Casa ou apartamento? Evolução urbana de Fortaleza fez habitantes se adequarem a morar nas alturas
Em livro, arquiteta investiga aspectos singulares e universais dos edifícios da Capital até 1986
O fortalezense não apenas se adequou a morar nas alturas, como também valorizou esse tipo de habitação. A conclusão é da urbanista, professora e pesquisadora Márcia Cavalcante a partir de uma perspectiva histórica. Segundo ela, nós incorporamos muito bem a arquitetura moderna, embora não tenhamos um clima tão adepto aos edifícios de apartamento.
“As primeiras pessoas que saíram das casas e mansões para morar na Beira Mar, de certa maneira criaram uma tendência de mercado. O fato de que, com o tempo, as maiores fortunas da cidade foram migrando para esses espaços criou um motivo para que outras pessoas também se sentissem atraídas a residir em prédios”, situa.
Apesar de não ter mapeado o porquê dessa necessidade de deslocamento para os edifícios – um dos motivos, supõe, seria o da violência urbana – a arquiteta se valeu do movimento de verticalização da capital cearense para investigar como esse processo estimulou mudanças na forma de morar e de que modo ele interferiu na própria estrutura da cidade.
O resultado dessa imersão pode ser conferido no livro “Edifícios de Apartamentos em Fortaleza: Universalidades e singularidades”. Com lançamento marcado para esta quinta-feira (9), a partir das 19h, nos Jardins da Reitoria da Universidade Federal do Ceará, a obra é fruto da tese de doutorado da professora – aprovada em 2015 no programa de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP).
O pioneirismo do trabalho oportuniza vários pontos de análise da conjuntura habitacional local, englobando a gênese e a diversidade dos prédios – com construções datadas de 1935 a 1959; a hegemonia dos sólidos modernos, observada entre 1960 e 1971; a incorporação dos pilotis (conjunto de colunas que sustentam uma obra e, ao mesmo tempo, deixam o pavimento térreo livre), de 1972 a 1978; e a consolidação das torres, de 1979 a 1986.
Márcia Cavalcante explica que todo o aprofundamento na temática se deveu aos anos de atuação no mercado imobiliário e também como docente. Em ambos os campos, a estudiosa sentiu a falta de uma bibliografia que apresentasse o panorama em questão. “Sempre busquei focar no edifício construído, valorizando os bons projetos arquitetônicos. Assim, fui buscar desde a origem (qual foi o primeiro edifício da cidade) até outras informações. Porém, as respostas sempre foram pouquíssimas, dada a ausência de bibliografia sobre o assunto”.
A lacuna é sanada agora, apesar do recorte bastante específico, até 1986. O motivo para que não tenha avançado nas décadas posteriores está ligado a questões metodológicas. “Provavelmente eu dê continuidade à pesquisa no pós-doutorado, quando talvez abarque os prédios de 1990 e dos anos 2000”, adianta.
Sociedade e arquitetura: uma relação
No total, durante dois anos, 396 obras foram mapeadas pela urbanista a fim de concretizar a pesquisa. Desse número, 58 edifícios foram visitados e 19 prédios selecionados. Eles referenciam o estudo das especificidades arquitetônicas do edifício residencial multifamiliar dentro de critérios como período histórico, adequação do lugar e inovações técnicas.
Os métodos de investigação e apuração dos dados foram os mais diversos: entrevistas com intervenientes e construtores antigos, levantamento qualitativo das obras espalhadas pela cidade e utilização do Google Earth no reconhecimento inicial dos exemplares.
Somaram-se a esses aspectos a experiência profissional de Márcia, as pesquisas bibliográficas iniciais e o conhecimento da arquitetura local na identificação visual das características tipológicas. “Para a minha felicidade, todos os arquitetos e engenheiros responsáveis pelos prédios ainda estavam vivos no decorrer do estudo. Isso porque a nossa história relacionada a edifícios se iniciou com mais dinamismo nas décadas de 1950 e 1960”, conta.
Em cada período traçado na obra, a pesquisadora registrou os diferentes aspectos que ora se sintonizam com as singularidades, ora com as universalidades no trato arquitetônico. Neste último ponto, uma vez as construções terem começado a ser produzidas por engenheiros, foi percebida a incorporação do universal nos prédios da cidade devido à falta de perfil crítico dos produtores dos edifícios de apartamento. Aí o porquê de, nessa fase, imperar mais a tecnologia e menos os aspectos culturais e climáticos do lugar.
“Quando chegam em Fortaleza os primeiros arquitetos, formados no Rio de Janeiro, eles trazem de lá, no quesito universal, a incorporação da arquitetura moderna, observada na Alemanha. Ao mesmo tempo, também trazem o pensamento de incorporação do nosso clima à arquitetura. Assim, vão fazer apartamentos voltados para captar ventilação, por meio das varandas, por exemplo. Elas são típicas de nossa cultura, aquelas mesmas presentes nas casas de fazenda”.
O ápice dessa dinâmica de pôr em diálogo os aspectos sócio-culturais da Capital e a arquitetura aconteceu no período de 1972 a 1978, a partir dos profissionais agora formados pela Universidade Federal do Ceará – caso de Fausto Nilo, Campelo Costa e Ricardo Rodrigues, por exemplo. Eles implantaram a arquitetura dos edifícios de três pavimentos, nos quais já há a presença de pilotis. Isso faz com que haja uma ventilação preservada ao nível do transeunte, em total sintonia com os aspectos climáticos locais. Os arquitetos também começaram a usar jardineira, vegetação, varandas e sombras em abundância.
A movimentação abriu caminho para o quarto e último período trabalhado no livro, sobre a liberação legal para a construção de edifícios com 15 pavimentos. Pioneiros na verticalização de Fortaleza, são eles o Hotel Esplanada, o edifício Pedro I e o Granville. “Notamos mudanças na forma de morar a partir da década de 1980, quando realmente vemos que a cidade se verticaliza. Os períodos anteriores são importantes para entendermos como aconteceram as transformações, mas elas não têm um impacto tão grande quanto depois da verticalização”, observa a pesquisadora.
Reflexos no hoje
Muito da relevância desse soerguimento de prédios cada vez mais altos na cidade deve-se, segundo Márcia, ao aumento do índice de aproveitamento – relação entre a área total construída em um terreno e a área desse mesmo terreno. Logo, onde antes havia apenas uma casa, com o tempo os proprietários perceberam o potencial econômico de transformar o imóvel num edifício com várias unidades, indo morar na cobertura e alugando os demais.
“Isso transforma principalmente os bairros onde há maior impacto da verticalização”, sublinha, referenciando a Aldeota e o Meireles como dois casos emblemáticos. Por sua vez, quando traz à tona um aspecto da legislação da cidade relacionada à construção predial, Márcia considera existir um aspecto específico da lei municipal que permite a feitura de varandas sem que elas entrem para o índice de aproveitamento.
“Essa é uma coisa benéfica para a nossa arquitetura porque precisamos de sombra. Temos muita insolação em Fortaleza. Ela é a segunda cidade mais ensolarada do Brasil, perdendo apenas para João Pessoa. Assim, precisamos proteger as nossas edificações da incidência do sol, dando conforto aos apartamentos”.
E a partir da pandemia de Covid-19, quando as pessoas passaram a estar mais nos lares e habitações? De que modo essa nova configuração social vem se refletindo na arquitetura da Capital? Simples: percebe-se a saída de apartamentos menores e uma busca cada vez maior por espaços mais amplos, assim como uma migração para morar em casa. É o que explica a construção de diversos condomínios de casas em várias partes da cidade.
“Essa realidade veio mesmo com a pandemia. Antes dela, estávamos construindo apartamentos de 35 m². Hoje, as empresas que lançaram apartamentos desse tamanho não estão mais fazendo isso, apenas a partir de 50 a 60 m²”, compara.
É aguardar o próximo livro sobre o assunto para embarcar nesses fatos que já estão entre nós, incidindo sobre o pessoal e o coletivo. A cidade, em sua extensão.
Serviço
Lançamento do livro “Edifícios de Apartamentos em Fortaleza: Universalidades e singularidades”, de Márcia Cavalcante
Nesta quinta-feira (9), às 19h, nos Jardins da Reitoria da Universidade Federal do Ceará (Avenida da Universidade, 2853, Benfica). Gratuito
Edifícios de Apartamentos em Fortaleza: Universalidades e singularidades
Márcia Cavalcante
Edições UFC
2021, 542 páginas
R$ 100 (à venda diretamente com a autora, por meio do número (85) 3512-4008)