Com PEC em discussão, procuradores municipais podem passar a integrar advocacia pública; entenda situação do Ceará
Ao menos três municípios cearenses enfrentaram problemas com a Justiça relacionados ao provimento dos quadros de suas equipes jurídicas
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Conforme levantamento do Tribunal de Contas do Estado (TCE-CE), 73 municípios cearenses não contam com procuradorias jurídicas próprias, aquelas estruturadas por legislação local. Diante do cenário, algumas cidades podem ser impactadas pela votação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC), no Congresso Nacional, que busca tornar obrigatória a instalação de órgãos do tipo em municípios com mais de 60 mil habitantes.
À primeira vista, pode parecer uma discussão distante, um mero apelo formal focado em uma categoria profissional, mas uma análise mais cuidadosa mostra a real situação: prefeituras com estruturas do tipo têm melhor gerência sobre seus programas e recursos.
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É o que mostra o Diagnóstico da Advocacia Pública Municipal no Brasil, o primeiro e mais recente da Associação Nacional dos Procuradores Municipais (ANPM), publicado em 2018. O levantamento será detalhado adiante.
Essa relação não passa despercebida pelos entes políticos, e tem pressionado legisladores e prefeitos por reforços nos municípios. A PEC em questão já está em etapa avançada de tramitação. O projeto foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado e deve ser encaminhada em breve ao plenário. Conforme o autor da proposta, senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), somente é possível ter uma previsão de votação após a definição sobre os novos membros das diversas comissões da Casa.
"Penso eu que está mais próximo do que antes. Ela já passou pela Comissão de Constituição, eu já falei com o presidente Davi (Alcolumbre), então estou no aguardo. A PEC já está pronta para ser votada, mas a gente precisa ver quando é que retomaremos as atividades deliberativas em plenário", disse o senador paraibano.
A discussão tenta balancear os argumentos de uma categoria profissional, que conta com quase 40 mil advogados no Ceará, segundo a OAB nacional, e os temores de prefeitos em todo o País. Gestores fazem projeções sobre os efeitos financeiros do aumento da folha salarial e as maneiras de lidar com particularidades das demandas jurídicas.
O que faz um procurador municipal?
A Procuradoria Municipal é responsável por representar a gestão judicial e extrajudicialmente, assessorar o prefeito e as secretarias municipais na formulação de políticas públicas e avaliar a legalidade dos atos da Prefeitura, entre outras atribuições. Em síntese, faz o controle da legalidade dos atos de gestão e representações em juízo.
São funções semelhantes às das Procuradorias do Estado e da União, cujos trabalhos são voltados para instâncias distintas do Poder Executivo. As diferenças não param por aí. Enquanto a existência das duas últimas já são previstas na Constituição Federal de 1988, os órgãos jurídicos municipais ainda dependem da vontade de cada prefeito para serem instaurados.
A Carta Magna diz o seguinte:
Art. 132. Os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, organizados em carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em todas as suas fases, exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas.
Apesar de não citar os procuradores do âmbito municipal, entendimentos do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a Constituição indicam a necessidade de, uma vez institucionalizados, esses órgãos terem seus cargos providos por concurso público.
“A constitucionalização da carreira é a nossa grande bandeira desde sempre, entendendo que não é uma pauta corporativista. É uma questão de segurança jurídica dos municípios mesmo, de ter uma equipe técnica, independente e qualificada (para esse tipo de assessoria)”, avalia Anne Karole Fontenelle, presidente da ANPM.
Advocacia pública e qualidade da gestão
Quando não há esse espaço no organograma da Prefeitura, normalmente profissionais autônomos ou escritórios de advocacia são contratados por ou sem licitação.
O levantamento da ANPM usa o Índice de Governança Municipal do Conselho Federal de Administração (IGM-CFA) para justificar a constatação. Ao tomar como objeto gastos e finanças públicas, qualidade da gestão e desempenho, aquelas cidades que contam com procuradores concursados são maioria (54,2%) no grupo com classificação “alta” no IGM-CFA.
Já as prefeituras que não contam com profissionais efetivados para essa função representam 45,8% dos entes avaliados nesse recorte e 68% dos inclusos na categoria de baixa qualidade da administração pública. Nesses casos, os contratos podem ser rompidos a qualquer momento, iniciando um processo jurídico do zero ou descontinuando políticas públicas importantes.
Por isso, Anne Karole Fontenelle destaca a importância da criação de “memória jurídica” nos municípios, por meio da estruturação de procuradorias próprias. Processos longos, como o do rateio das sobras de recursos do Fundeb regulamentado em 2020, e até o ato de asfaltar uma rua ou adquirir alimentação escolar demandam envergadura jurídica para terem êxito.
“Gestões passam, mas a cidade permanece. Vamos ter cidades mais justas se tivermos politicas publicas bem orientadas. Muitas vezes o gestor tem boa vontade, mas está mal assessorado”, comenta a presidente da ANPM.
Muitas vezes, como aponta Fontenelle, sem a institucionalização das procuradorias municipais, prefeitos acabam usando critérios de pessoalidade para prover as funções de controle de legalidade das suas próprias gestões, abrigando aliados políticos. No regime efetivo, também podem ocorrer pressões políticas que impactam no trabalho desempenhado, mas seguindo o estatuto de servidor público, essas condutas são facilmente mapeáveis e, se preciso, puníveis.
“O servidor público está sujeito a normas de disciplina, de ética. Então, ele deve ter o cuidado e o zelo com a coisa pública, de bem desempenhar as suas funções em relação ao interesse público”, observa, ainda, Izabel Dourado de Medeiros, presidente da Comissão de Advocacia Pública da seccional cearense da OAB.
Entenda a PEC
Além de propor a obrigatoriedade sobre as procuradorias municipais, a PEC cria prazos diferentes para a implementação da medida por porte populacional, a contar da vigência da emenda constitucional:
- Em até 6 anos, se mais de 100 mil habitantes;
- Em até 8 anos, se entre 60 mil e 100 mil habitantes;
- Facultativo, se menor que 60 mil habitantes.
Caso o número de habitantes mínimo estabelecido pelo projeto for atingido por outros municípios nos próximos anos, com novos censos demográficos, a regra passa a valer para esses também.
Segundo o IBGE, 90% dos municípios brasileiros possuem menos de 60 mil habitantes. Essas cidades continuam livres para contratar advogados particulares por meio de licitação. O assunto foi amplamente debatido durante audiência pública no Senado, em junho do ano passado.
A terceirização também continua possível para aquelas prefeituras de maior porte, desde que ocorra em casos excepcionais que exigem advogados especialistas.
É o caso de processos relacionados a royalties (participação do ente na exploração de determinados recursos naturais), como destacou o representante da OAB, Shaymmon Emanoel Rodrigues de Moura Sousa, na ocasião. Para ele, havia risco de a matéria ferir a autonomia dos entes nesse sentido.
“A necessidade de especialização em determinados casos e busca por eficiência na gestão pública requer que municípios tenham possibilidade de contratar especialistas. É preciso garantir legalidade (nas contratações de advogados), seja para demandas gerais ou para demandas específicas, mesmo quando existirem Procuradorias municipais estabelecidas”, pontuou.
Conforme o consultor Legislativo do Senado Federal, Gustavo Haddad Braga, esse não seria um problema. Para esses casos, valeria o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) que permite as contratações de excepcionalidade, como já ocorre com a União e os estados.
“A autonomia (dos municípios) de nada vale se não forem capazes de fazer seus interesses… Nas situações excepcionais em que se permite a contratação de advogados privados, esse ponto não estaria sendo modificado. Não vai se permitir uma ampla contratação para toda e qualquer causa”, explicou Braga.
Mesmo assim, as mudanças previstas na PEC levantam debates sobre outras particularidades dos municípios, estas mais relacionadas à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Quando há contratação de escritório (de advocacia), eles não entram no contexto de despesa de pessoal. Isso é um gargalo muito grande quando a gente pensa a autonomia financeira de municípios que já estão às vezes sufocados nos limites da LRF
A LRF fixa regras específicas para os gastos com folha salarial, a fim de evitar que os entes tenham despesas superiores a 60% de sua receita corrente líquida nessa área.
Representantes de entidades municipalistas também levantaram questões sobre a valorização da categoria nos municípios, que poderiam ter dificuldade em atrair profissionais para locais de difícil acesso ou de remunerar adequadamente seus advogados públicos.
Mas a OAB e a ANPM contra-argumentam. “Na negociação salarial, sempre vai ser preservada a autonomia administrativa de cada gestor. É preciso considerar todo beneficio que o procurador traz, evitando gastos desnecessários, cancelamento de licitações indevidamente, fazendo a cobrança efetiva do que tem que ser feito”, lembra Anna Fontenelle.
“Claro que existem pisos de advogado e tudo mais, mas os municípios têm essa liberdade, são autônomos, de atribuir os valores que eles acham que têm capacidade econômica para pagar”, complementa Izabel de Medeiros.
Situação do Ceará
Em meio à discussão no Congresso, municípios cearenses enfrentam problemas com a Justiça relacionados ao provimento de seus quadros de procuradores. Em Sobral, a situação se arrasta desde 2022, quando o Ministério Público do Estado (MPCE) ajuizou ação para obrigar a Prefeitura, à época gerida por Ivo Gomes (PSB), a realizar concurso público para os cargos de Procurador Municipal e Procurador Assistente.
No início de janeiro deste ano, a Justiça acolheu o pedido do MP e determinou o lançamento do edital, após considerar inconstitucionais dois artigos de lei municipal que permitem a livre nomeação para os dois cargos.
Uma vez criada por lei, a Procuradoria Geral do Município, com estrutura e atribuições próprias de consultoria e defesa jurídica, deve obedecer às normas de direito público na contratação de seu corpo técnico, com a exigência de realização de concurso público. Sendo assim, a decisão deu um prazo de 12 meses para alterações na legislação visando o novo concurso.
“Permitir que os cargos de Procurador sejam preenchidos por comissionados contraria o princípio da moralidade, pois abre margem para práticas de favoritismo e apadrinhamento político, em vez de assegurar a imparcialidade e competência técnica que são garantidas por meio de concurso público”, diz a determinação.
Conforme o promotor autor da ação, Paulo Henrique de Freitas Trece, a medida é bem-vinda na cidade, que acomoda cinco faculdades de Direito e forma profissionais que aguardam o concurso há pelo menos duas décadas.
Por meio de nota enviada ao PontoPoder ainda em janeiro, a Prefeitura de Sobral informou que a equipe jurídica está analisando os fundamentos da decisão para a devida manifestação nos autos do processo.
Reiteramos o compromisso da gestão municipal com a excelência do serviço público e com a observância dos princípios da administração pública, sempre pautados na legalidade, transparência e responsabilidade. Nosso objetivo é proporcionar um novo tempo para os sobralenses, garantindo serviços de qualidade e respeito às diretrizes legais. Seguiremos empenhados em buscar as melhores soluções para o município, sempre em diálogo com as instituições e em conformidade com a legislação vigente
“A PEC é um instrumento de fortalecimento dos municípios, porque você não pode confundir o município com a figura do prefeito. Ele pode até ser bom e conseguir a reeleição, mas toda a análise é feita do ponto de vista do município, da sua saúde financeira e da complexidade dos trabalhos”, comenta a representante da OAB-CE.
Já em Barbalha, o problema foi em relação à sanção de projeto de lei que extinguia o cargo efetivo de Procurador Jurídico Municipal, em vigência desde 2015, e criava o cargo de Advogado da Administração Pública, adicionando, ainda, a possibilidade de reenquadramento do primeiro grupo na segunda ocupação.
Contudo, os procuradores argumentaram nos autos que a lei altera a atuação originária do órgão, além de ser genérica ao tratar da remuneração, direitos, prerrogativas e honorários sucumbenciais a que faziam jus, causando insegurança jurídica.
A medida também viola o princípio do concurso público, uma vez que a transposição de cargos, nesse caso, exige critérios rígidos. Por isso, a 2ª Vara Cível da Comarca de Barbalha concedeu liminar, no início deste mês, para suspender os efeitos da lei relacionados à procuradoria municipal até o julgamento final do caso.
O PontoPoder buscou a Prefeitura de Barbalha para comentários acerca da decisão. Quando houver resposta, a matéria será atualizada.
Em Eusébio, o embate jurídico se deu por situação semelhante às citadas acima. A 1ª Vara Cível da Comarca do Eusébio determinou o afastamento de procuradores comissionados do município e reforçou a necessidade de integrar advogados públicos concursados, como noticiado pelo colunista Inácio Aguiar, do PontoPoder.
A decisão suspendeu os efeitos de uma portaria que concedia atribuições de representação judicial e extrajudicial a servidores comissionados, baseando-se em entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF). Além disso, a Justiça declarou nulos os pareceres e manifestações jurídicas assinadas por esses servidores desde a ciência da decisão.
O PontoPoder também buscou a Prefeitura de Eusébio para saber a posição sobre o encaminhamento judicial, e aguarda retorno.
“Não existe uma legalidade da moda pontual de momento. A legalidade vai ser legalidade hoje, vai ser legalidade amanhã. A não ser que a lei mude, mas a lei é aplicável ao caso em que ela está vigendo naquele momento. Então essa função é muito bem exercida pelas procuradorias municipais”, conclui Izabel de Medeiros.