Projeto “Como devo chorá-los?” reflete sobre o luto na pandemia a partir do mito de Antígona

Experiência cênica terá sessões interativas desta terça (27) até domingo (2)

Escrito por Roberta Souza , roberta.souza@svm.com.br
Como devo chorá-los?
Legenda: O único encontro presencial do elenco se deu na cidade de Japeri (RJ)
Foto: Isabela Espíndola

Com quase 400 mil mortos por Covid-19 no Brasil, é difícil encontrar um brasileiro que não esteja de luto. A diretora teatral carioca Marina Vianna, por exemplo, se despediu de um ente querido em setembro de 2020, e encontrou no estudo do mito grego de Antígona uma forma de elaborar a própria dor da perda. Dentro desse “ritual”, coube a ela a direção do projeto cênico “Como devo chorá-los?”, com estreia virtual nesta terça-feira (27), às 20h.

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Teatro, performance, cinema, intervenção urbana e interatividade compõem a experiência idealizada por Bernardo Marinho, Chandelly Braz e Pedro Henrique Müller. Até domingo (2), o público poderá navegar pelo site criando a sua própria narrativa a partir dos textos, cenas e vídeo-performances expostos na plataforma viabilizada com recursos da Lei Aldir Blanc.

Na tragédia grega de Sófocles, escrita no século V a.c., a jovem Antígona desafia os mandamentos arbitrários do governante de Tebas, Creonte, e coloca a sua vida em xeque para velar o corpo do irmão morto, Polinice, sem dispensar os ritos considerados sagrados. 

Como devo chorá-los?
Legenda: O mito de Antígona é resgatado para discutir questões da contemporaneidade
Foto: Isabela Espíndola

O gesto da Antígona, a ação dela de ir contra o rei e prestar homenagens ao irmão, que é considerado inimigo da cidade, sendo um ato subversivo, clandestino, de alguma forma nos conecta com nossos mortos, com nossos desejos de também pranteá-los, da necessidade que a gente tem de dar testemunhos de nossos mortos, de honrá-los”, associa Marina Vianna.

Para ela, a tragédia de Antígona coloca em cena o questionamento do poder, da tirania. “Em meio à pandemia, à violência sistêmica do Estado brasileiro contra as populações pobres, pretas, indígenas, a tragédia de Antígona ressoa de modo sinistro. A vida humana não tem valor diante das 'necessidades da economia'. A epidemia assola o país. Agora ninguém mais pode chorar seus mortos, enterrá-los. O Estado afirma seu poder de morte sobre as pessoas. Tebas é aqui”, reflete.

Pontos de partida

A partir da leitura e discussão de algumas das principais versões teatrais do mito de Antígona - em especial a do tragediógrafo grego Sófocles, mas também a do dramaturgo alemão Bertolt Brecht e a da poeta canadense contemporânea Anne Carson –, a diretora propôs aos cinco artistas envolvidos (Bernardo Marinho, Chandelly Braz, Juliana França, Pedro Henrique Müller e Zahy Guajajara) a criação de textos, cenas e vídeo-performances que compõem o trabalho.

Como devo chorá-los?
Legenda: Projeções integram as diferentes linguagens do projeto
Foto: Isabela Espíndola

O caso dos bebês Yanomami, sepultados em junho passado, sem autorização das famílias, e sem a possibilidade de realização dos rituais sagrados para os indígenas, foi uma das inspirações para este projeto. O documentário “Nossos mortos têm voz”, sobre mães que lutam pela justiça a seus filhos assassinados pela violência policial, também serviu de referência para o grupo.

É muito doido pensar que tudo nos distancia daquele universo de Antígona, no entanto, o trágico que é retratado na peça é absolutamente contemporâneo. A contemporaneidade do trágico é assustadora. Vivemos um momento de tecnologias avançadas, de biotecnologia e ao mesmo tempo não resolvemos o problema das desigualdades sociais, da miséria. Isso é um paradoxo terrível”, lamenta Marina.

Pergunta ainda sem respostas

A questão que dá título ao projeto, adianta a diretora, não é respondida por ele. “O mito da Antígona e as peças que derivam desse mito são justamente sobre uma dúvida que permanece, um ponto de interrogação que está sempre ali. Então ter respostas não era nosso objetivo, mas sobretudo formular perguntas”, propõe a diretora.

Marina enfatiza ainda que os artistas não estão pondo em xeque as orientações sanitárias da Organização Mundial da Saúde (OMS), sobre o sepultamento imediato, sem rituais, para evitar a propagação do vírus. 

Como devo chorá-los?
Legenda: Projeção da atriz pernambucana Chandelly, na Urca (RJ)

Nós somos absolutamente a favor dos protocolos da OMS. O que questionamos é a lei que permitiu, por exemplo, tirar a presidente Dilma do poder. Foi tudo legal, legítimo, mas permanece a dúvida: Foi justo? Isso é justiça? Quantos anos a gente vai ter que aturar esse louco que está no poder? Ele é o próprio Creonte, um tirano”, sugere.

“Hoje eu li uma carta da Indianara Siqueira, uma ativista trans, para o Paulo Gustavo, dizendo: ‘volte, volte pra nós. E era bonito que ela falava assim: ‘nós não odiamos ninguém, nós queremos amar você’; e eu me lembrei da Antígona, que fala: ‘eu nasci para o amor, não para o ódio’. Essa ideia de que nós podemos viver numa comunidade marcada pelo amor, pela amizade, pela solidariedade. E não pela guerra, pela lógica dos inimigos”, pondera a diretora.

Interação com o público

Lidar com as linguagens cênicas possíveis no cenário pandêmico ainda é um desafio para os artistas, especialmente em dia de estreia. Vianna não esconde o nervosismo, mas brinca que é estranho chegar a um dia como hoje de pijama, sem fazer a unha ou pintar o cabelo. 

Como devo chorá-los?
Legenda: Projeção de Juliana França, na Urca (RJ)

“Ontem de noite nós nos reunimos on-line e começamos a chorar. Chorávamos como se tivéssemos passado meses nos encontrando num galpão, e nunca né? É muito louco como a gente consegue mesmo nessa situação de isolamento, confinamento, distância, estabelecer pontes entre nós. A necessidade humana de se manifestar é tão grande que realmente atravessa telas com toda dificuldade”, aponta a diretora. 

Sem nada ao vivo, todo o projeto estará à disposição do público por 3h a cada noite. “O que a gente queria era criar algo juntos e conseguimos, mesmo apartados uns dos outros”, relata Marina, ansiosa pela resposta de quem assistir logo mais.

Serviço

“Como devo chorá-los?”
Sessões de 27 de abril a 2 de maio - terça a domingo
Horário: 20h às 23h, a cada dia
No comodevochoralos.com.br

 

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