Em romance breve e vigoroso, Íris Cavalcante entrelaça resistências de quatro gerações de mulheres

"Por quem elas se curvam" atravessa personagens e situações no seio de uma família tradicional do interior cearense

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Na nova obra sob sua assinatura, Íris Cavalcante desalinha um encorpado fio, em que preconceitos, amarguras e violências dividem espaço com belíssimos momentos de iluminação
Foto: Arquivo pessoal

Já viram como alguém enverga? Eu mesmo senti na pele a sensação. Os ombros caindo, levando consigo a postura pretendida, ereta e sadia. De repente, a cabeça adquire curvatura de anzol e a única perspectiva possível é mirar o chão. Precisei usar um aparelho durante dois anos e meio para corrigir a moléstia na coluna vertebral. Hoje me posto feito robô, mas ao menos encaro o mundo de frente, olhando reto.

Envergar é diferente de se curvar, ainda que haja uma linha tênue entre as duas ações. Enquanto a primeira é ato quase involuntário, a segunda requer um tanto de vontade ou predispõe obrigação. Nos curvamos diante de autoridades, símbolos de entidades importantes, lugares queridos. Nos curvamos também por sentimentos, das tímidas paixões às loucas obsessões por algo ou alguém. Por sonhos, saudades, dores, esperanças.

Lançado pela Rima Rara Edições Literárias, “Por quem elas se curvam” aborda exatamente o que levou quatro gerações de mulheres da mesma família a arquearem seus corpos – físicos ou imateriais – em detrimento das realidades que as circundam. A obra é o novo romance de Íris Cavalcante, escritora finalista do Prêmio Jabuti 2018 com o livro de poesia “Vento no 8º andar”. 

Natural do município de Baturité, no interior cearense, a autora ambienta a trama também distante da Capital, às margens do Rio Putiú, em pleno sertão, onde “até o vento era quente”. É lá que conhecemos a tradicional família Alencar, cujas histórias ganham corpo a partir de capítulos breves e fluidos.

Legenda: Natural do município de Baturité, no interior cearense, a escritora ambienta a trama também distante da Capital, às margens do Rio Putiú
Foto: Arquivo pessoal

O romance todo, inclusive, se vale de uma arquitetura concisa do verbo para atravessar inúmeras questões, permeando, com habilidade, terrenos que ora se tocam, ora se chocam.

Intimidades em perspectiva

Mas a temática central mesmo é a resistência das mulheres retratadas, algo apontado já no texto de orelha do livro, assinado pelo escritor e doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará, Carlos Vazconcelos.

Em determinado momento, ele sublinha: “Os espaços da ficção e da realidade (o que é mesmo uma e outra?) se permeiam e o que pulsa é a vida acima de qualquer anseio, a vida que vale a pena apesar da involução da espécie, que teima em manter desequilíbrios”.

Os espaços mencionados por Carlos são, em sua maioria, tecidos pela ótica de Tavinho, um dos mais jovens integrantes do clã. É dele a voz principal do romance, porém a narrativa se alonga e ganha distinta potência quando a perspectiva de algumas das mulheres da família assume o leme ou quando os dramas e realidades dessas personagens femininas são evidenciados.

Assim, Felismina, Cleia, Delfina, Nina, Lívia Drusa e Flor de Lis se tornam nossas amigas íntimas, gente do nosso núcleo e conhecimento. Atravessar suas trajetórias inquieta e faz pensar: “Quantas mulheres conheço que já passaram por essas situações?”.

Legenda: No bojo dos acontecimentos do livro, Íris brada aquilo que põe a existência para a frente, não sem antes considerar as agruras do processo
Foto: Arquivo pessoal

Labirinto de referências

Íris Cavalcante assume a questão apresentando os fatos como se retirasse um álbum de família do armário e mostrando a quem chega. Retrato por retrato, a escritora vai desalinhando um fio em que preconceitos, amarguras e violências dividem espaço com belíssimos momentos de iluminação, adentrando num labirinto de crendices, costumes, confissões à boca miúda. Passado e presente em diálogo constante numa crescente polifonia narrativa.

Excelente frasista, a cearense nos entrega construções do tipo “É muito grande pensar a respeito das coisas” e “As mulheres costumam passar por profundas metamorfoses, que transformam também suas percepções. Alguns homens morrem com os mesmos olhos com que nasceram”.

Ou ainda: “As crianças crescem e a compreensão muda. Às vezes, as pessoas grandes se tornam pequenas”.

No bojo dos acontecimentos, Íris brada aquilo que põe a existência para a frente, não sem antes considerar as agruras do processo – sobretudo no que toca à realidade das mulheres, recorte sempre pungente.

Não à toa, a epígrafe com versos de Hilda Hilst – “me fizeram de pedra/ quando eu queria/ ser feita de amor” – e a dedicatória direcionada em especial àquelas que lhe antecederam, tudo encapsulado pela engenhosa ilustração de capa, feita pela escritora, poeta e psicóloga cearense Lisiane Forte

Um sucinto romance cravejado de enormidades, as quais nos levam irremediavelmente à pergunta-chave, sobretudo no presente instante: por quem ou a quê nos curvamos?


Foto: Divulgação

Por quem elas se curvam
Íris Cavalcante

Rima Rara Edições Literárias
2021, 96 páginas
R$ 20 (versão física disponível nas livrarias Lamarca, Benfica, Leitura (shopping RioMar) e Pimentá/ E-book disponível na Amazon)

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