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Como a declaração de Lula sobre Israel pode impactar na política internacional do Brasil

Especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste visualizam possível reforço da liderança de Lula no Sul Global depois do episódio e alegam que repercussão interna é um sintoma da polarização política

Escrito por Bruno Leite , bruno.leite@svm.com.br
Lula na áfrica
Legenda: Fala polêmica aconteceu durante evento que reuniu representantes de 54 nações africanas. Lula participou da ocasião como convidado.
Foto: Ricardo Stuckert / PR

Uma fala que traça um paralelo entre traumas de grupos étnicos, o acirramento de um conflito que se arrasta por mais de sete décadas e um presidente que chegou ao comando de uma potência do Sul Global em meio a uma polarização política. A soma de fatores fez com que uma fala do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) reverberasse negativamente nos últimos dias e trouxesse uma crise diplomática para o Itamaraty.

Tudo aconteceu no sábado (17), quando o chefe de Estado esteve, como convidado, na 37ª Cúpula da União Africana, evento realizado na Etiópia e que reuniu mandatários e integrantes de governos de 54 países africanos. Na oportunidade, ao responder perguntas para uma plateia de jornalistas, o ex-metalúrgico falou sobre as potencialidades das nações localizadas abaixo da Linha do Equador no cenário econômico e na geopolítica mundial. 

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Entre um ou outro assunto, um ponto não passou desapercebido: a classificação de genocídio, aplicada por Lula à tragédia vivida pelo povo palestino na Faixa de Gaza, vítima da guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas, que detém o controle da região.

Nas palavras do líder, o episódio traumático não está sendo percebido pelas potências mundiais, mas se assemelharia ao Holocausto, cometido pela Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial, que matou 6 milhões de judeus e pessoas de outros grupos minoritários.

Em decorrência do acontecido, na última segunda-feira (19) o governo israelense convidou o embaixador do Brasil em Tel Aviv, Frederico Meyer, para uma visita ao Museu do Holocausto Yad Vashem e o submeteu a uma reprimenda pública. Lula foi declarado pelos israelenses como "persona non grata" - alguém que não é bem-vindo no país. Como resposta, o Planalto convocou o diplomata a voltar para casa.

A atitude ainda foi alvo de debate na mídia e no Congresso Nacional, onde, na terça-feira (20), parlamentares se posicionaram contra - e também de maneira favorável - ao que foi dito. 

O presidente do Senado, o senador Rodrigo Pacheco (PSD), inclusive, rechaçou a comparação feita pelo presidente da República. "Ainda que a reação perpetrada pelo governo de Israel venha a ser considerada indiscriminada e desproporcional, não há como estabelecer um comparativo com a perseguição sofrida pelo povo judeu no nazismo", pontuou. Segundo ele, a fala do petista seria "equivocada" e fugiria da tradição moderada da diplomacia nacional. 

Na Câmara dos Deputados, um pedido de Impeachment foi protocolado pela deputada federal Carla Zambelli (PL) na quarta-feira (21). Assinado por mais de cem membros do Parlamento, a solicitação de impedimento argumenta que o presidente cometeu crime de responsabilidade ao proferir a declaração. 

A fim de ampliar o debate sobre o tema e entender os contornos do cenário, o Diário do Nordeste conversou com especialistas em política externa. Na interpretação dos entrevistados, a postura assumida pelo petista não é um fato novo e demarca posições, seja de liderança ou de oposição em relação a ofensiva de Israel. A repercussão internacional, na visão dos estudiosos consultados pela reportagem, é menor do que a vista internamente, graças ao clima polarizado.

Mudança de rota

Conforme o professor Magno Klein, do curso de Relações Internacionais da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), os impactos do ocorrido no âmbito doméstico ou no campo exterior devem ser avaliados separadamente, pois representam comportamentos diferentes.

"A fala pode ser considerada como radical, como agressiva em relação a Israel e solidifica um afastamento entre os dois países, que não começa agora, vem iniciando desde a tentativa brasileira de questionar os possíveis excessos causados por Israel na sua reação ao ataque terrorista causado pelo Hamas", iniciou, citando o apoiamento brasileiro a denúncia de genocídio apresentada pela África do Sul em Haia pela ofensiva militar em Gaza.

Que diferenciou em seguida: "Em termos de liderança e respeito internacional, o presidente Lula está lidando num contexto internacional de grande polarização, em que uma postura tradicional do governo brasileiro, de ficar em cima do muro ou de ser um mediador, tem se tornado cada vez mais difícil e isso pode explicar essa postura mais agressiva na declaração brasileira em relação a Israel".

Denúncia da áfrica do Sul
Legenda: Brasil apoiou denúncia contra Israel, oferecida pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça, sediada em Haia, na Holanda.

Ao que mencionou o docente, o movimento faz com que haja uma aproximação do Brasil com posturas mais moderadas com relação ao conflito, mas ainda mantendo uma inconstância quando comparado com a posição de países do Sul Global, incluindo membros da liderança do BRICS - bloco econômico do qual também faz parte - e que são mais críticos à conduta israelense. 

Além da investida discursiva que compara o massacre palestino com o Holocausto, Klein lembra que, na esfera judicial, medidas estão sendo tomadas por outros países para que seja apurada as denunciadas práticas de genocídio.

Na interpretação dele, a fala é "surpreendente", porque dificulta uma mediação, comum a estratégia adotada historicamente pelo Ministério das Relações Exteriores, mas pode denotar uma compreensão governamental.

"Uma das teorias que levanto é a possibilidade de que, aparentemente, a fala não ter sido programada, já deve estar, no âmbito do governo brasileiro, uma percepção de que não há diálogo possível com o governo de extrema-direita de Israel".
Magno Klein
Professor de Relações Internacionais da Unilab

Revanchismo e sanções

No fim de janeiro, um esquema de espionagem ilegal conduzido pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), veio à tona. Cerca de 30 mil pessoas foram vítimas.

Os dados obtidos pelas equipes eram guardados no território de Israel, onde está a sede da empresa responsável pelo programa que espionava os brasileiros. Questionado sobre a possibilidade da "radicalização" de Lula ser um reflexo deste fato, Magno alegou que não acredita nessa possibilidade, apesar do alinhamento de Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro israelense, com Bolsonaro. 

"Não acredito que aconteça revanche particularmente em relação a atuação de empresas israelenses em casos de espionagem porque, até onde sei, não há uma atuação direta do governo. Porém, o governo Netanyahu guarda uma grande afinidade com governos de postura de extrema-direita, como aconteceu com a administração Bolsonaro. Então, ele já tinha uma postura mais favorável a outros candidatos e, certamente, isso entra no discurso da política doméstica de polarização", pontuou.

Indagado sobre possíveis sanções, Klein foi enfático ao indicar que as reações internacionais esperadas "são poucas". "A capacidade de influência israelense em termos econômicos no Brasil é pequena, porque temos uma pequena tradição de relações econômicas", enfatizou. "E não há ainda a perspectiva de que governos aliados a Israel façam o mesmo", interpretou.

O entendimento é o mesmo revelado por Geraldo Adriano Campos, coordenador do Centro Internacional de Estudos Árabes e Islâmicos (CEAI) e professor do Departamento de Relações Internacionais na Universidade Federal de Sergipe (UFS), que não crê em penalidades da comunidade internacional diante do fato. 

O pesquisador observou que, até o momento, mesmo com especulações, não houve nenhuma manifestação de países no sentido de punir o Brasil pela fala. "As coisas em Política Internacional costumam ter reações mais rápidas", constatou. 

"Eu, pessoalmente, não acho que isso vá ser motivo para sanções. Aliás, uma comunidade internacional que não é capaz de sancionar Israel, que está cometendo genocídio, vai sancionar o Brasil por uma fala do presidente criticando esse genocídio? Seria uma coisa histórica, seria risível", ponderou. 

Debate é interno

A disputa, ao que alegou Geraldo Campos, estaria ganhando maior ênfase na agenda pública brasileira, numa "apropriação política nacional". "Acho que isso tem sido mais mobilizado pela política nacional, por setores de oposição a política do governo e por setores da sociedade civil", complementou. 

O especialista se disse impressionado com a repercussão negativa, apesar de nacionalizada, diante de um evento que vitimou mais de 30 mil pessoas, em sua maioria mulheres, crianças e adolescentes. "Parece que o fato de um genocídio atual ficou menor do que a repercussão de uma comparação que o presidente Lula fez, que vem sendo considerada por alguns setores como inapropriadas", criticou.

Segundo o entrevistado, não é possível mensurar ainda de que maneira a discussão irá resvalar na condição de líder de Lula, em sua imagem pública.

"Numa avaliação imediata, diante dos últimos dias, não vimos repercussões, reprimendas ou falas condenatórias de grandes lideranças mundiais. Pelo contrário, Lula falou numa audiência do Sul Global, num fórum na África com vários países, justamente num contexto em que a ampla parte da comunidade internacional está condenando o genocídio que Israel está cometendo".
Geraldo Adriano Campos
Professor de Relações Internacionais da UFS

Campos lançou luz sobre a íntegra da declaração de Lula, que destacou uma ausência de medidas que pudessem encerrar a guerra em Gaza e uma falta de compadecimento das potências globais diante da situação naquela parte do Oriente Médio. "O que o Lula falou, extraíram uma parte, uma frase, meia dúzia de palavras", relatou. 

Ele lembrou também manifestações favoráveis de alas da comunidade judaica no Brasil, como a do coletivo "Vozes Judaicas por Libertação", que publicou uma nota em defesa de Lula na Folha de S. Paulo nesta terça-feira (20). "A comunidade judaica não é unânime, não é um bloco monolítico, é diversificada, como todas outras. Uma parte é crítica a Israel. Essa parte denuncia e entende que Israel está praticando um genocídio", ressaltou Campos.

Conduta latina

Para Andrea Califano, do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o comportamento brasileiro não difere de uma tendência observada no restante da América Latina, "uma das regiões em que a atuação de Israel é vista de um jeito mais crítico". Ele citou, como exemplos dessa condução latina, atitudes de democracias como a da Colômbia e do Chile, que contestaram a atuação israelense.

Um reflexo positivo é possível, ao que considerou Andrea, uma vez que pode haver um reforço do reconhecimento de Lula graças a compostura assumida. "Eu acho bem relevante que a fala foi feita num contexto de reunião com lideranças da África, na Etiópia. Acredito que pode reforçar a liderança dele internacionalmente, principalmente dentro dos grupos de países que já foram colonizados", relatou.

O docente da UFBA admitiu que a "a fala pode ter sido não cuidadosa", entretanto, há uma mensagem que foi apoiada por uma parcela do povo judaico, que denuncia um extermínio em massa de um determinado grupo étnico.

"Não é legal fazer comparação, não é legal fazer uma hierarquia entre tipos de genocídio - é uma coisa muito racista, inclusive -, mas agora há claramente uma vítima, de modo semelhante ao que aconteceu na Segunda Guerra Mundial no contexto Holocausto, em que se tinha claramente uma vítima".
Andrea Califano
Professor do PPGRI da UFBA

Ele concordou que as sanções de Israel contra o Brasil, caso ocorram, não terão maiores implicações. No entanto, o cenário atual está sendo marcado por uma nos indicadores de sanções, principalmente feitas pelos Estados Unidos, que as utilizam como um meio tradicional da política externa e comercial, onde são priorizadas relações com "países amigos", um mecanismo chamado na linguagem especializada de "friend-shoring". 

A diplomacia brasileira, apesar disso, se equilibra entre boas relações, com a potência norte-americana e com demais nações emergentes, sobretudo as que compõem o BRICS. 

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