O que a fala de Lula sobre Holocausto em Gaza diz sobre genocídios ‘silenciados'

Se ficarmos apenas no período dos séculos 19 e 20, o mundo testemunhou uma série tão atroz de genocídios

Legenda: Holocausto foi o assassinato em massa de judeus nos campos de extermínio nazistas durante a segunda guerra mundial
Foto: Freepik

No domingo 18 de fevereiro de 2024 o presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou em discurso que "o que está acontecendo na Faixa Gaza não existe em nenhum outro momento histórico, aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus". A comparação sacudiu placas tectônicas diplomáticas nas políticas internas e externas, indo de pedidos de impeachment do mandatário petista protocolado pela oposição à declaração de que Lula é ‘persona non grata’ para o governo de Benjamin Netanyahu.

A resposta oficial do governo israelense foi dada no memorial às vítimas do Holocausto como que para dar um recado ao governo do Brasil: Hitler e o massacre do Holocausto são horrores que não deveriam ser envolvidos nas questões políticas do presente.

Mas o que foi o Holocausto?

O Holocausto foi o assassinato em massa de judeus nos campos de extermínio nazistas durante a segunda guerra mundial. Cerca de 6 milhões de membros deste povo foram mortos, dois terços dos judeus que viviam na Europa. Foi um dos eventos mais sombrios da história recente. Ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial, o regime nazista liderado por Adolf Hitler promoveu um genocídio sistemático contra grupos considerados "indesejáveis", “inferiores”, “descartáveis”. Não apenas judeus foram perseguidos, por vezes esquecemos dos ciganos, homossexuais, deficientes, negros, objetores de consciência e outros opositores, com esses, os mortos passam facilmente de dez milhões.

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Este horror foi resultado de uma ideologia baseada em ódio, intolerância e supremacia racial, marcando uma das páginas mais sombrias da história da humanidade e destacando a necessidade contínua de lembrança, reflexão e prevenção contra o extremismo e a discriminação.

O Holocausto teve um impacto devastador não apenas na comunidade judaica, mas também na consciência global sobre os horrores do fanatismo e da intolerância. Além das vítimas diretas, suas famílias e comunidades foram profundamente afetadas, e as cicatrizes desse período ainda ressoam hoje.

Esse assassínio sistêmico e institucional serve como um lembrete doloroso do que acontece quando o ódio é permitido prosperar e quando os direitos humanos são ignorados. E mais, quando vítimas civis são punidas em nome da sanha de governos de resolverem seus problemas encontrando culpa e responsabilidade nos indivíduos mais frágeis e marginalizados, e por isso mais acessíveis aos ataques.

Quando os nazistas perceberam que poderiam perder a guerra apelaram para a “solução final” – se não iriam vencer, ao menos limpariam a Alemanha daqueles “ratos” – é o extremo da desumanização do outro. Por isso, a comparação de Lula doeu tão forte em muitos judeus que hoje atuam em gaza, nada pior que ser comparado com seus próprios algozes.

Os problemas da fala de Lula sobre Holocausto

A política possui muitos contextos e subtextos e não pretendo aqui entender o que Lula quis atingir com essa fala, se foi bem ou malsucedido, entretanto, entendo que pode ser percebido na expressão um erro de cálculo, um erro historiográfico e um alerta.

É sempre um risco imenso comparar tragédias, em quaisquer proporções, e quando há uma relação tão íntima entre os grupos envolvidos na comparação há grandes chances de deturpações e equívocos de entendimento.

Neste ponto, falas mais sutis podem ser mais diplomáticas mesmo que não sejam tão enfáticas, daí caber a intenção do discurso, que não tenho como discernir.

Historicamente o mandatário brasileiro erra ao dizer que apenas no Holocausto houve algo semelhante. Se ficarmos apenas no período dos séculos 19 e 20, o mundo testemunhou uma série tão atroz de genocídios que é vergonhoso que não nos recordemos a cada minuto de nossos pecados contemporâneos.

O genocídio armênio, ocorrido durante o Império Otomano entre 1915 e 1923 matou 1,5 milhão de armênios em uma campanha de extermínio do governo turco otomano. Este evento foi marcado por deportações em massa, massacres em grande escala e privações extremas, representando uma das primeiras grandes atrocidades do século 20.

O genocídio promovido no Congo pelo rei belga Leopoldo II é uma barbárie calamitosa. Entre 1885 e 1924 ao menos 10 milhões de congoleses foram mortos em nome da exploração de recursos naturais, como marfim e látex, usado para produção de borracha. Muitos mais foram estuprados, mutilados, deportados e escravizados em nome da civilidade modernizadora.

A própria Alemanha, antes do Nazismo, promoveu outro genocídio colonial na Namíbia, entre 1904 e 1908. O povo Herero e Namaqua foi alvo de uma campanha brutal de extermínio. Estima-se que dezenas de milhares foram mortos em massacres e através de políticas deliberadas de deslocamento, fome e trabalho forçado.

Poderiam citar muitos outros “holocaustos” silenciados das grandes fomes na Ucrânia, na Sibéria às mortandades da Índia e do Brasil. Então, o que não faltam são exemplo para comparar o mal que se faz hoje com os reféns do Hamas e com as vítimas civis dos ataques de Israel.

Os povos judeus chamam o Holocausto de Shoá, palavra hebraica que significa "destruição, ruína, catástrofe”. Ele usa para denominar fenômenos de destruição sistemática, perseguição, exclusão socioeconômica, expropriação, trabalho forçado e tortura física e psicológica. Tudo isso está ocorrendo em Israel, tanto nas mãos do Hamas quanto, em maior proporção numérica, nas mãos das forças israelenses.

Na história quando as palavras e conceitos passam a delimitar ações no espaço e no tempo é sempre equivocado transportá-las para outra realidade.

A fala de Lula foi um grande risco diplomático e ainda deve gerar desdobramentos, mas em essência, o mal que os termos Shoá e Holocausto evocam estão presentes em Israel tanto nos ataques violentos e terroristas de 7 de outubro de 2023 quanto em sua desmedida retaliação na Faixa de Gaza e é preciso que o conjunto de nações pressione pelo fim dessas ações em todas as suas direções.

Se Lula fez um incisivo alerta para dimensionar o massacre ante a comparação extrema ou se foi desrespeitoso e indelicado com o povo vítima do maior genocídio recente da Europa a história julgará. Mas há uma catástrofe humanitária em andamento, mais uma e não é uma destruição sem precedentes. Aí está o maior problema, são muitos os precedentes. Quantos mais serão necessários?

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.