A quem pertence o corpo feminino?
Neste Dia da Mulher, especialistas e pesquisadoras debatem sobre as questões de corporalidades da mulher, os julgamentos, a pressão estética e os impactos
Criticada por usar biquíni, por sair seminua no Carnaval, por aumentar ou perder peso. Assediada na rua, no ônibus ou mesmo dentro de casa. Julgada por não querer ter filhos ou por interromper uma gestação fruto de violência. Ser mulher é conviver, diariamente, com o tolhimento das decisões sobre o próprio corpo. É ter de atender aos desejos de uma sociedade construída por homens para tentar ser incluída.
Hoje, dia 8 de março, é celebrada uma luta coletiva, em que mulheres ao redor do mundo se uniram para reivindicar direitos básicos, como melhores condições de trabalho, de salários e acesso ao voto. O debate ganhou fôlego em 1908, porém, mais de 110 anos depois, nós, mulheres, ainda brigamos pelo básico.
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Não há como falar de direitos femininos sem mencionar a falta de liberdade das mulheres com relação ao corpo. Há uma dicotomia grande quando no Carnaval elas se sentem livres para usar só hot pants, mas ainda precisem lidar com o julgamento alheio ou ainda serem chamadas de gordas como aconteceu com Paolla Oliveira, por exemplo.
A atriz, inclusive, gravou um vídeo especial durante a folia questionando aos homens uma pergunta feita às mulheres desde sempre: “como se prepara para o Carnaval?”. As respostas não poderiam ser outras. “Tomando muita cerveja” e, pasmem, não deixam de comer nada nas semanas que antecedem o período. Não tem dieta restritiva nem obsessão por atividade física.
Mas por que, mesmo após tantas conquistas dessa minoria, o corpo feminino ainda é propriedade da sociedade? Por qual motivo as pessoas se sentem tão confortáveis para opinar, julgar e até humilhar mulheres por conta de características físicas?
A nutricionista e doutoranda em Saúde Coletiva, Pabyle Flauzino, reconhece que há um avanço em relação às conquistas dos direitos femininos, mas ainda há muita luta. “O corpo não é da mulher ainda quando não consegue decidir se pode engravidar ou não, quando precisa fazer uma cirurgia plástica pra conseguir acessar espaços, quando a gente precisa se proteger pra não sofrer assédio”.
“A questão do aborto, da opção de não ser mãe ou mesmo de não se casar. É preciso ainda muitos debates e avanços pra que a mulher se torne, de verdade, dona do seu próprio corpo, em que ela vai escolher o que fazer com esse corpo sem ser patrulhada, judicializada", corrobora a filósofa e doutora em Cultura Contemporânea, Malu Jimenez.
Objeto de consumo
A doutora e professora do departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e autora do livro Narcisismo e Publicidade, Fátima Severiano, explica que o corpo é algo social e cultural. Sob a lógica do capitalismo, o consumo é de subjetividades, em que um objeto ganha outros significados.
Um carro, por exemplo, representaria potência. Dessa forma, o corpo, de acordo com o sociólogo francês Jean Baudrillard e Severiano, o corpo é o mais belo objeto de consumo, se submetendo às exigências de perfeição pelas mídias e pelas redes sociais.
“As formas de controle são muito sutis. Os corpos que não atendem a determinados padrões, os que não se enquadram são tidos como fracassos. É como se você pudesse, dentro de uma lógica perversa, fazer tudo para atingir esse padrão. Se você não consegue se enquadrar, você é excluído de grupos sociais, essa seria a pior forma de punição e algo muito sutil”.
Além disso, a professora pontua que o corpo que você apresenta ao outro é quem diz quem você é. Então, o corpo pode ser fonte de sucesso, felicidade, ascensão profissional ou de todo o contrário, fracasso, infelicidade, rejeição, menosprezo.
Da capa de revista ao Instagram e TikTok
Para a professora, as redes sociais cooperam com esse processo. “Elas, através dos likes, têm como moeda de troca a autoestima, onde se produz ou não a aceitação social. Principalmente, sobre o corpo da mulher, elevado a enésima potência sobre a exigência do corpo masculino. O homem pode ser feio, gordo, mas com a mulher ainda prepondera a ditadura do corpo perfeito”.
Contudo, essa influência midiática não é de hoje. Por anos, vimos mulheres magérrimas, brancas e loiras estamparem as capas de revistas voltadas ao público feminino. Quando não, as chamadas traziam receitas mirabolantes para vencer a tão falada “guerra contra a balança”. Como não querer emagrecer quando, aparentemente, todos dizem que aquele corpo representa sucesso?
Com as redes sociais, a frequência de exposição a esses conteúdos é muito maior, segundo Pabyle, que ainda possibilitam a manipulação de imagens para modificar o que não agrada com filtros, aplicativos de edição.
“Isso aumenta a distorção da nossa imagem. Uma pesquisa mostrou que apenas sete minutos de navegação no Facebook ou no Pinterest acessando imagens de corpos são capazes de aumentar a insatisfação corporal e até levar a depressão”, ressalta.
Em 2021, o Pinterest alterou as regras da política de anúncios e proibiu publicidades com linguagem e imagens sobre perda de peso, inclusive qualquer linguagem ou imagem idealizando ou depreciando certos tipos de corpos.
Além disso, Malu acrescenta que há um nicho de influenciadores fitness que propagam esse corpo como se fosse algo conquistado por merecimento. “Parece que todas as pessoas são capazes de atingir esse objetivo, o que não é verdade. Isso causa muita tristeza, muito incômodo”.
"Faz parte da ideia de corpo produtivo no capitalismo em que a maioria das pessoas não estão contentes com os próprios corpos e consumam produtos, experiências, cirurgias, serviços, medicamentos, alimentos, exercícios. Tem um mercado bilionário de incômodo e insatisfação com o próprio corpo”.
Ódio à gordura corporal
Essa construção é tão injusta, porque o padrão de beleza vai sendo modificado ao longo do tempo. Hoje, temos um padrão que é inatingível pela maior parte da população, conforme explica Pabyle, que é um corpo magro com músculos, tonificados.
“Em consequência, temos esse ódio à gordura corporal e, nós mulheres, temos mais gordura que os homens naturalmente. A gente odeia gordura no corpo, mas a depender de onde ela esteja é aceitável para agradar homens, seja nos seios ou na bunda, ainda existe essa objetificação e isso faz com que aumente a insatisfação e a gordofobia”.
Malu, por sua vez, explica que a gordofobia vai além de um preconceito, é um estigma estrutural institucionalizado. Conforme a especialista, isso significa que a forma como a sociedade pensa, se organiza, constrói saberes é gordofóbica.
“A gente aprende desde muito pequeno na escola, em casa, lugares que deveriam nos proteger, que o único corpo saudável, feliz e belo pra mulher é o corpo magro. A gente já cresce com medo de engordar, achando que vale a pena qualquer coisa pra não engordar, cirurgias, remédios, dietas restritivas, jejuns mirabolantes", argumenta.
A partir dessa construção e desse ódio ao próprio corpo é que surgem distúrbios alimentares, como anorexia, bulimia, vigorexia, ressalta Fátima Severiano. “Todas as patologias advêm dessa forma de controle sutil, mas não menos perversa. O pior é que não tem fim nunca, porque o objetivo de consumo do corpo é sempre alterado, o padrão sempre muda”.
Impactos na vida social
Não só as psicopatologias são consequências dessa pressão estética. Há um impacto na vida social dessas mulheres, que direcionam a maior parte do tempo para se dedicar a atividades físicas, a dietas e a tratamentos estéticos diversos. “Essa guerra contra o peso corporal é um sedativo político. É uma guerra eterna, não existe um momento que para”, explicita Pabyle.
“Quantas mulheres estão focando a energia, a disposição, a eficácia delas em perder esse peso diariamente e deixando muitas outras atividades que talvez fossem muito mais importantes pra elas de lado? A gente perde muitos aspectos da nossa vida social por causa disso, perdemos a oportunidade de viver socialmente”.
Fora o aspecto financeiro, já que tudo isso tem um custo. Cabelo, maquiagem, unhas, depilação, academia, pilates, massagens redutoras, drenagem linfática, produtos de beleza... a lista quase não tem fim.
Liberdade de ser e escolher
A reportagem perguntou a essas três especialistas o que desejariam que o Dia da Mulher representasse, caso tivéssemos uma sociedade igualitária. A resposta é tão simples, mas ainda que parece tão utópica: liberdade.
“Meu desejo é que não houvesse uma colonização dos corpos que indica qual a melhor alimentação, qual o melhor tipo de corpo, tamanho, que isso não fosse colocado por um olhar masculino. Ter liberdade de ser quem se é, estar bem com o corpo e não ter o corpo sendo apontado o tempo todo, independentemente da cor, do tamanho, da identidade de gênero”, esperança Pabyle.
Malu deseja o fim da patologização e a falta de acessibilidade para mulheres gordas no mundo. "A gente está em 2023 e a pessoa morre porque não tem maca nos hospitais pra atendê-la, não existe cadeira de rodas, não existe cadeira na espera. Estamos muito atrasados nesse debate e é urgente que a gente fale sobre a gordofobia e exigir dos nossos representantes políticos medidas de acessibilidade pra essas pessoas".
Já Fátima deseja a liberdade afetiva da mulher, ou seja, a não submissão ao marido. Além da liberdade sem medo de amar, sem perder a firmeza no enfretamento dos conflitos afetivos.
“O que eu desejaria é que essas mulheres construam suas vidas pautadas no cuidado dos filhos sem o apagamento das outras dimensões da vida e do viver, que não se submetam a superar os próprios limites para atingir um corpo padrão, que possam usufruir a sensualidade do seu corpo sem objetificação e vulgarização”.