Box com todos os contos de Julio Cortázar celebra a prosa revolucionária do escritor argentino

Pela primeira vez publicados integralmente no Brasil, os textos foram reunidos em dois volumes editados pela Companhia das Letras

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Julio Cortázar redefiniu os rumos do conto ao atuar com singular maestria nesse gênero literário
Foto: Divulgação

Foi na revista dirigida por Jorge Luis Borges (1899-1986), “Los Anales de Buenos Aires”, que o primeiro conto de Julio Cortázar (1914-1984) ganhou os olhos do público. Intitulado “Casa tomada”, é o texto que abre “Bestiário” – este, por sua vez, o primeiro livro escrito sob a insígnia do gênero que catapultou o argentino ao olimpo da literatura universal.

Logo, é nesse ambiente em que o magistério de Borges era o eixo da vida literária de Buenos Aires – “verdadeiro Minotauro das letras portenhas”, conforme define o crítico argentino Jaime Alazraki – que Cortázar começou a desenvolver suas curtas histórias e, também, seu tentacular legado. 

“Todos os caminhos levavam ao centro desse labirinto intelectual que o autor de ‘Ficções’ havia armado desde os anos 1920, com o rigor e a paciência dedálica de um arquiteto”, situa o estudioso acerca da pena irrequieta de Jorge.
Jaime Alazraki
Crítico literário

Apesar da clara influência e incentivo – e até de algumas semelhanças na superfície, sobretudo pela meticulosa construção do argumento e da inclinação pelo elemento fantástico – o desenvolvimento narrativo de ambos os escritores são marcadamente distintos.  Alazraki enumera a cosmovisão, o estilo e o tratamento da tessitura textual, até mesmo quando escrevem sobre a mesma matéria, como os principais pilares de observação dessas diferenças.

Nesse sentido, “Julio Cortázar - Todos os contos” emerge não apenas como fator de apresentação da revolucionária prosa do autor – abarcando antigas e novas gerações de leitores – como também instrumento de mergulho em aspectos que demarcam uma produção tão robusta quanto “criadora de algo que não perece”, feito sublinhou Mario Vargas Llosa.

A coletânea chega de forma esmerada pela Companhia das Letras, com dois volumes em capa dura acompanhados de uma caixa rígida para guardar as edições. Também prima por novas traduções, assinadas por Heloisa Jahn e Josely Vianna Baptista, e textos do próprio Cortázar sobre a arte do conto, além de um posfácio inédito do já referenciado Jaime Alazraki.

Dimensões de uma herança

No total, 1100 páginas de conteúdo – dividido entre os períodos 1945-1966 e 1969-1983 – emergem a audiência no farto panorama costurado pelo literato. O painel abarca desde as produções menos conhecidas até livros aclamados, a exemplo de “Todos os fogos o fogo”, “As armas secretas”, “Octaedro”, “Fim do jogo” e “Histórias de cronópios e de famas”. É a primeira vez que os contos completos são publicados integralmente no Brasil.

O projeto de Elaine Ramos para a caixa que resguarda as histórias incorpora o inventivo universo ficcional do autor ao trazer, em várias elipses, o rosto de Cortázar, num fascinante labirinto de fisionomias. Um convite certeiro para que as próprias concepções do argentino sobre uma literatura antirrealista – mais do que fantástica – possam gerar novas perspectivas e entendimentos acerca de sua obra.

Certa vez, em uma entrevista, Cortázar afirmou que quase todos os contos que escreveu pertencem ao gênero chamado fantástico por falta de um nome melhor. Isso porque, consciente da imprecisão dessa designação com respeito às suas narrativas curtas, o autor não estava interessado em assaltar o leitor com medos e horrores, definidos como os traços distintivos do fantástico puro ou tradicional. Importava mais o tom preciso e ambíguo com que vai enunciando os horizontes do enredo, focado numa experiência de outridade.

Legenda: Cortázar afirmava que quase todos os contos que escreveu pertencem ao gênero chamado fantástico por falta de um nome melhor
Foto: Divulgação

Aqui, abre-se um precedente para falar de uma das maiores referências do literato, o americano Edgar Allan Poe (1809-1849). Marcas proeminentes de sua escrita se encontram nos níveis mais profundos dos contos do argentino, embora Cortázar sublinhe que a irrupção de um “outro” nas histórias por ele assinadas – este ligado principalmente ao extrapolamento de uma realidade tida como lógica e natural – aconteça de uma maneira explicitamente trivial e prosaica.

“Assim chegamos a um ponto em que é possível reconhecer minha ideia do fantástico dentro de um registro mais amplo e mais aberto que o predominante na era dos romances góticos e de contos cujos atributos eram os fantasmas, os lobisomens e os vampiros”, declarou em uma das conferências proferidas na Universidade de Oklahoma (EUA), em novembro de 1975.

Ele suspeitava que outra ordem, mais secreta e menos comunicável, junto à fecunda descoberta de poeta, romancista e dramaturgo francês Alfred Jarry (1873-1907) – para quem o verdadeiro estudo da realidade não residia nas leis, mas na exceção a esses ditames – foram alguns dos princípios orientadores de sua busca por uma literatura à margem de todo realismo “demasiado ingênuo”.

É algo que Jaime Alazraki compreende bem ao reforçar que os contos de Cortázar tentam transcender as construções da cultura e buscam tocar o fundo que Borges considerava obscuro demais para ser compreendido pelos indivíduos. Uma adesão ao surrealismo que vai além do fato meramente estético para abraçá-lo como caminho que conduz ao grande salto.

Também como uma cosmovisão, com cuja assistência o homem reencontra a rota para sair de seu desvio e retornar ao outro. Um princípio sempre fundamental na História da Humanidade, mas que rompe a crosta do hoje como sentença inadiável.


Julio Cortázar - Todos os contos
Tradução de Heloisa Jahn e Josely Vianna Baptista

Companhia das Letras
2021, 1144 páginas
R$ 269,90

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