Saiba as violências e penalidades do uso de expressões homofóbicas disfarçadas de piada

O Diário do Nordeste selecionou uma lista de expressões a serem abolidas do seu vocabulário que representam "violências discursivas", segundo pesquisador

Legenda: Na série Pai (2018), o artista Rodrigo Lopes, junto de sua irmã, bordou sobre oito fotografias analógicas falas ouvidas no ambiente familiar
Foto: Série Pai (2018), Rodrigo Lopes

“É assim porque não apanhou”. “Você nem parece ser gay”. “Não tenho nada contra, mas não queria que meu filho fosse assim”. Estas são algumas das frases que homens e mulheres homossexuais ouvem com frequência desde cedo, seja na TV, nas ruas, em rodas de conversa e até mesmo dentro de casa. 

Em alusão ao Dia Internacional contra a Homofobia, comemorado nesta segunda-feira (17), o Diário do Nordeste apresenta uma lista com expressões que você usa sem saber que são homofóbicas, indicadas para abolir do seu vocabulário

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Embora, em determinados contextos, possam ser ditas sem a intenção real de constranger ou de agredir verbalmente, tais frases reforçam um discurso, cujo teor se configura como crime de homofobia.

Desde junho de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero deve ser equiparada ao crime de racismo. Com isso, a maioria dos ministros determinou que a conduta passa a ser punida pela Lei de Racismo, nº 7.716, de janeiro de 1989.

Expressões homofóbicas

Muitas vezes disfarçadas de piadas, as expressões homofóbicas ainda seguem fortemente presentes na estrutura social brasileira. Para o líder do Grupo de Pesquisa em Análise de Discurso Crítica da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Lucineudo Irineu, elas representam uma “violência discursiva” e que “provoca muita dor”. Dentre algumas delas estão:

  • "Isso é porque não conheceu homem/mulher de verdade" 
  • "É assim porque não apanhou" 
  • "Eu não tenho nada contra, mas não queria que meu filho fosse assim" 
  • "Ai, que desperdício” 
  • "Nem parece que é gay" 
  • "Onde foi que eu errei?" 
  • "Esse filho é de vocês?"  
  • "Tu parece mulherzinha"  
  • "Quem é a mulher dos dois?"  
  • "Não acho legal nem homem e mulher se agarrando. Não precisa se agarrar na rua" 
  • “Pei, matei um gay” 
  • “Vocês não precisam de direitos LGBT porque somos todos iguais" 
  • "Adoro ver duas mulheres se pegando. Posso entrar no meio?" 
  • “Como pode ser gay e ser tão bonito?” 

Apesar de Lucineudo ressaltar que não há como precisar quando essas frases surgiram, visualiza em cada uma delas representações sociais correntes, pelas quais determinados grupos são beneficiados e outros são prejudicados, como no caso da comunidade LGBT.

A gente fala o que fala, repete essas frases com muita tranquilidade porque, na maioria das vezes, a gente nem tem noção de onde é que elas vêm. Mas elas vêm exatamente desse convívio social. E a própria linguagem é deflagradora disso. 
Lucineudo Irineu
Pesquisador em Análise de Discurso Crítica

‘Agressão discursiva’ 

Na opinião de Lucineudo Irineu, frases como ‘eu não tenho nada contra, mas’ revelam uma agressão discursiva parcialmente velada, tendo em vista que o que é dito antes do ‘mas’ funciona como estratégia de automonitoramento do emissor para proteger a própria imagem.  

"O que está pra depois do ‘mas’ é o que essa pessoa verdadeiramente acredita. Esse 'eu não tenho nada contra' é a parte de uma fala que corresponde à proteção. A pessoa que fala sabe ou tem uma mínima ideia que aquela frase não é legal”, explica Irineu. 

Irineu considera a “agressão discursiva” mais perniciosa e, por isso, até mais “cruel” do que uma agressão física. “A agressão física ainda dá uma margem de reação, a discursiva não”. 

Se a gente não combate, elas vão se perpetuando. No entanto, quando eu reivindico que esse tipo de coisa não seja feita, uma nova representação vai sendo formada aos poucos.
Lucineudo Irineu
Pesquisador em Análise de Discurso Crítica

Segundo Irineu, a saída para a mudança é “problematizar” o uso dessas falas inadequadas e não permitir que a reivindicação seja reduzida a um “mimimi”. “Não deixe que as pessoas caracterizem a sua resistência como um mimimi. Isso é outra violência”, finaliza.  

Resistência por meio da arte

A série Pai (2018) retrata violências familiares sofridas por Rodrigo durante a infância e adolescência
Legenda: Com a série Pai (2018), Rodrigo Lopes compartilha experiências que atravessaram seu ambiente familiar que também dialogam com outras pessoas da comunidade LGBTQIA+
Foto: Série Pai (2018), Rodrigo Lopes

Foi como forma de expôr essa violência e resistir por meio da arte, que o designer, artista e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Artes (UNESP), Rodrigo Lopes, realizou a série Pai (2018) com sua irmã Sylvia, no qual bordou falas ouvidas por ambos dentro de casa sobre oito fotografias analógicas. 

Os momentos capturados pela câmera apresentam momentos singulares da juventude dos irmãos, como o soprar de uma vela ou a comemoração de uma festa escolar. “Eu acho que o trabalho foi surgindo assim. Por uma vontade de esquecer, fui aprendendo a gostar de lembrar. E de bordar”, aponta o artista.

Nesse processo de compreensão das violências vividas dentro de casa e de questionamentos acerca de como se produz "uma memória, um pai, uma bicha, uma criança bicha", Rodrigo percebe a participação de sua irmã como fundamental. 

Com ela, aprendi que existem memórias que nunca serão esquecidas. Com ela, aprendi também que sempre surgirão memórias novas para serem lembradas. Talvez, Pai (2018) seja uma promessa de esquecimento diante da inevitabilidade da lembrança.
Rodrigo Lopes
Artista

Penalidades jurídicas

Conforme a advogada de direitos humanos e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP), Luanna Marley, a exteriorização do preconceito através de práticas, que podem ir desde discursos e xingamentos até humilhações apresentam um impacto individual, subjetivo e social por incitarem violência. 

Ao equiparar a homofobia e transfobia ao racismo, as declarações deste tipo passam a ser punidas, constituem crime. É possível a condenação na esfera cível, por danos morais, admitindo assim uma indenização e até gerar obrigações de cunho mais pedagógico, como se retratar publicamente ou contribuir com organização LGBTI.
Luanna Marley
Advogada de Direitos Humanos

No art. 20, a lei 7.716/89 prevê três tipos de condutas: praticar, induzir ou incitar a discriminação ou o preconceito. No caso das declarações e expressões homofóbicas, como “é assim porque não apanhou”, o emissor pode receber penalidade. 

Luanna explica que a pena de reclusão pode ir de 1 a 3 anos, somado a uma multa. Caso essa declaração seja dita por meio em meios comunicação ou publicações, a pena pode aumentar de 2 até 5 anos, mais multa.

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Entraves à judicialização  

Ativista do Movimento LGBT, Tel Cândido avalia que os crimes de homofobia ocorrem com frequência, mas a maioria das vítimas acaba não levando o problema à esfera judicial. De acordo com ele, o problema já começa no registro das ocorrências nas delegacias.  

Muitas pessoas que procuram os distritos policiais para registrar esse tipo de ocorrência não conseguem lavrar o Boletim de Ocorrência como crime de racismo, como determina o STF.
Tel Cândido
Ativista do Movimento LGBT

Esse cenário de dificuldade para realicar o BO é apontado pelo ativista a partir de casos testemunhados por ele quando coordenava o Centro de Referência LGBT Janaína Dutra, em Fortaleza. 

Tel Cândido reforça que a LGBTfobia não se resume somente a uma violência imputada por alguém. Mas integra um “sistema estrutural que têm orientado historicamente as relações sociais, no sentido de sujeitar as populações LGBT à desigualdade e à subalternização”.  

Daí a necessidade de repensar o uso dessas frases e não associar, por exemplo, a legitimidade da beleza, da sexualidade e do afeto à heterossexualidade ou à cisnormatividade. 



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