Pandemia da Covid-19 adiou eleição, acelerou digitalização da campanha e testou poder de adaptação do processo eleitoral
As mudanças ocasionadas pela chegada da Covid-19 no Brasil e no Ceará impuseram mudanças em diversas áreas, inclusive na política

"Até o momento, não se sabe ao certo o tempo necessário desse afastamento (social) para minimamente controlar o pico de expansão do vírus nem o prazo necessário para que se garanta a ampliação da capacidade de atendimento do sistema de saúde, ou mesmo, a descoberta de um medicamento ou vacina que possa conter doença. É nesse contexto que se propõe, de forma prévia, o adiamento das eleições municipais deste ano de 2020".
Pouco mais de dois meses depois da Organização Mundial de Saúde (OMS) decretar a pandemia da Covid-19, senadores brasileiros iniciaram a análise da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para modificar mais um pedaço da rotina dos brasileiros: a data da escolha de prefeitos e vereadores.
O primeiro domingo de outubro deixaria de ser a data do 1º turno — quando a ampla maioria de gestores e todos os parlamentares é eleita —, enquanto o último domingo do mesmo mês não seria mais a data do 2º turno. Novembro foi, excepcionalmente, o mês das eleições — a mais marcante, mas não a única diferença do pleito de 2020 em relação a todos os outros realizados até então e mesmo depois daquele ano.
Veja também
O primeiro a citar a possibilidade de adiamento das eleições foi o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. "Eleição no meio deste ano é uma tragédia", disse. "Está na hora de o Congresso olhar e falar assim ó: 'Adia, faz um mandato tampão desses vereadores e prefeitos'", defendeu o então ministro e deputado federal licenciado.
O mês de março de 2020, assim como em outros anos eleitorais, era importante no calendário eleitoral. Esse era o período da janela partidária, quando os vereadores podem mudar de partido sem risco de perda de mandato. É também o prazo para filiações de quem deseja concorrer às eleições realizadas no ano.
A fala do ministro iniciou debates — como a possibilidade de prorrogação dos mandatos de prefeitos e vereadores para o ano seguinte ou mesmo depois — e reacendeu a discussão de proposições antigas, como a unificação das eleições municipais e gerais. Sem a certeza de como a pandemia evoluiria, os embates políticos eram travados em um cenário imprevisível.
No entanto, qualquer possibilidade de prorrogar mandatos acabou sendo descartada. "Houve a consolidação da periodicidade das eleições, mesmo diante de desafios", pontua a professora de Direito Eleitoral da Universidade Federal do Ceará, Raquel Machado. "A percepção de que é possível fazer campanha em qualquer cenário e participar politicamente em qualquer cenário e que a política é muito importante, porque naquela época se percebeu como as políticas mudaram muito o rumo de cada sociedade", completa.
Veja também
As novas datas das eleições foram definidas em junho de 2020, com a aprovação da PEC pelo Senado Federal e depois pela Câmara de Deputados: 15 de novembro e 29 de novembro para os dois turnos da votação. O texto da Emenda Constitucional também faz modificações no restante do calendário eleitoral, como os prazos para campanha eleitoral e as datas para diplomação dos eleitos.
O norte da discussão — que teve duração de um mês nas casas legislativas que formam o Congresso Nacional — era a certeza de que, independente da data de votação, os novos prefeitos e vereadores precisavam estar empossados no dia 1º de janeiro de 2021.
Mudanças aceleradas pela pandemia
A digitalização, em 2020, não era uma novidade, claro. Mas o lockdown vivenciado em diversos estados, com a impossibilidade ou, pelo menos, restrição na circulação, diversos processos antes feitos presencialmente, precisaram passar para o virtual — inclusive com a implementação de novas ferramentas.
Procedimentos importantes durante o ano eleitoral que precisaram ser feitos de forma digital em 2020, tiveram a possibilidade incorporada nas eleições seguintes. Os registros de candidaturas, por exemplo, passaram a ser feitos exclusivamente pelo sistema CANdex.
As convenções partidárias também foram realizadas de forma virtual em 2020 — modelo que continuou a ser adotado em 2022 e 2024, caso fosse escolha do partido. Em alguns casos, a legenda ou federação optou, nos pleitos recentes, em realizar a convenção de forma híbrida. As atas também passaram a ser encaminhadas de forma digital para a Justiça Eleitoral.
Veja também
Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil — Secção Ceará (OAB-CE), Fernandes Neto explica que as comunicações feitas pela Justiça Eleitoral também foram levadas ao digital, inclusive com adesão a aplicativos de mensagens instantâneas, como o WhatsApp.
"Por exemplo, as audiências na Justiça Eleitoral... Na Justiça comum também, mas principalmente na Justiça Eleitoral, as audiências passaram a ser realizadas quase que totalmente por videoconferência", cita Fernandes Neto. Houve ainda a mudança nas sessões dos tribunais eleitorais, feitas exclusivamente por videoconferência em 2020, mas que ainda hoje permitem a participação híbrida dos magistrados.
Contudo, a imposição da virtualização também trouxe percalços. Coordenador do Centro de Apoio Operacional Eleitoral (Caopel) do Ministério Público do Ceará, o procurador de Justiça, Emmanuel Girão, relembra as dificuldades encontradas por promotores eleitorais, principalmente em uma eleição municipal. "Nós tivemos dois grandes problemas. Primeiro, a fiscalização teve que ser feita quase toda de forma remota pelos promotores eleitorais. E segundo, houve muito descumprimento das regras sanitárias, principalmente em relação a eventos com aglomeração, comícios e carreatas", cita Girão.
O acompanhamento do Ministério Público Eleitoral teve que ser feito de forma ainda mais criteriosa nas redes sociais, que se tornaram ferramenta indispensável para os candidatos que concorreram a cargos nas eleições de 2020.
Fiscalizações presenciais eram raras e costumavam ser feitas com o apoio de profissionais que estavam nas ruas, como policiais militares — responsáveis por fiscalizar os decretos de isolamento social. "Alguns promotores foram a campo e contraíram a Covid. Então, realmente, foi uma situação muito difícil", lembra Girão.
A isso, somava-se o fato de que novas infrações podiam ser realizadas por candidatos e apoiadores: o descumprimento das medidas sanitárias, conforme citado por Girão. Ele fala que muitos candidatos "afrontaram" decisões judiciais proibindo a realização de eventos, por exemplo. "Acho que eles apostaram na impunidade, mas houve a imposição de multa e depois essas multas foram confirmadas. Alguns candidatos até hoje estão tendo problemas porque foram multas de valor elevado", diz. No Ceará, por exemplo, candidatos chegaram a ser condenados a pagar multa de R$ 200 mil.
Digitalização da campanha eleitoral
As redes sociais vinham em uma curva crescente de importância no processo eleitoral, com exemplos como a eleição de Jair Bolsonaro (PL) — candidato com tempo de propaganda irrisório no rádio e na TV, mas com grande força nestas plataformas — para a presidência da República em 2018. Contudo, as restrições causadas pela pandemia da Covid-19 tornou o uso das redes sociais "imprescindível" nas eleições de 2020, define a professora de Teoria Política da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Monalisa Torres.
"Não à toa, se você chega hoje no interior, em uma eleição municipal, todo candidato tem rede social, todo candidato faz propaganda para rede social", diz. "As eleições não podem mais ser pensadas sem essa ferramenta de comunicação".
O crescimento da importância dessas plataformas, no entanto, não é consequência exclusivamente da campanha eleitoral realizada em 2020, mas, novamente, a velocidade de apropriação das redes sociais como estratégia de comunicação acabou sendo acelerada em uma campanha onde elas eram um dos poucos canais disponíveis.
Com isso, figuras políticas com décadas de experiência e que tinham permanecido distantes destas plataformas até ali, viram-se forçadas a adaptar-se de maneira mais rápida às tecnologias disponíveis. Candidatos experientes passaram a fazer dancinhas e aderir a trends, realizar lives de eventos de campanha e conversar diretamente com o público por meio dos perfis nas redes sociais — algo que permaneceu mesmo depois da campanha de 2020.
Veja também
O que nem sempre surte o efeito desejado. "Em alguns casos, quando você vê algumas figuras tentando projetar uma imagem que não cabe. O João Campos fez sucesso demais nas redes sociais pintando cabelo, fazendo dancinha. Então, às vezes, tem gente tentando reproduzir e remular pelas redes sociais uma imagem semelhante, de moderno, de atualizado, de descolado, mas fica até caricato", pontua Torres.
Fernandes Neto destaca o crescimento de importância de profissionais especializados, como o social media. "Hoje, quem não é visto na internet não é lembrado em uma campanha", pontua. "E não só nas campanhas eleitorais, mas na vida cotidiana de todo e qualquer candidato da política".
"Esse período trouxe uma sensação de que — assim como a sociedade está em constante transição, e permanece —, nesse período depois da Covid, eu sinto como se as campanhas tivessem permanecido. Elas são permanentes, elas não são descontinuadas. Ou seja, eu terminei a campanha aqui para prefeito, mas nós já estamos vivenciando, de uma certa forma, muito da eleição presidencial de 2026. O tempo, nas redes sociais, é medido de uma forma diferente".
Apesar disso, ainda há limitações. "Muito se fala da democratização da internet, mas ela ainda não chega, não tem esse alcance em todos os lugares", pontua Torres. Durante as eleições de 2020, como citado por Emmanuel Girão, existiram diversas infrações as normas que proibiam aglomerações — o que chegou a gerar pedidos de abuso de poder político quando havia recorrência do descumprimento das normas sanitárias.
"Mas veja: por que não foi respeitado? Porque a comunicação que funciona lá é outra. As pessoas vão para a rua. Na campanha, as pessoas se envolvem. Parte da gramática e da cultura política, quando se refere a eleições, é esse corpo a corpo na rua. É o corpo a corpo na rua que funciona".
"Naquele período de restrição, óbvio que eles tiveram que se adaptar e criar outros mecanismos", ponderou ela. Mas as redes sociais não foram a única estratégia utilizada. Ela lembra, por exemplo, que, no Interior, vereadores e líderes comunitários foram acionados para fazer essa campanha 'de porta em porta', mas em menor escala.
"Uma das formas de comunicação quando se fala de campanha no Interior não é necessariamente as redes sociais, mas as rádios comunitárias ocupam um lugar muito mais presente na vida das pessoas do interior. Quase todo mundo tem um rádio em casa, nem todo mundo tem um celular. Ou, quando tem, não é qualquer lugar que tem acesso à rede", acrescenta.
São exatamente essas especificidades da campanha de uma eleição municipal que tornaram o processo de adaptação à realidade imposta pela pandemia da Covid-19 mais complexa. Emmanuel Girão defende, por exemplo, que se naquele ano houvesse eleições gerais, talvez alguns desafios teriam sido minimizados. "Nas eleições gerais não tem tanto esse contato corpo a corpo como tem na eleição municipal", justifica.
"Foi algo totalmente excepcional, fora da curva, que a gente teve que se adaptar, teve que usar de muita criatividade para garantir que as eleições acontecessem. Tinha que haver a renovação de mandato, não tinha como prorrogar mandato, não tinha como os municípios ficarem sem gestores. Então, foi um grande desafio que a gente conseguiu vencer".