. É algo biológico. Você vai perdendo a musculatura, ela já não aciona mais quando você pede, sua técnica vai se perdendo. Em algum momento, não consegue mais fazer coisas que fazia. É a hora em que você começa a escolher. O que quer fazer com a dança que trabalhou durante toda a vida? É a questão do autoconhecimento do próprio artista. Isso, para mim, vem com tranquilidade.
Como você encara a questão do tempo e da idade na dança?
Procuro estar em cena sempre pensando que não tenho mais 20 anos, mas que posso mostrar às pessoas, por meio da minha dança, toda uma história de vida, com dignidade, sem anular minha identidade. Levei isso adiante sempre, bem como deixar claro que a dança é algo para todos. Esse colégio em que eu dava aulas, naquele tempo, também foi extinto, bem como outro que passei a trabalhar depois. Neste último, porém, tinha um bailarino bem jovem, Fauller, que é meu companheiro, e fazia curso para coreógrafos. Quando acabou o colégio, ele disse que ia continuar na profissão, estudando e pesquisando a dança que queria fazer. Me convidou para dançar na Cia. Dita. Já estamos há 16 anos nessa empreitada, juntos, dialogando com a dança, o teatro, moda, fotografia, cinema e arquitetura. Não colocamos muito na gaveta a nossa arte. O importante é levá-la para as pessoas, fazendo com que pensem, reflitam sobre seu modo de existência.
O que significa o corpo negro e nu marcando o movimento, como acontece com você e a Cia. Dita?
Como mulher negra, nordestina, mulata e artista bailarina, acho que é com os meus trabalhos que eu tenho que me posicionar, me colocando em cena e agindo com resistência, politicamente. Só o fato de eu estar no palco aos 55 anos, negra, no Nordeste, já é uma bandeira que eu inevitavelmente levanto. Venho de uma época em que as bailarinas maquiavam a pele para parecerem brancas. A minha passou muitas vezes por isso quando era criança. Hoje em dia, já não tem isso: negras entram em cena com as peles que têm. As sapatilhas de ponta também são confeccionadas da cor da pele. É um ganho maravilhoso. Tenho formação clássica, mas nunca pensei em dançar a morte do cisne branco no Lago dos Cisnes. Na época, alguns professores diziam que era um sacrilégio colocar uma mulher negra para fazer o papel. E há dois anos, fiz a abertura da Bienal de Dança com a morte do cisne. Quebrou-se, então, uma barreira. Foi um momento muito importante politicamente na história da dança do Ceará. Uma mulher negra, com 53 anos, fazendo a morte do cisne de tutu branco, que é a cor que representa o personagem, mas com uma meia da cor da minha pele. Isso é empoderamento, posicionamento.
Não colocamos muito na gaveta a nossa arte. O importante é levá-la para as pessoas, fazendo com que pensem, reflitam sobre seu modo de existência.
Você e Fauller participaram do filme “Pacarrete”, na parte da coreografia. Como foi o convite?
O Allan Deberton já tinha o projeto bem antigo de fazer esse filme. E ele estava procurando uma pessoa para fazer a direção coreográfica, e também uma dublê para Marcélia Cartaxo. Ao assistir a um espetáculo que apresentei na Bienal de Dança do Ceará, há dois anos, ele se interessou e falou comigo. Fauller assumiu, então, como coreógrafo, e eu como a dublê. Trabalhamos mais de três meses com Marcélia. Dei aula de balé clássico para ela, fazendo todo um direcionamento. Acho que o resultado vai ficar bem bacana. A Marcélia tem o que acho essencial para a dança: determinação. Uma bailarina leva anos para subir na sapatilha de ponta; ela conseguiu em três meses. Tinha hora que parecia que ia desmaiar, mas é muito determinada, assim como eu também sempre fui.
Você já havia preparado atores para um filme?
Não. Eu fiz uma participação num filme do Rosemberg Cariry, chamado “Siri-Ará”, em 2008. Ele viu um espetáculo meu e disse que tinha criado uma personagem que tinha mais ou menos as minhas características físicas. Ela era um ser da natureza que atormentava psicologicamente o personagem principal. Tive três aparições no filme. A minha experiência com cinema, então, foi essa. Antes, havia feito um vídeo-dança, mas era algo em que eu estava em cena dançando, então não tinha preocupação.
Uma mulher negra, com 53 anos, fazendo a morte do cisne de tutu branco, que é a cor que representa o personagem, mas com uma meia da cor da minha pele. Isso é empoderamento, posicionamento.
Quais foram os desafios dessa empreitada?
Foi bem tranquilo, porque, na verdade, parecia que eu estava por trás das câmeras. Acho que o desafio maior mesmo foi transformar a Marcélia em uma bailarina. Não é só colocá-la dançando, sabe? É inserir uma essência de bailarina no sentar dela, no olhar, na presença. Na casa onde ela contracenava com outros atores, não podia sentar como uma pessoa normal, mas como uma bailarina. O Allan dizia assim, “Marcélia, olha a forma como Wilemara conversa, olha como ela olha”. Ela ficava parada perto de mim e eu dizia, “o que é, Marcélia?”. Ela dizia, “estou te observando” (ri).
Um filme ser bastante premiado num dos mais importantes festivais de cinema do País, tendo como tema central a questão da cultura e do balé como símbolo de resistência. O que isso sinaliza para você?
Existem vários filmes sobre dança, mas esse vem com a memória de uma cidade e um lado muito humano. Fala de uma mulher que envelhece, com um pensamento que está além do tempo dela. É vista como louca. É muito bacana a gente, então, perceber isso na tela. De certa forma, isso é recorrente no mundo da dança. A pessoa que trabalha durante muito tempo com a arte, de uma forma geral, chega a um momento em que não consegue mais ser aquela estrela que foi durante muito tempo e começa a ter uns devaneios de que vai ser aquela estrela para sempre. Acho que, entre nós, sempre há uma Pacarrete tendo essas confusões entre a fantasia e a realidade, sobre o que vamos fazer agora com tudo que temos, nossa imagem, nossa dança. O filme ter ganho tanto reconhecimento creio que se dá muito por causa disso.
No filme, você e Marcélia Cartaxo se fundem. Quais são as conexões existentes entre você e a protagonista do longa?
Acho que a Pacarrete foi uma mulher à frente do tempo dela e eu também me considero assim pelo seguinte fato: aos 55 anos, eu determino o que quero dançar e onde quero estar com a minha dança. A maioria dos espetáculos que faço apareço nua em cena. O nu, para mim, também é figurino. Para algumas pessoas, isso é incompreensível, uma mulher aos 55 anos estar em cena nua. Por trás dessa nudez, que eu me coloco em cena, tem sempre uma potência política, pela minha própria imagem e história. Minha relação com a Pacarrete vem daí. Talvez, a diferença entre mim e ela é que ainda me resta um pouco de lucidez. E os tempos eram outros, não é? Ela viveu numa época difícil; hoje, temos liberdade de fazer tudo, ser o que quiser ser. Eu sou quem eu sou. Quando subo em cena, não tem como mentir naquilo que estou fazendo, na minha arte. Porque danço o que sou.