Isoladas, na companhia dos agressores. Como dizer a uma mulher vítima de violência doméstica que ela pode contar com o Poder Público para romper este ciclo? Como fazer com que a mensagem chegasse enquanto se vivia o auge da pandemia? As perguntas são ponto de partida para aperfeiçoar o trabalho das autoridades inseridas na rede de acolhimento.
Em quase dois anos e meio de pandemia, o 1º e o 2º Juizado de Violência Doméstica contra a Mulher de Fortaleza deferiram mais de 11 mil pedidos de medidas protetivas. A cada decisão, a esperança de salvar uma vida. “Afastar o homem de dentro de casa, no contexto da violência doméstica, é fazer com que um crime deixe de acontecer”, diz Rosa Mendonça, juíza titular do 1º Juizado.
A cada 30 minutos, uma mulher denuncia ter sido vítima de violência doméstica, no Ceará. No início da pandemia, uma redução drástica de 70% das notícias do crime preocuparam as autoridades: “nós percebemos que não era a violência diminuindo, mas o fato de que a mulher não podia denunciar. Reunimos toda a rede de atendimento e fizemos campanhas para promover a denúncia e falar do atendimento online”, conforme Rosa Mendonça.
A Organização das Nações Unidas (ONU) já tinha o entendimento do risco de aumento da violência contra mulheres e meninas, principalmente na América Latina e no Caribe, devido ao contexto de isolamento necessário para conter o avanço da Covid-19. Ainda em 2020, a ONU emitiu documento dizendo que “sobreviventes da violência podem enfrentar obstáculos adicionais para fugir de situações violentas ou acessar ordens de proteção que salvam vidas e/ou serviços essenciais devido a fatores como restrições ao movimento em quarentena. O impacto econômico da pandemia pode criar barreiras adicionais para deixar um parceiro violento, além de mais risco à exploração sexual com fins comerciais".
A juíza recorda que “nós precisávamos comunicar às mulheres que existe um suporte”. A mensagem se intensificou com as campanhas e quando em 2021 foi criado o 2º Juizado de Violência Doméstica contra a Mulher de Fortaleza. Sara (nome fictício), vítima de agressões morais e físicas dentro de casa entendeu que podia contar com a Justiça.
“EU NÃO QUERIA MAIS ESTAR NAQUELA RELAÇÃO”
Sara esteve casada durante 10 anos. Três filhos são frutos do relacionamento que, em 2020, a situação se mostrou para ela como insustentável.
"Teve um momento da minha vida que eu não queria mais estar naquela relação. Falei para ele que ele me tratava de um jeito que eu não gostava, que eu não queria mais aquilo para a minha vida. Quando eu pedi para ele sair de casa, ele saiu, mas começou a me ameaçar. Eu pensei que ele não era capaz de fazer nada. Ele me perseguia e eu decidi morar em outro local”, conta a vítima.
Ela pediu uma medida protetiva e conseguiu mantê-lo afastado. Até que um dia, ao deixar o filho no colégio e ir ao supermercado, foi surpreendida pelo ex.
“Ele me abordou e me derrubou. Me agrediu. Eu fui socorrida ao hospital e ele ficou preso. O Poder Judiciário me ajudou muito. Eu conheci pessoas que me deram força. Fui acolhida e até hoje ligam para mim, perguntam se ele tentou algo contra mim”, relata a mulher.
“Hoje eu quero ajudar as pessoas a se livrarem dessa violência. Hoje eu preciso dizer às mulheres que tenham coragem para enfrentar e eu sei o quanto é difícil”
MEDIDA ENQUANTO GARANTIA
Rosa Mendonça acredita que “a medida protetiva é o que há de mais importante na Lei Maria da Penha e evita feminicídios”. A juíza pede que as vítimas não voltem atrás da denúncia e que entendam a medida como um caminho de proteção para ela e até mesmo para o agressor: “Afastar o homem de dentro de casa é fazer com que um crime deixe de acontecer. É uma garantia”.
VEJA OS NÚMEROS
Medidas protetivas no 1º Juizado de Violência Doméstica contra a Mulher de Fortaleza
- 2020 - 2.746
- 2021- 2.671
- 2022 - 1.623 (até o fim de junho)
No 2º juizado de Violência Doméstica contra a Mulher de Fortaleza
- 2021 - 3.042 (ano em que foi criado o 2º juizado)
- 2022 - 1.064 (até fim de junho)
“Temos a central de monitoramento de medida protetiva, nós monitoramos se a mulher precisa de atendimento, se for caso grave de desrespeito podemos até expedir mandado de prisão. É confiar na Lei Maria da Penha, confiar e denunciar. A medida protetiva salva vidas”
A pesquisadora do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) e da Rede de Observatórios da Segurança, Ana Letícia Lins, acrescenta que o principal ganho da Lei Maria da Penha para as mulheres é a possibilidade de contar com uma legislação própria para os casos, demarcando o fato de que a violência que acomete mulheres possui um diferencial em comparação a outras violências.
"É preciso que seja dito que essas mulheres foram e continuam a ser violentadas, de diferentes maneiras, por serem mulheres. A construção sócio histórica é machista e alimenta um ideal de “posse” do homem sobre a vida da mulher", pondera a socióloga.