Teatro cearense reverencia trajetória de Haroldo Serra nas artes

Artista deixa, aos 84 anos, extenso legado para as Artes Cênicas, com espetáculos e projetos - a exemplo do tradicional grupo Comédia Cearense - de grande referência para uma miríade de artistas

Escrito por Diego Barbosa e Felipe Gurgel ,
Legenda: O dramaturgo, ator e diretor Haroldo Serra
Foto: Foto: Saulo Roberto

Ontem seria dia de intenso barulho em um dos quartos do Hospital São Mateus, em Fortaleza. Dois ensaios estavam marcados para acontecer diante de Haroldo Serra, em preparação para o próximo espetáculo da Comédia Cearense, idealizada pelo teatrólogo. Mais que receber a bênção do mestre, o gesto abraçava proporções maiores. Carregava aconchego e afeto. "Ele estava numa fase que precisava acordar. Com o quadro clínico já estável, marquei os dois encontros pra gente fazer zoada", comenta Hiroldo Serra, filho do artista.

Não aconteceram. Tampouco deixaram de traduzir a vitalidade e esperança sempre pulsantes na mente e atuação incontornáveis de Haroldo, relevante personagem para as Artes Cênicas do Ceará e do Brasil - referenciado pelo teatrólogo Marcelo Farias Costa como "O maior gênio empresarial do teatro cearense".

Internado desde maio, quando foi submetido à cirurgia para tratar de complicações de um tumor no cérebro, faleceu ontem (16), aos 84 anos, após sofrer parada cardíaca. "Considero que existe um teatro antes e outro depois do Haroldo Serra. Nos meus mais de 40 anos na área, nunca vi uma pessoa tão obstinada pelo que gostava de fazer: produzir, fomentar e formar pessoas interessadas nessa arte", complementa Hiroldo, que seguiu os passos do pai e relembra, com carinho, a infância em Tamboril, no Norte do Ceará.

Legenda: Com a atriz Hiramisa Serra, com quem dividiu o amor e os passos dados nas Artes Cênicas. A união ampliou-se em espetáculos, projetos e prole dedicada a perpetuar o legado construído em mais de 60 anos de trabalho
Foto: FOTOS: SAULO ROBERTO

Companheira

O percurso de Haroldo foi trilhado sobretudo a partir do esforço dividido com a esposa, a atriz Hiramisa Serra, com quem partilhou espetáculos e 61 anos de casamento. Além de Hiroldo, tiveram mais dois filhos: Haroldo Júnior e Harolmisa. União multiplicada em oito netos e dois bisnetos.

Foi em Tamboril, a 300 km de Fortaleza, que o lendário profissional nasceu, em 3 de dezembro de 1934. Lá, iniciou no universo cênico ainda criança, por meio do tio, Franklin Serra, que promovia peças e shows no interior. Aos 16 anos, já na Capital, começou a trabalhar na Rádio Iracema. Atuou ainda na Rádio Verdes Mares e Dragão do Mar. Exerceu a profissão de radialista por 14 anos, o que lhe permitiu a aproximação da radiodramaturgia e, por conseguinte, do teatro.

Neste 2019, comemoraria 62 anos da estreia nos palcos, data que remonta a 1957, quando encenou "Lady Godiva", de Guilherme Figueiredo. Naquele mesmo ano, fundou a Comédia Cearense, um dos mais antigos e influentes grupos de teatro do País, do qual Hiroldo é diretor hoje. Antes desse período, a paixão pelas Artes Cênicas o fez criar, em 1952, ao lado de B. De Paiva, Hugo Bianchi e Marcos Miranda, o Teatro Experimental de Arte (TEA), que fez história na Capital.

À época, o trabalho do trio foi responsável por iniciar a participação de atores e atrizes cearenses no Theatro José de Alencar (TJA), abrindo as veredas para que mais artistas pudessem ganhar a atenção do público. Existiu até 1956.

Alcance

Com montagens, livros, projetos, intensa produção e atuação artística, dentre outros relevantes trabalhos, a herança de Haroldo Serra igualmente se traduz em desmedido reconhecimento. Foi diretor do Theatro José de Alencar nos anos 1970. E entre as comendas recebidas, estão os prêmios de Melhor Diretor, Melhor Ator e Melhor Cenógrafo, no Festival de São José do Rio Preto (SP); os troféus de Melhor Espetáculo com a peça de Gastão Tojeiro, "O Simpático Jeremias"; e de Melhor Espetáculo pela Comissão Julgadora e Júri Popular com "O Morro do Ouro".

Em 2002, foi agraciado com o Troféu Sereia de Ouro, do Sistema Verdes Mares, e, no mesmo ano, inaugurou a Casa da Comédia Cearense, no bairro Rodolfo Teófilo, destinada a preservar e divulgar a trajetória da companhia.

(Entrevista com Haroldo Serra em 2017 sobre os 60 anos do Grupo Comédia Cearense. Reportagem da jornalista Roberta Souza)

Mestre

Aluna mais antiga da Casa da Comédia Cearense, a atriz Tayana Tavares passou a ter contato com o mestre aos nove anos; hoje, aos 23, traz à superfície afagos, ensinamentos e o amor pelo atuar. "Ele era muito meu avô. Ensinava arte ensinando a viver. Lembro que os ensaios eram muito divertidos, pois sentava com a gente na mesa e dizia 'Vamos ler'. Foi com ele que aprendi a ser pontual, a ter compromisso. Cresci muito porque ele acreditava no meu potencial".

Em semelhante apego ao artista, a atriz, escritora, dramaturga e psicóloga Caroline Treigher - que conheceu Haroldo ao assistir a uma peça e, desde a data, passou a integrar a Casa - afirma: "Seu Haroldo foi promovido para agora subir a outros palcos, ensaiar outros espetáculos no mundo celestial, dos grandes. Ele que já brilhou e fez brilhar tanta gente no teatro e na arte cearense e brasileira".

O jornalista Anderson Sandes também rememora o contato com Haroldo. "Conheci-o ainda estudante de jornalismo, em Brasília, quando o entrevistei sobre Rosa do Lagamar para o Jornal de Brasília, em 1979. Depois, como repórter e editor do Caderno 3, do Diário do Nordeste, seguiram-se inúmeras entrevistas desde o início dos anos 1980. Nunca me cansei de ouvi-lo sobre suas montagens - dramas, tragédias ou comédias. Pra mim o dia é triste. Mas prefiro ficar com seu largo sorriso, forte abraço e a convivência com o mais intenso homem de teatro que conheci. Ele nunca sairá de cartaz".

Ressonâncias

O Governo do Ceará emitiu uma nota de pesar pelo falecimento do teatrólogo, sublinhando que "Haroldo brilhou nos tablados por mais de 60 anos, sendo figura exponencial no desenvolvimento da cultura cearense e do teatro brasileiro". No texto, adiantou que o TJA - que celebra 109 anos hoje - funcionará com programação especial em homenagem ao artista.

O titular da Secretaria da Cultura do Estado, Fabiano Piúba, refletiu que "Haroldo faz parte não só da história da dramaturgia cearense, mas da dramaturgia brasileira. Em toda a trajetória, tudo está muito entrelaçado com a história do teatro no Ceará".

Por sua vez, Gilvan Paiva, secretário da Cultura de Fortaleza, destacou: "Haroldo representa mais que um diretor de teatro, ele era um ícone do teatro cearense. Uma referência para todas as gerações da cultura do Estado. E simbolizou uma persistência de investimento no teatro e nos artistas cearenses. Era um construtor da nossa identidade".

Nas redes sociais, a repercussão pela morte do artista foi intensa. Importantes nomes do teatro local expressaram sentimentos pela perda. O ator Carri Costa, diretor do Teatro da Praia, relembrou a convivência: "A esse Mestre sempre fui todo ouvidos, atenção, admiração, deferência e respeito. Haroldo Serra, eterno ensinador do fazer teatral. Eis que agora o ator maior do teatro cearense vai valsar suas cenas numa eternidade sem proibições algumas".

Do Grupo Bagaceira de Teatro, o ator Rogério Mesquita também prestou homenagem. "Não tenho palavras pra dizer como eu adorava ser contemporâneo de uma pessoa que realizou tantos feitos na história cultural do meu País. Ia sempre feliz ver espetáculos da Comédia e achava tão bonito vê-lo nos bastidores regendo a família. Uma parte nossa vai com ele".

E assim, o mestre que deixou a missão de escreverem no seu epitáfio "Aqui jaz um homem que foi muito feliz", despede-se agigantado por ser. Algo traduzido em breves e sensíveis termos pelo ator e diretor teatral Ricardo Guilherme - integrante da última versão do clássico do teatro cearense, a peça "O Morro do Ouro", em 2017. "Quase 50 anos, quase meio século de convivência com Haroldo Serra. E, agora, de repente, não mais. Que o silêncio me fale".

 

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