"Ainda vivemos em senzalas", reflete ator de "O Tempo Não Para" sobre desigualdade racial
Intérprete de Menelau, David Júnior ecoa o papel relevante da novela ao debater temas como o preconceito
A atual trama das 19h da Globo estreou há menos de quatro meses com um enredo que poderia soar bobo, além de inverossímil. A história que fala sobre um grupo de pessoas do século passado encontrado congelado e que volta à vida nos tempos atuais parecia não ser atrativo o suficiente. No entanto, é no pano de fundo da produção que a obra de Mário Teixeira mostra o papel significativo para a sociedade.
Em pleno século XXI, "O Tempo Não Para" usa linguagem fácil que a faixa de horário da emissora requer para falar sobre temas como o racismo, machismo e a herança negativa da forma como foi conduzida a abolição da escravidão.
Após participação em folhetins como "I Love Paraisópolis" e "Liberdade, Liberdade", o ator carioca David Júnior, de 34 anos, ganhou com Menelau o primeiro papel de destaque na televisão. Nos capítulos recentes, o personagem procurou ajuda psicológica para entender a vida como ex-escravo de Dom Sabino (Edson Celulari). A mesma necessidade foi sentida pelo intérprete para entender os preconceitos praticados na sociedade. "Comecei a fazer terapia há pouco tempo e descobri o quanto fui tímido com minhas opiniões e posicionamentos a vida inteira por me achar menos que qualquer um. Isso mostra o quanto aquela 'herança' nos atinge até hoje", reflete o ator, em entrevista ao Verso, sobre a alforria praticada no País.
"Tenho uma luta interna e diária para poder conversar olhando no olho de alguém, coisa simples que eu nunca aprendi, sempre tive em minhas referências pessoais os olhares pra baixo e me sentia afrontoso quando olhava no olho. Tudo isso é reflexo de uma abolição que nos deixou no mesmo lugar, só que com nome de liberdade", diz.
Conflitos internos
Para o personagem, o ator prevê também uma análise dos conflitos internos. "Menelau terá que fazer terapia a vida inteira para conseguir se desconstruir e entender que, nos dias de hoje, ele deve se posicionar de igual pra igual. Não que a sociedade aceite isso, porque não é verdade, mas a luta dele diária será essa", completa.
Para David, o papel da novela é preponderante para a discussão sobre o racismo e a marginalização do povo negro. "Ainda vivemos em senzalas, ainda temos babás negras vestidas de branco, ainda temos que andar com documentos na rua para não sermos 'confundidos' com marginais, ainda recebemos os menores salários, ainda não somos vistos como referência de nada que não seja da nossa cultura afro-brasileira. Enquanto eu não assistir a essa mudança, não acho válido parar de falar sobre racismo", pontua o ator.
Ele acrescenta que já sofreu discriminação em várias situações e isso o tornou mais forte e, automaticamente, mais frio nas relações interpessoais. "Tenho dificuldade de me relacionar de coração aberto porque já espero a rejeição. Já fui parado em blitz policial estando no banco de trás do veículo, por que me viram como ameaça de sequestro, já que quem estava no banco da frente era branco. Já tive 'N' situações de racismo".
O carioca pondera que a mudança na desigualdade racial do país passa pela visibilidade do povo negro no mercado de trabalho. "A matemática é exata. Somos 54% da população, os cargos de chefia são hegemonicamente brancos e os de subalternos, negros. Precisamos mostrar ao povo que existem, sim, histórias de sucesso pessoal e profissional de negros, para que a sociedade se veja nesse lugar e, consequentemente, o mercado de trabalho É triste ver gerações que não transcendem ao histórico familiar; a avó foi empregada doméstica, a mãe e agora a filha também. Tudo isso é reflexo de um 'tapinha nas costas e se vira' que teve o nome de abolição".
Racismo estrutural
David e a atriz Olívia Araújo, que vive Cesária na novela, protagonizaram uma cena tocante no Cais do Valongo, local no Rio de Janeiro onde os escravos chegavam da África e eram comercializados. "Foi emocionante. Aquele lugar tem uma energia ímpar, onde qualquer pessoa com o mínimo de empatia se comove. Mais de 4 milhões de seres humanos passaram por aquele cais, foram arrancados de suas famílias e sua terra natal. Foi especial e doloroso ao mesmo tempo", relembra.
O ator diz que, hoje, prefere fortalecer a positividade da vida e procura compartilhar as experiências para ajudar na desconstrução das pessoas mais próximas. "Meus amigos sentem prazer em aprender junto comigo e não reproduzir o racismo estrutural que aprendemos desde pequeno. A ciência eugênica foi bem estruturada, de maneira que temos que, individualmente desconstruí-la", exalta.