Dos flagelados à transposição: como o Ceará usou o legado da seca para garantir segurança hídrica
O Diário do Nordeste ouviu especialistas para entender como as gestões públicas promoveram essa transformação no Estado
Desde 1603, registros históricos indicam a ocorrência de longos e severos períodos de estiagem no Ceará. As consequências das secas, no entanto, foram mudando ao longo de séculos. Das construções dos primeiros açudes até a transposição do Rio São Francisco, com avanços na formação de uma malha de adutoras pelo Estado, os cearenses passaram a encontrar possibilidade de conviver com a estiagem.
O Diário do Nordeste ouviu especialistas para entender como as gestões públicas promoveram avanços no Estado. Apesar dessa evolução histórica, o caminho para a garantia plena da água para todas as comunidades do interior e da Região Metropolitana de Fortaleza ainda precisa ser percorrido nos próximos anos com a execução de projetos e investimento sólido.
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As grandes secas aparecem na história do Ceará, por exemplo, em 1745, 1777, 1793, 1825 e 1845. Entre 1877 e 1879, aquela que ficou registrada como a seca dos mil dias marca também as migrações de cearenses em busca de melhores condições de vida em outras regiões. Pesquisadores apontam que essa “Seca Grande” dizimou mais de 30 mil pessoas de sede, fome e doenças, com registros de chuva cerca de um quarto do total do ano anterior.
As estiagens no Ceará
Se dois anos de estiagem, entre 1877 e 1879, provocaram uma catástrofe sem precedentes há quase 150 anos, atualmente, a natureza impõe uma realidade ainda mais severa, mas a experiência pública mudou as consequências da seca sobre boa parte da população. O diagnóstico é do Secretário dos Recursos Hídricos do Ceará, Francisco Teixeira.
“Nossa gestão está atravessando todo o mandato em anos de seca. Entre 2012 e 2015, foram anos de seca. Em 2016, registramos o El Niño mais forte da história; em 2017, as chuvas foram irregulares, mas abaixo da média, assim como em 2018 e 2019. O ano em que choveu mais dentro da média foi 2020. Então temos sete anos de gestão, só com um ano de chuvas”, explica.
Levantamento realizado pela Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme) mostra que somente entre os anos de 1979 e 1983 o Ceará viveu um regime tão severo de estiagem quanto o registrado após 2012. No período mais recente, porém, a média anual de chuva foi de apenas 516 mm, enquanto a média anual de 1979 a 1983 foi de 566 mm. Ou seja, a seca que atingiu os cearenses a partir de 2012 foi a mais grave desde 1910, quando os meteorologistas começaram a registrar os dados locais.
O secretário garante que, apesar da estiagem extrema, não faltou água para os cearenses. “Nesse período, fomos postos à prova, chegamos a trabalhar com 6% da capacidade hídrica dos reservatórios e conseguimos manter o abastecimento. Não tivemos racionamento nem colapso, mas reforçamos o uso consciente e sustentável. Inovamos na gestão de recursos, com ações como a tarifa de contingência e o controle da água para agricultura irrigada”, ressalta.
Apesar do diagnóstico do governo, ainda há muitas comunidades no interior e na Região Metropolitana sem água encanada, sem poços instalados e vivendo à espera de carros-pipa. Para essas comunidades, a realidade ainda é de sofrimento e de falta de perspectivas a curto prazo. O acesso à água, embora tenha avançado, ainda segue como um grande desafio para as gestões públicas.
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Açudes, uma solução histórica
Para o engenheiro Hypérides Macedo, ex-secretário Nacional de Recursos Hídricos, a eficiência das ações públicas de convivência com a seca no Ceará fica mais evidente se comparada à situação em que vivem estados como São Paulo e Paraná, onde uma crise hídrica tem provocado racionamento e risco de desabastecimento.
Contudo, Macedo ressalta que as buscas por soluções não surgiram nos últimos anos, mas fazem parte de um conjunto de ações tomadas pela gestão pública ao longo do tempo. “As primeiras ideias mais concretas contra a seca surgiram ainda em meados de 1800, quando o imperador ordenou a formação da primeira inspetoria contra a seca e também determinou a construção do primeiro açude”, conta.
A ordem de construção do Açude do Cedro, no Ceará, foi dada por D. Pedro II, justamente na esteira da tragédia provocada pela seca dos mil dias – e usou como parte da mão de obra os flagelados da seca. “Mas sempre que vinha alguma seca mais forte surgia um volume grande de açudes. Em 1915, por exemplo, surgiram muitos açudes, assim como na seca de 1932”, afirma o engenheiro.
O papel da integração hídrica
“Mas só fazer açude não resolve. Açude é uma obra parada, pontual. Onde não tem açude, não tem água. Então, a partir do Governo Tasso (Jereissati), vieram os canais de integração, que é a grande revolução por integrar as bacias”, destaca Hypérides Macedo.
Os canais são equipamentos hídricos que possibilitam o deslocamento pelo território das águas até então restritas aos açudes, assim, trechos do território onde não havia acesso ao recurso passaram a ser abastecidos.
“Isso virou referência para o Brasil todo. Esse foi um projeto mais avançado porque conseguiu movimentar e transferir água entre os açudes e pelo território. O Castanhão, por exemplo, jamais beneficiaria Fortaleza se não fosse pelos canais da integração”, afirma o engenheiro.
Castanhão
Maior açude de usos múltiplos do Brasil, o Castanhão é um marco nas ações de segurança hídrica do Ceará e centraliza a integração das águas no Estado. O reservatório tem seus primeiros projetos datando da década de 1910. No plano prático, a obra começa a andar em 1986, com as primeiras desapropriações de terras por parte do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (Dnocs).
A sua construção efetiva começou em 1995, durante o governo de Tasso Jereissati (PSDB), e a conclusão ocorreu em 2002. Essas ações de infraestrutura deram a base para a ampliação das ações de segurança hídrica, aponta o atual secretário dos Recursos Hídricos do Ceará.
A barragem é responsável pelo abastecimento de cerca de 4,5 milhões de pessoas da Região Metropolitana de Fortaleza. “Temos uma política de 30 anos de ampliação da estrutura hídrica em que foi dada continuidade àquilo que se fazia, como a gestão, a ampliação da infraestrutura e o fortalecimento do braço tecnológico”, avalia.
O São Francisco no Ceará
Outra ação destacada pelo secretário como fundamental é a transposição do Rio São Francisco para o Ceará, que se ramifica pelo território cearense por meio do Cinturão das Águas.
“O Cinturão das Águas, que se iniciou no Governo Cid, demos continuidade, e agora temos três lotes construídos e dois em construção. Dos 145 km que temos que ficar prontos, temos 80 km já feitos”, ressalta o titular da Secretaria de Recursos Hídricos.
Em março deste ano, as águas do São Francisco liberadas em trecho já concluído do Cinturão das Águas chegaram ao Castanhão, na região do Vale do Jaguaribe, passando a abastecer a Região Metropolitana de Fortaleza.
“(Na gestão atual) seguimos com a construção de barragens, o que já se fazia ao longo da história, mas o que foi muito importante foi a operação do sistema integrado do Castanhão-Região Metropolitana de Fortaleza. Num contexto de seca, foi um desafio, tendo pouca água no Castanhão, usando um pouco do Orós, garantir o abastecimento da RMF e manter as áreas irrigadas”, afirma Teixeira.
Obra histórica
A Transposição tem seus planos iniciais nos anos 1840, período do Império, e foi discutida por diversos presidentes da República, como Getúlio Vargas, João Figueiredo, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Sua execução, porém, só foi iniciada em 2007, primeiro ano do segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A obra passou ainda por outros três presidentes, Dilma Rousseff (PT), Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (sem partido).
O Projeto de Integração do Rio São Francisco soma 477 quilômetros de extensão e é o maior empreendimento hídrico do País.
Quando todas as estruturas e sistemas complementares nos estados estiverem em operação, cerca de 12 milhões de pessoas serão beneficiadas em 390 municípios de Pernambuco, da Paraíba, do Ceará e do Rio Grande do Norte.
Ações integradas
Para o presidente da Comissão de Recursos Hídricos da Assembleia Legislativa do Ceará, o deputado estadual Acrísio Sena (PT), a segurança hídrica atingida pelo Estado só foi possível com a integração dessas ações e a execução como política de Estado, não de governo.
“Toda ação estruturante da Secretaria de Recursos Hídricos trabalha essa questão da convivência com a seca de forma integrada. Temos a integração do São Francisco, com a transposição das águas através do rio Salgado até o Castanhão, o Cinturão das Águas, o Canal do Trabalhador, a interligação de bacias, isso tudo faz parte de uma estratégia de convivência com a seca aqui no Ceará, que faz com que sejamos uma referência nacional em segurança hídrica”, afirma.
Para além das grandes obras, o parlamentar destaca ainda ações locais, que beneficiam rapidamente uma parcela da população. “Ações como a restauração de açudes, a construção de adutoras e a perfuração de poços não têm tanto impacto estruturante, mas têm a mesma importância dessas grandes obras”, aponta.
Malha de adutoras
No caso das adutoras, o uso é exaltado por especialistas em recursos hídricos por ser uma forma eficiente de extrair o restante de água de alguns reservatórios e deslocá-lo até a população por meio de um sistema de tubulações, o que isenta do risco de evaporação.
A adoção desse tipo de equipamento passa por expansão no Ceará. Além do programa de Adutoras de Montagem Rápida (AMRs), o Estado investe, desde o ano passado, no projeto Malha D’Água, que prevê a implantação de 35 sistemas adutores e quatro eixos de adutores de integração, totalizando um investimento da ordem de R$ 5,55 bilhões de reais.
“O projeto Malha d’Água surge para o Sertão porque percebemos que não adiantava ter a adutora só para uma cidade durante a seca, precisávamos de adutoras mais robustas, vindas de açudes menores. Então é uma grande inovação, porque serão mais de 30 sistemas trazendo águas de açudes mais resistentes à seca, com estação de tratamento lá, então a água já vem tratada, sem perdas na movimentação, dando capilaridade pelo Estado”, explica o secretário Francisco Teixeira.
Atualmente, um dos sistemas foi licitado, o Banabuiú-Sertão Central, e, quando concluído, deve beneficiar 250 mil pessoas, de nove municípios. Ao todo, o projeto Malha d’Água atingirá 179 municípios cearenses, chegando a 6,3 milhões de pessoas.
Em busca de água
Já os poços também cumprem papel de destaque no abastecimento de parte da população. "Desenvolvemos o maior programa de poços do Ceará. De 2015 para cá, construímos quase 9 mil. A Sohidra (Superintendência de Obras Hidráulicas) tem 34 anos e, ao longo desse tempo, construiu 15 mil poços. Ou seja, mais da metade foram feitas nos últimos sete anos”, ressalta Teixeira.
Em meio à estiagem, cidades inteiras passaram a ser abastecidas com água subterrânea. Municípios como Boa Viagem, no Sertão de Canindé, já receberam mais de 200 poços. Em Pedra Branca, em virtude das baixas vazões encontradas nos poços construídos, uma rede de chafarizes foi montada na malha urbana como alternativa.
“Isso foi uma revolução que salvou muitas comunidades e cidades. Começamos a construir em uma quantidade imensa para atender a população do Sertão, isso foi uma quebra de paradigmas, porque há regiões no Ceará em que está há 10 anos com estiagem, e esses poços que têm salvado vidas”, afirma o secretário.
Futuro
Entre as ações de expansão, Teixeira aponta ainda a dessalinização. "Em síntese, para a Região Metropolitana temos a planta de dessalinização, além da transferência das águas do São Francisco. Para o Interior, são três componentes: o projeto São Francisco, o Cinturão das Águas, e o projeto Malha d’Água, todos interligados”, conclui.