Você lembra dos sonhos quando acorda? Especialista explica a importância de sonhar

Pesquisadora situa o cultivo do sonho pessoal e coletivo como forma de ressignificar emoções negativas e simular o enfrentamento de ameaças

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Ultrapassando as fronteiras da realidade, é no sonho que nos conectamos com a cultura, os ancestrais e com conteúdos muitas vezes desprezados na rotina da consciência produtiva
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“A gente tem que sonhar, senão as coisas não acontecem”. Como se encomendada pelo universo, a frase de Oscar Niemeyer (1907-2012) parece acenar com ainda maior força durante o término de mais um ciclo. É quando nos dispomos a rever conceitos, criar listas de desejos e imaginar realidades melhores, propícias para o crescimento e a mudança.

Esse movimento, porém, não é fácil de acontecer no Brasil e no mundo hoje. Morte, insegurança, miséria, violência e destruição da natureza – para citar apenas alguns exemplos – formam um caldo sombrio no qual mergulhamos mais profundamente nos últimos anos.

Além disso, a pressão pela produtividade, a imposição do pensamento positivo e a fragilização dos vínculos sociais nos conduzem a um individualismo sem precedentes. Ainda assim, sonhamos. E isso realmente importa?

Legenda: Ao lembrarmos dos sonhos, já não acessamos o sonho em si, mas podemos tornar as lembranças cada vez mais vívidas e ricas em detalhes
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Para Renata Giaxa – psicóloga clínica, professora, pesquisadora da Universidade de Fortaleza e da Universidade de São Paulo e sonhadora – não apenas importa como é necessário. “Sonhamos nossos medos e sofrimentos, mas também sonhamos o enfrentamento deles. E importa sonhar porque é nesse processo que habitamos outras existências possíveis, realizamos desejos comumente inacessíveis à consciência de outro modo”, defende.

Segundo ela, ultrapassando as fronteiras da realidade, é no sonho que nos conectamos com a cultura, com os ancestrais e com conteúdos muitas vezes desprezados na rotina da consciência produtiva. Os estudos em neurociência, inclusive, têm revelado o sonho como um processo de sedimentação da memória capaz de ressignificar emoções negativas e simular o enfrentamento de ameaças, preparando as pessoas para os desafios que estão por vir.  

“Como se, vivendo em sonho, as pessoas treinassem saídas possíveis para seus dilemas cotidianos e aprendessem durante essas vivências oníricas”, ilustra a estudiosa. “Os conteúdos oníricos recorrentes também têm auxiliado no diagnóstico de algumas psicopatologias, como no caso do Transtorno do Estresse Pós-Traumático, por exemplo”.
Renata Giaxa
Psicóloga clínica, professora, pesquisadora e sonhadora

Influência na realidade

Pesquisas na área buscam afunilar ainda mais conceitos a fim de desvendar as premissas de um componente tão subjetivo. Nesse sentido, Renata Giaxa referencia o livro “O Oráculo da Noite” – escrito pelo neurocientista e diretor do Instituto do Cérebro na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Sidarta Ribeiro – como um dos mais importantes nesse panorama. A obra traz uma ampla perspectiva histórica, antropológica e científica no universo onírico, desde a antiguidade até os tempos atuais. 

Sob outra perspectiva, um artigo publicado pelo grupo da UFRN na Revista Plos One, sob o título “Dreaming during the Covid-19 pandemic” (“Sonhando durante a pandemia de Covid-19”, em português) apresenta resultados da análise de relatos de sonhos coletados durante o período pandêmico, demonstrando o sofrimento mental de brasileiros logo que o isolamento social foi imposto em nosso país. 

Legenda: Os conteúdos oníricos podem ser, por vezes, o ponto de partida para adentrarmos naquilo que não conhecemos de nós mesmos
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Há ainda um estudo brasileiro multicêntrico – capitaneado pelas Universidades Federais do Rio Grande do Sul, São Paulo e Minas Gerais, do qual também participam pesquisadoras da Unifor – relatado em parte no livro “Sonhos Confinados: o que sonham os brasileiros em tempos de pandemia”. Lançada neste ano, a obra tem coordenação dos psicanalistas Christian Dunker e colaboradores. 

Nas páginas, é possível conferir mudanças de padrões entre sonhos registrados no início da pandemia e momentos posteriores, deixando claro que os processos do inconsciente refletem fortemente as angústias mobilizadas pelo sofrimento sanitário, político e econômico vivido pelo povo brasileiro. “Deixa clara também a importância do acolhimento desses relatos, expressões dolorosas, das pessoas que sonham”, sublinha Giaxa.

“Muitas vezes, vivemos de forma tão acelerada que não nos permitimos o contato com nossos próprios sonhos. Quantos são os que raramente lembram dos sonhos – não recordam sequer se foram experiências prazerosas ou assustadoras? Sempre perdemos alguma mensagem do inconsciente ao acordarmos. Ao lembrarmos dos sonhos, já não acessamos o sonho em si, mas podemos tornar as lembranças cada vez mais vívidas e ricas em detalhes”.
Renata Giaxa
Psicóloga clínica, professora, pesquisadora e sonhadora

Valorizar o que sonhamos

Logo, de que modo podemos valorizar mais aquilo que sonhamos de maneira a não perdermos possíveis mensagens no inconsciente? Existe uma espécie de ritual para atingirmos esse propósito? Renata considera que, antes de qualquer coisa, precisamos perceber o quanto o nosso estilo de vida interfere na qualidade do sono durante os momentos que reservamos para parar, descansar, dormir, despertar ou imaginar o que desejamos. 

“Sidarta propõe em ‘O Oráculo da Noite’ um ritual que envolve higiene do sono – cuidados com a luz, os sons, a temperatura do ambiente – , evitando aparelhos eletrônicos próximos à cama, e uma autossugestão antes de dormir que envolve dizer para si mesmo: ‘Vou sonhar, lembrar e relatar’”.

Acordar com calma, sem movimentos abruptos e sem o uso de despertadores também pode ajudar na preservação da lembrança do sonho. Depois, podemos buscar manter o hábito de partilhar ou anotar o que sonhamos, configurando um exercício para o desenvolvimento progressivo de preservação da memória do sonho.  

Os conteúdos oníricos, cabe destacar, podem ser, por vezes, o ponto de partida para adentrarmos naquilo que não conhecemos de nós mesmos – algo trabalhado ao longo das últimas décadas pelas Psicologias Profundas, tomando como suporte uma ideia já amplamente difundida: a compreensão freudiana do “sonho como via régia para o inconsciente”.

Durante o sonho, podem vir à tona memórias escondidas de situações traumáticas ou não, registros que se reorganizam e se traduzem em novas narrativas e imagens. Essas informações podem chegar como sinais, avisos e até ideias aplicáveis à vida cotidiana, mas também conseguem revelar demandas de cuidado com fatos que pareciam bem elaborados. 

“Processos de análise costumam favorecer a ressignificação dos conteúdos oníricos. Quando não são possíveis, o registro dos sonhos e a partilha deles com pessoas próximas podem ser interessantes”, analisa Giaxa. 

Legenda: O sonho pode ser considerado um processo de imaginação durante o sono, ocorrido na fronteira entre o inconsciente individual e o inconsciente coletivo
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Por outro lado, ao encarar nossa vontade de compreender o teor dos sonhos, a pesquisadora é enfática: os dicionários de sonhos são curiosos, mas nos colocam em padrões muito gerais e superficiais de interpretação que podem nos distanciar de nós mesmos ao invés de possibilitar esse encontro. 

“Receber o sonho como uma experiência pessoal, única e inesgotável em suas traduções faz mais sentido do que resumir o sonho à uma única interpretação. O trabalho analítico pode ser rico e múltiplo em possibilidades quando se dá em torno não apenas do sonho, mas do sujeito que sonha. Quando trazemos uma imagem do sonho, ela pode nos conduzir a muitos lugares desconhecidos, inclusive ao processo criativo”.
Renata Giaxa
Psicóloga clínica, professora, pesquisadora e sonhadora

Isso explica o porquê de personagens de obras literárias, músicas e até descobertas científicas já terem sido associadas a sonhos. “Parece-me mais importante que busquemos amplificar e mergulhar nas imagens dos sonhos do que, simplesmente, traduzi-las ou interpretá-las”.

Sonhar coletivamente

Para além de uma compreensão mais subjetiva e individual do sonho, podemos considerar que ele traz consigo dados da cultura, do povo do qual fazemos parte, dos nossos ancestrais. Tais visões não são novas, contudo. 

Elas já foram registradas em livros antigos do Oriente e do Ocidente, presentes nas culturas ameríndias. Nesse contexto, os sonhos são apresentados como sinais de alerta para a mudança, a morte e o nascimento, ao mesmo tempo que anunciam caminhos a serem percorridos por populações e gerações inteiras. 

Usando uma lente junguiana, o sonho pode ser considerado ainda um processo de imaginação durante o sono, ocorrido na fronteira entre o inconsciente individual e o inconsciente coletivo, quando criamos imagens que nos unem ao mundo. 

Legenda: “Receber o sonho como uma experiência pessoal, única e inesgotável em suas traduções faz mais sentido do que resumir o sonho à uma única interpretação", defende Renata Giaxa
Foto: Arquivo pessoal

“Lembro de uma fala do Ailton Krenak para o jornal da UFRGS, quando ele colocou que o sonho ‘[…] anima a experiência da vida como uma evolução, evoluindo de vários estágios’.  Agora está claro que precisamos evoluir nas nossas relações com o planeta e com tudo o que vive”, observa Renata.

Nesse movimento, a estudiosa convoca: “Precisamos imaginar, em sono e vigília, um novo país, um novo mundo. Para isso, faz-se urgente que voltemos a sonhar. E não sonhamos se não temos tempo para viver os nossos encontros com o outro e com o mundo; se vamos deitar exaustos e acordamos ainda mais exaustos; se nos tornamos robôs produtivos. Precisamos ser gente e estarmos juntos se quisermos sonhar um Brasil de florestas e pessoas vivas, convivendo em paz e equanimidade com os outros povos e entre nós”.

 

 

> Indicações culturais sobre a temática do sonho

Livro “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários”, de José Augusto Agualusa

O onírico e seus mistérios acabam por unir quatro personagens numa dramática sucessão de acontecimentos, desafiando e questionando a sociedade e suas regras, além da própria natureza do real, da vida e da morte. Uma fábula política, satírica e divertida, que desafia e questiona a natureza da realidade.

Filme “Sonhos”, de Akira Kurosawa

Longa japonês de 1990, foi exibido no Festival de Cannes de 1990. É um conjunto de oito curtas-metragens nos quais prevalece o componente onírico. São assim intitulados: “Um raio de sol através da chuva”, “O jardim das pessegueiras”, “A tempestade”, “O túnel”, “Corvos”, “Monte Fuji em chamas”, “O demônio que chora”, “O vilarejo dos moinhos”.

Peça “Cantata Para um Bastidor de Utopias”, da Cia do Tijolo

Inspirada no texto “Mariana Pineda”, do poeta e dramaturgo espanhol Federico García Lorca (1898-1936), a montagem mergulha na complexidade simbólica das bandeiras, seus múltiplos significados possíveis, mas principalmente nelas como símbolo da utopia. Originalmente, o espetáculo foi encenado pela primeira vez em Barcelona, com cenários e figurinos de Salvador Dalí (1904-1989).

Livros de Clarice Lispector

“Água Viva” e “Um sopro de vida”, livros de Clarice Lispector (1920-1977), também adentram no terreno dos sonhos. No primeiro, não há história linear nem tema central. Existe, sim, um mote que provoca a escrita: o tempo, a quarta dimensão do “instante-já”, sucedido por um instante-jamais, fugidio. O dito é sempre fugaz, para apreender valores difíceis como amor, morte, liberdade, solidão e religiosidade.

O segundo título, por sua vez, diz respeito a um homem aflito que criou uma personagem, Angela Pralini, seu alter-ego. Mas ora ele não se reconhecia em Angela – porque ela era o seu avesso – ora odiava visceralmente o que via refletido naquela estranha personagem-espelho. 

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