Cearense Blecaute é escolhido para homenagear Tim Maia no Prêmio da Música Brasileira
Artista visual e estudante de filosofia, o jovem criado no Passaré vem ganhando destaque e expõe até fora do país
Dos 23 anos de vida, sempre no Conjunto Riacho Doce, no bairro Passaré, Blecaute aponta os cinco últimos como de uma virada importante. Enquanto crescia tendo como referências de arte o que via na TV e a arte “clássica” — e distante — ensinada na escola, ele não poderia imaginar que, no início da vida adulta, alcançaria olhares, atenções e públicos por Fortaleza, Brasil e mundo.
Destaque das artes visuais da Cidade e com obra exposta no 75º Salão de Abril até 29 de junho, Blecaute participa nesta quarta-feira (12) de homenagem do 21º Prêmio da Música Brasileira a Tim Maia, no Rio de Janeiro, e ainda, tem projetos de circulação para este ano por Fortaleza, Pernambuco e Espanha.
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De “Dragon Ball” a Camus
Os contatos iniciais de Blecaute com arte, lembrados por ele em entrevista ao Verso, iam do “programa da TV União que passava artes abstratas enquanto tocava música tida como ‘clássica’” a desenhos animados como “Dragon Ball”, gosto que levou o então adolescente a tentar replicar os personagens.
Na escola, os estudos da arte também “clássica” não tiveram a aproximação da linguagem como consequência.
“Confesso que, por um tempo, aquele era meu padrão de belo, aquilo era tão belo que me assustava e me afastou das artes plásticas, visto que eu nunca poderia criar algo à sua imagem e semelhança”, partilha.
O afastamento foi revertido quando Blecaute começou a estudar Filosofia na Universidade Estadual do Ceará, em 2019. A escolha pelo curso se deu após acesso dele, que atuava como bibliotecário no Ensino Médio, a “literaturas que levantassem questões debatidas na Filosofia e/ou Psicologia, como Dostoiévski e Camus, por exemplo, que falavam sobre liberdade e questões humanas”.
Liberdade como tema central
“Só voltei a me inspirar em pintura e artes plásticas quando entrei na Filosofia. Tendo que lidar com filósofos tidos como ‘clássicos’, pensei neste padrão e em como ele se restringia à cultura europeia fortalecida pela colonização”, aponta. Nos estudos, Blecaute destaca que foi “fisgado” pelo tema da liberdade.
Como monitor da professora Eliana Paiva — “uma das maiores especialistas de Jean-Paul Sartre no Brasil”, ressalta —, ele propôs uma palestra que mesclava referências pentecostais, o disco “Sobrevivendo no Inferno”, dos Racionais MC's, e a presença de artistas do hip hop para elaborar sobre liberdade.
“Meu trabalho visual no início, e até hoje, se debruça sobre este mesmo tema em suas mais diversas facetas”, reconhece.
2019 foi também o ano em que, em paralelo ao curso de Filosofia, Blecaute passou a se lançar na prática artística de forma autodidata. “Há exatos cinco anos, eu sequer sonhava em viver de arte. Comecei no final do ano de 2019, sem pretensão alguma, mas logo se tornou meu ofício; eu passava horas e horas pesquisando imagens e fazendo colagens e ilustrações”, explica.
A prática começou a partir de um aplicativo de celular, no qual o jovem produzia obras unindo vivências e referências acumuladas ao longo da trajetória.
“Na falta de influências negras, busquei ser minha própria influência, criando histórias acerca da episteme e subjetividades negras, trazendo a arte como um ato político de protesto. Transformei o fato de ser autodidata em motivação, tanto para o meu trabalho como para pessoas semelhantes a mim”, atesta.
“Muito mal-encarado pra ser Cristo”
Ainda no início da produção, já em 2020, na pandemia, o cearense teve uma obra destacada pelo Museu de Arte de São Paulo nas redes sociais. Foi “o primeiro passo para afirmar para mim mesmo que este era meu trabalho”, considera.
“Além de ter aberto algumas portas, também foi onde recebi a confirmação de que meu trabalho e minha poética tocavam pessoas semelhantes a mim”, ressalta. Entre os impactos e reações positivas, o artista lembra de uma negativa que teve resposta na arte.
“Foi a partir de um comentário feito por uma mulher branca afirmando que a minha arte que foi selecionada, um autorretrato meu enquanto Jesus Cristo, um homem negro e favelado, não faria sentido, pois eu era ‘muito mal-encarado para ser Cristo’”
A frase foi adotada pelo próprio artista como nome de um projeto no qual ele mescla “subjetividades da cultura negra a elementos do cristianismo”. Entre as obras dele, está “Eu também sou um anjo” (2024), pintura disponível para visitação no Salão de Abril, no Centro Cultural Casa do Barão de Camocim, até 29 de junho.
“Continuei trabalhando focado, acreditando que era através das artes visuais que eu mudaria minha vida e que poderia mudar a vida de meus semelhantes, visto que a arte tem o potencial de transformar a realidade e criar novos imaginários”, confia.
De “FUNK” ao Prêmio da Música Brasileira
Blecaute seguiu dando sequência aos trabalhos, estudos e leituras nos anos posteriores, indo além do digital e agregando outros materiais e técnicas de pintura.
A participação em 2022 no Programa de Residências e Intercâmbios (PRIS) do Hub Cultural Porto Dragão, equipamento ligado à Secretaria da Cultura do Ceará e ao Instituto Dragão do Mar, é destacada pelo artista.
“Pela primeira vez tive um investimento em meu trabalho, não apenas em materiais como pinceis, telas de tecido e cavalete, mas também pessoas que acreditavam em meu trabalho”, afirma.
Ele passou três meses envolvido em ações da iniciativa, que visa estimular a criação artística a partir de intercâmbios entre profissionais de diferentes áreas da arte e da cultura. Parte da produção realizada no período irá compor a participação do artista no Prêmio da Música Brasileira.
Segundo Blecaute, a oportunidade veio após a curadoria do PMB — que neste ano homenageia Tim Maia (1942-1998) e terá cerimônia realizada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro — ter acesso às obras "Only Colored", "Filhos de um Deus que dança" e "Festa de Preto é pra se libertar".
As três fazem parte da série “Festa de Preto”, assinada pelo cearense, que compõe a exposição “FUNK: Um grito de ousadia e liberdade”, em cartaz no Museu de Arte do Rio (MAR) até o próximo dia 24 de setembro.
“O convite surgiu em um interesse por parte da curadoria do PMB em fazer este movimento de unir linguagens artísticas a fim de criar um imaginário acerca da história de um dos maiores nomes da cultura brasileira”, destaca.
Arte como ferramenta política
Tanto a ida para o Rio de Janeiro na época de abertura da exposição “FUNK” quanto a atual para o PMB foram concretizadas com o apoio do Hub Cultural Porto Dragão “por eles também compreenderem esta minha ida como um ato político”, destaca.
“Uso esta ida à premiação no Theatro Municipal do Rio de Janeiro como um ato político de criar laços e pontes entre Fortal e RJ, para que cada vez mais haja esse intercâmbio”
Na viagem anterior à cidade, na ocasião da exposição no MAR, o artista divide que teve encontros com representantes do Galpão Bela Maré, iniciativa do Observatório de Favelas, e da Fundação Nacional de Artes, do Ministério da Cultura, para construir ações de fortalecimento da cultura no País.
“Mais esforço e sangue nos olhos que incentivo”
Há cinco anos, Blecaute “sequer sonhava em viver de arte”. Cinco anos depois, ela já se fortaleceu como trabalho para o cearense, mas a ideia de “viver de arte” segue sendo um desafio.
“Ainda luto por dignidade no meu dia a dia, ainda penso como vou pagar meu aluguel e minhas contas, ainda tenho inseguranças e incertezas, mas compreendo que não é sobre a qualidade de meu trabalho e da profundidade de minha pesquisa, mas sobre um sistema que, como falei anteriormente, não foge das suas raízes coloniais”
A despeito da falta de “apoio e suporte”, em especial para artistas visuais “mais afastados do centro” e “que fogem do padrão branco cisgênero”, Blecaute prevê diferentes projetos futuros e adianta alguns ao Verso.
Estes incluem uma exposição intitulada “Sobre o Amor”, em Fortaleza; uma exposição conjunta com a artista visual Alexia Ferreira que irá acontecer na Espanha, em outubro; participação na ART*PE - Feira de Arte Contemporânea de Pernambuco deste ano; e, ainda a construção de “contatos com curadores de fora do país por conta própria, pois, assim como a maior parte da classe artística fortalezense, sou independente e tenho que correr por mim”.
O “corre”, às vezes, pode ser dificultado, mas Blecaute é confiante na caminhada. “Sempre falo que ando em passinhos de formiga, mas que vou chegar lá pois sou inevitável”, atesta.
“Venho construindo minha trajetória com mais esforço e sangue nos olhos que incentivo, construindo pontes entre linguagens, entre a música e as artes visuais, e falando sobre temas do meu cotidiano a partir de uma perspectiva não apenas filosófica, mas negra e periférica”, sustenta.
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