Demanda por moradia cresce 34% e Fortaleza tem 215 mil pessoas à espera de uma casa
Espera por uma unidade habitacional se arrasta por anos enquanto cadastrados lidam entre comprar comida ou pagar o aluguel
Ter um teto hoje, por mais simples que seja, é o desejo de cerca de 215 mil pessoas cadastradas em políticas habitacionais da Prefeitura de Fortaleza, de acordo com a Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional (Habitafor). Todas elas efetivaram a inscrição junto às Secretarias Regionais. Em 2019, ano anterior à pandemia, eram 160 mil, segundo a mesma Pasta informou ao Diário do Nordeste à época.
Embora reconheça “mudanças sofridas pela política habitacional no País”, a Prefeitura diz manter aberto, “permanentemente”, um cadastro gratuito e autodeclaratório para qualquer pessoa que deseje concorrer a uma moradia dentro das regras da política pública de habitação de interesse social.
Para enfrentar essa demanda, o Município afirma discutir investimentos na experiência de lotes urbanizados e mutirões, assim como em projetos que devem gerar a produção de novas unidades. Além disso, “mantém o diálogo com entidades que atuam no segmento habitacional, principalmente por meio do Conselho Municipal de Habitação Popular”.
Nos eixos de ação da Pasta, estão:
- produção de unidades habitacionais (construção de casas e apartamentos);
- regularização fundiária (entrega de “papéis da casa”);
- melhorias habitacionais (qualificação da infraestrutura de moradias);
- urbanização de assentamentos precários
O professor Diogo Negritude, coordenador do projeto social Igualdade Para Todos, avalia que a pandemia da Covid-19 piorou as condições de vida da população mais pobre da Capital cearense, o que fortaleceu o aumento dos cadastros.
Vimos pessoas no mais absoluto desespero entre comer ou pagar o aluguel. Muitas perderam seus empregos, e as famílias ficaram ainda mais amontoadas em uma mesma casa, que muitas vezes não é apropriada para 10, 12 pessoas. Elas se agruparam para não morrer de fome.
Segundo ele, as 233 famílias integrantes do projeto com interesse em habitação são formadas principalmente por um perfil: mulheres chefes de família, sem ensino fundamental completo, com três filhos ou mais e que trabalham na informalidade, vendendo roupas ou lanches.
Para o professor, Fortaleza possui um grande número de prédios e terrenos desocupados que poderiam ser cedidos pelo poder público a associações civis, para a construção de casas com recursos próprios. “É uma estratégia mais barata que facilitaria a vida social delas”, explica.
Longa espera
Quando a dona de casa Ticiane de Oliveira, 31, fez o cadastro junto à Habitafor, o filho Nicolas tinha dois ou três meses de idade. Hoje, o menino já tem oito anos e nunca morou em casa própria.
A situação financeira mudou pouco. Antes desempregada, sobrevivia com recursos do Bolsa Família. Hoje, apenas o companheiro trabalha porque ela saiu do emprego para cuidar do filho. Pagam R$400 de aluguel numa casa de apenas três compartimentos - “e o dono já tá ameaçando de aumentar de novo”.
“É um sonho”, diz ao pensar na casa que nunca veio, engolida entre o tempo e a expectativa.
“Mesmo indo atrás, fiquei só na promessa. Tenho um primo que foi sorteado passando só um mês na fila. Acho que se dizem que é sorteio, era pra ser para todos”, lamenta.
Outra ainda apegada ao desejo de ser sorteada é a autônoma Lucivânia Andrade, 26, cadastrada também há oito anos. Ela trabalha vendendo miudezas em ônibus para pagar um aluguel de R$20 ao dia, saindo de “casa” (dois vãos e um banheiro no bairro Genibaú) sem saber se consegue quitar a dívida.
A casa própria, inclusive, poderia permitir-lhe conviver de novo com os dois filhos, hoje aos cuidados de uma tia. “No dia em que fui fazer o cadastro, lá no Siqueira, me disseram que eu ia ganhar. Até hoje, não me deram mais nenhuma resposta”, afirma.
A dificuldade na destinação de moradias também é um dos entraves enfrentados pela ocupação “Terra Prometida - Vítimas da Covid-19”, montada desde agosto de 2021 em frente ao Aeroporto de Fortaleza. Cerca de 263 famílias devem ser despejadas no dia 3 de novembro, em reintegração de posse já autorizada pela Justiça.
Em reunião no fim de agosto, tanto o Ministério Público (MPCE) quanto a Defensoria Pública (DPCE) do Estado do Ceará foram favoráveis para que o Município encontre soluções para o problema. Em nota enviada ao Diário do Nordeste, a Habitafor declarou que "não é parte no processo".
A situação precária vivida por lá se repete em outra ocupação no bairro Henrique Jorge, acompanhada pelo professor Diogo Negritude. Ele percebe que essas pessoas não conseguem pagar aluguéis de R$250 ou R$300, se sujeitando a situações “humilhantes e vexatórias”.
“Muitas vezes o banheiro está fora da casa, nos fundos, na beira de canais. Também são áreas sem iluminação, sem urbanização nem a devida segurança”, analisa.
Direito negligenciado
A reportagem solicitou a quantidade de benefícios concedidos pela Habitafor, por ano, desde 2018, mas a Pasta só informou os números gerais do período: nesses quase quatro anos, foram beneficiadas 15.899 famílias com unidades habitacionais, 9.204 com papéis da casa e 2.200 com melhorias habitacionais, além da entrega da urbanização da Lagoa da Zeza para mais de 32 mil habitantes e da concessão de 45 mil auxílios no Programa Locação Social.
Em 2022, ainda conforme a Pasta, está prevista a entrega de 500 moradias no Residencial dos Servidores 1, no Passaré; a construção de um residencial com 144 unidades para famílias impactadas pela urbanização da lagoa do Papicu; e a requalificação da lagoa do Urubu, no bairro Floresta.
famílias também devem ser beneficiadas com ações de regularização fundiária.
Ainda assim, diante de uma fila com mais de 200 mil pessoas, Diogo Negritude considera que o direito à moradia é negligenciado porque “se criou a narrativa de que propriedade é direito absoluto”. “A Constituição diz que a propriedade deve seguir a função social. Se ela não cumpre essa função, merece ser alocada para famílias que precisam de moradia”, pensa.