Águas do São Francisco no Castanhão: as polêmicas e os embates políticos de obras históricas

A chegada das águas da transposição ao maior reservatório do Ceará era uma expectativa de décadas e deve continuar como destaque em discursos eleitorais e disputas por "paternidade do feito"

Escrito por Flávio Rovere , flavio.rovere@svm.com.br
Castanhão
Legenda: Açude Castanhão tem sofrido com baixo volume de água devido às poucas chuvas no Estado nos últimos anos
Foto: Honório Barbosa

A chegada das águas do Rio São Francisco ao Castanhão, maior açude do Brasil, é, por vários motivos, considerada um fato histórico de imediato. Ela liga duas obras de grande porte e alto investimento, que uniram esforços estaduais e federais e atravessaram diferentes gestões, com impactos, embargos e polêmicas pelo caminho, para, no fim, representarem grande ganho de capital político para os envolvidos nos empreendimentos.  

A diferença é que, ao contrário do Castanhão, a Transposição do São Francisco deve ser objeto de intensa disputa de mérito, a chamada “paternidade da obra”, no cenário de briga por votos nordestinos em 2022. 

Uma obra secular 

A Transposição tem seus planos iniciais nos anos 1840, período do Império, e já foi discutida por diversos presidentes da República, como Getúlio Vargas, João Figueiredo, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Sua execução, porém, só foi iniciada em 2007, primeiro ano do segundo mandato de Luís Inácio Lula da Silva.  

A obra passou por ainda por outros três presidentes, Dilma Rousseff (PT), Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (sem partido), calhando de ser concluída por aquele que entregou o menor trecho entre os quatro. No entanto, o atual presidente da República deve utilizar como trunfo político a materialização de um projeto de longa data: a chegada da água.  

Bolsonaro transposição Ceará
Legenda: Presidente Jair Bolsonaro na chegada das águas do São Francisco ao Ceará
Foto: PR

A postura, naturalmente, gera críticas de adversários. 

O deputado federal cearense José Guimarães (PT) é um deles. O petista aponta os méritos do colega de partido.  

“O DNA dessa obra é o DNA do Lula. Contra tudo e contra todos, ele chamou, na época, o José Alencar (ex-vice presidente) e o Ciro Gomes (então ministro da Integração Nacional) e disse: ‘Toquem. Organizem. Planejem. Licitem. Eu quero começar essa obra’. As águas chegaram por quê? Porque nós tivemos um presidente visionário, que resolveu encarar e executar uma obra que ninguém teve coragem ao longo dos séculos. Quando tiraram a Dilma, a obra tinha 89,9% executados. O Bolsonaro não fez nem 2% dessa obra. Isso é uma picaretagem política, querer fazer festa com o chapéu alheio”, critica. 

Já o pedetista André Figueiredo também traz para o seu partido a avaliação sobre as contribuições realizadas ao longo da obra e enaltece o trabalho do ex-ministro.  

Lula, Ciro e Cid
Legenda: Lula, Ciro e Cid Gomes em visita às obras da transposição, em 2006

“Sem dúvida alguma, a paternidade de uma obra que foi planejada pelo ex-ministro Ciro Gomes, com autorização do então presidente Lula, deve-se a esses dois nordestinos, que iniciaram, planejaram, começaram a execução, cuidaram de licenciamento, enfrentaram resistências e, enfim, tiraram do papel algo que vinha desde o século XIX”, argumenta.  

André ressalta a "determinação” de Ciro em tirar o projeto do papel e compara a obra ao Canal do Trabalhador, inaugurado pelo então governador cearense em 1993. “Foi uma obra executada em 100 dias. Então, sem dúvida alguma, essa visão do Ciro foi um norteador para o ex-presidente Lula”, avaliou. 

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Danilo Forte (PSDB) foi um dos parlamentares que acompanharam o presidente Jair Bolsonaro no evento que marcou a chegada das águas ao reservatório de Jati, no Cariri, em junho do ano passado. 

Sobre a obra chamada por ele de “redentora”, o deputado federal adota discurso mais conciliador.  

“O crédito vem desde Dom Pedro II, que foi quem anteviu tudo isso. Desde então, todos que passaram pela política e têm interesse no Nordeste, e sentiram a aflição e a angústia do povo nordestino, sabiam que a solução do problema, principalmente para o Nordeste oriental, era a Transposição. Eu acho que todos têm mérito, independente de política partidária e ideológica, e quem ganha é o Nordeste”, reforça. 

O encontro das águas de grandes obras 

Inaugurado no final de 2002 pelo então governador Beni Veras, vice de Tasso Jereissati que assumiu o Governo quando este se desvinculou do cargo para concorrer ao Senado, o Castanhão tem seus primeiros projetos datando da década de 1910.  

No plano prático, a obra começa a andar em 1986, com as primeiras desapropriações de terras por parte do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (Dnos) e tem a execução iniciada por Tasso em 1995.  

O processo de construção do reservatório guarda algumas semelhanças com a Transposição, como problemas com desapropriações, resistência de comunidades afetadas e paralisações nas obras. Por outro lado, a obra não ensejou grandes disputas por “paternidade”. 

Construção do Castanhão
Legenda: Construção do Castanhão, em 1988

É a avaliação que faz o cientista político Cleyton Monte. “Não vejo disputa política em torno dele. Primeiro porque o Castanhão foi inaugurado em um momento de alinhamento do Tasso Jereissati com o Fernando Henrique, então ali você não tinha uma disputa, era o mesmo projeto. E, no Ceará, se tem um tema que agrega todas as políticas de todos esses partidos é a questão dos recursos hídricos. Todos eles acabam de certa forma alinhados em relação a isso, que aqui é uma questão de Estado. Praticamente são as mesmas políticas desde o Governo Tasso, Lúcio, Cid, Camilo. Em questão de investimento também. Então não há uma conflitualidade aí”, pontua. 

O cenário é outro quando se volta os olhos para a transposição do São Francisco. 

Influências na corrida presidencial 

Com o cenário político polarizado e tendendo ao acirramento crescente desde a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que tornou Lula elegível, a tendência é que a disputa pelos méritos de tornar a Transposição uma realidade seja componente fundamental na disputa por votos no Nordeste em 2022. É o que aponta a cientista política Monalisa Torres.

“É óbvio que aquele que entregou o trecho vai querer tirar proveito disso. São obras que afetam diretamente a vida da população. Não só do ponto de vista individual, porque está levando água para o morador da comunidade, mas também do ponto de vista econômico, porque muitas atividades dependem desse fornecimento de água”, pontua. 

Para a cientista política, outras obras inconclusas que atravessaram gestões e foram retomadas por Bolsonaro, como a ferrovia Transnordestina, devem ser trazidas ao debate político.  

“Você tem agora no cenário duas candidaturas fortes que se antagonizam, e tem a tentativa de um centro que ainda pensa em construir e viabilizar uma candidatura que possa unificar os polos. Então qualquer ativo que possa ser utilizado para capitanear alguém no cenário político vai ser mobilizado, e quanto mais próximos da eleição estivermos, mais essas alternativas vão ser mobilizadas”, analisa. 

Críticas ao viés salvador da transposição 

Estudioso da problemática da seca, o historiador Frederico de Castro Neves critica o viés “salvador” atribuído à Transposição.  

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Legenda: Açude Castanhão em 2008

“Creio que a eficácia da obra é mais política do que econômica ou social, a não ser que consideremos somente o problema do abastecimento de água para as cidades. O fenômeno da seca não se resume ao aspecto de falta de água, e a chamada ‘indústria da seca’ viveu e vive, desde o século XIX, da ilusão de que a acumulação de água iria resolver os problemas da miséria e da fome. As obras de acumulação de água (açudes, canalizações, transposições...) se tornaram cada vez maiores e mais caras, exigindo da sociedade esforços cada vez maiores, fazendo, contraditoriamente, aumentar a área sujeita ao fenômeno da seca, assim como agravando as condições de vulnerabilidade das populações camponesas pobres”, argumenta. 

O pesquisador destaca o papel decisivo que as obras hídricas costumam ter na Região.

“O Castanhão, o Orós, o Cedro, o Banabuiú... e todos os outros açudes foram objetos de intensas disputas políticas, exatamente pelo valor simbólico que têm. Assegurar-se de que a obra esteja vinculada a determinados círculos políticos é parte do financiamento social e de todas as dimensões econômicas que uma obra desse porte representa. Todas as disputas eleitorais no Ceará passam por essas obras”, afirma. 

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